Antes, o tráfico de pessoas estava localizado nos arts. 231 e 231-A, ambos do CP, restrito à finalidade de exploração sexual. No entanto, percebendo que os documentos internacionais assinados pelo Brasil dão ao delito um alcance bem maior, abrangendo outros tipos de exploração que não a sexual, a Lei 13.344/16 removeu o crime do Título VI – dos crimes contra a dignidade sexual –, migrando-o para o Capítulo IV do Título I, dos crimes contra a liberdade individual. Eis o bem jurídico tutelado. Contudo, bens outros aparecem no espectro de proteção, como o a dignidade corporal, a dignidade sexual e o poder familiar.
Diante disso, pode-se afirmar que o tipo subjetivo atual do tráfico de pessoas é o dolo, consistente na vontade consciente de praticar qualquer dos núcleos do tipo, aliado à finalidade especial (alternativa) de traficar a pessoa para:
a) remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo
A remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo é disciplinada pela Lei 9.434/97.
Permite-se a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento, desde que diagnosticada a morte encefálica por dois médicos não integrantes da equipe de transplante (art. 3º).
A lei ainda admite que a pessoa juridicamente capaz disponha gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, desde que autorize, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada. Além disso, é possível a mesma disposição em favor de qualquer outra pessoa, mas neste caso mediante autorização judicial (art. 9º, caput e § 4º), desde que, no caso de corpo vivo, trate-se “de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora” (§ 3º).
b) submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo
Esta finalidade especial remete diretamente ao crime do art. 149 do Código Penal, que pune – com reclusão de dois a oito anos, além da multa e da pena correspondente a eventual violência – a conduta de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, assim dispõe no seu art. 4º: “Ninguém será mantido em escravidão ou em servidão; a escravidão e o trato dos escravos serão proibidos em todas as suas formas”. A escravidão é uma situação de direito em virtude da qual o homem perde a própria personalidade, tornando-se simplesmente coisa. Sem amparo legal em nosso País, pune-se, aqui, a redução do homem a condição análoga à de um escravo, estado de fato proibido por lei.
O que o tipo pune, portanto, é a escravização, de fato, da criatura humana, conduta que a torna submissa, reduzindo-a à condição de servo, ou em que se a desfruta como tal. Trata-se de sujeição de uma pessoa ao domínio da outra, como se fosse um escravo.
Com o advento da Lei 10.803/2003, foram enumerados taxativamente quais comportamentos caracterizam o delito, tornando-o de forma vinculada, de forma que só é possível praticá-lo por meio das seguintes condutas detalhadas:
1) submeter a vítima a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva (caput);
2) sujeitá-la a condições degradantes de trabalho (caput);
3) restringir, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto (caput);
4) cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho (§ 1º, I);
5) manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho (§ 1º, II).
c) submetê-la a qualquer tipo de servidão
A finalidade de cometer o tráfico de pessoa para submetê-la a qualquer tipo de servidão não encontra correspondente específico tipificado autonomamente na legislação penal.
A Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura trata a servidão no mesmo contexto da escravidão.
Na Seção I, denominada Instituições e Práticas Análogas à Escravidão, o art. 1º estabelece que os Estados signatários devem adotar as medidas viáveis e necessárias para obter progressivamente e tão logo quanto possível a abolição completa da servidão por dívidas (§ 1º), definida como “o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida”, bem como da servidão pura e simples (§ 2º), conceituada como “a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição” .
A mesma Convenção, no art. 7º, §§ 1º e 2º, faz uma distinção, para os fins dispostos no próprio acordo internacional, entre “escravidão” e “pessoa em condição servil”: a) “’Escravidão’, tal como foi definida na Convenção sobre a Escravidão de 1926, é o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito de propriedade, e ‘escravo’ é o indivíduo em tal estado ou condição; b) “’Pessoa de condição servil’ é a que se encontra no estado ou condição que resulta de alguma das instituições ou práticas mencionadas no artigo primeiro da presente Convenção”.
Se, todavia, cotejarmos as formas como o delito do art. 149 pode ser cometido com as definições de servidão acima transcritas (art. 1º da Convenção), veremos que as hipóteses de servidão estão inseridas no âmbito da redução a condição análoga à de escravo. Apesar da Convenção, no art. 7º, distinguir, para os seus próprios fins, a escravidão da servidão, devemos ter em mente que suas disposições são destinadas também a países que contemplem a escravidão como situação de direito, ou seja, que admitam a existência efetiva de escravos, tratados como propriedade alheia. Como já destacamos, no entanto, não há no Brasil a condição de escravo, razão pela qual pensamos não ser cabível a distinção.
d) adoção ilegal
Outra finalidade do tráfico de pessoas pode ser a adoção ilegal.
O tipo penal não se restringe ao tráfico de pessoa com o propósito de adotar ilegalmente um menor de idade. Não se há de negar, porém, que a adoção ilegal de menores mediante tráfico de pessoa representaria a esmagadora maioria dos casos. Isso em virtude do complexo processo de adoção de crianças e adolescentes, permeado por regras que visam à proteção do adotado, regras estas que não se repetem na adoção de adultos, a não ser no que se refere a diretrizes como a diferença mínima de idade entre adotante e adotado e a proibição de adoção de descendentes por ascendentes e entre irmãos.
No caso da adoção de menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente, alterado pela Lei 12.010/09, estabelece, entre os arts. 39 e 52-D, inúmeras regras que têm o propósito de garantir o atendimento dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, a fim de que ao menor seja garantido o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (art. 3º do ECA).
Para que esse propósito seja cumprido, a lei estabelece, por exemplo, o estágio de convivência, com prazo estabelecido pela autoridade judiciária, durante o qual membros da Justiça de Infância e da Juventude acompanham a família para garantir que a adoção seja adequada. Além disso, há regras para o cadastro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e das pessoas interessadas em fazer a adoção, sendo que, no caso destes últimos, há requisitos, como o ambiente familiar adequado, além de um período de preparação psicossocial e jurídica.
Diante desse complexo processo, não são poucos os que decidem burlar o sistema de adoção para promovê-la ilegalmente. Caso façam isso mediante alguma das condutas tipificadas no art. 149-A do CP, responderão por tráfico de pessoas.
Destacamos novamente que o tipo não impede o tráfico de maiores de idade com a finalidade de adoção ilegal. Como exemplo, podemos citar a hipótese em que alguém, titular de valioso patrimônio, seja pelo agente acolhido, mediante abuso, para ser forçado a adotar o mesmo agente, que futuramente se beneficiará da herança. Neste caso, a adoção – que evidentemente deve ser voluntária – seria ilegal, bastante portanto para caracterizar a finalidade especial.
e) exploração sexual
A exploração sexual, de acordo com o primoroso estudo de Eva Faleiros, pode ser definida como uma dominação e abuso do corpo de crianças, adolescentes e adultos (oferta), por exploradores sexuais (mercadores), organizados, muitas vezes, em rede de comercialização local e global (mercado), ou por pais ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda), admitindo quatro modalidades:
1) prostituição – atividade na qual atos sexuais são negociados em troca de pagamento, não apenas monetário;
2) turismo sexual – é o comércio sexual, bem articulado, em cidades turísticas, envolvendo turistas nacionais e estrangeiros e principalmente mulheres jovens, de setores excluídos de Países de Terceiro Mundo;
3) pornografia – produção, exibição, distribuição, venda, compra, posse e utilização de material pornográfico, presente também na literatura, cinema, propaganda etc.; e
4) tráfico para fins sexuais – movimento clandestino e ilícito de pessoas através de fronteiras nacionais, com o objetivo de forçar mulheres e adolescentes a entrar em situações sexualmente opressoras e exploradoras, para lucro dos aliciadores, traficantes.
Especificamente a respeito do tratamento conferido pelo Estado à prostituição, há três sistemas comumente utilizados:
1) regulamentação: o Estado regulamenta a atividade, permitindo que seja desempenhada formalmente, o que possibilita o exercício de direitos inerentes à relação laboral;
II) proibição: o exercício da prostituição é vedado tanto quanto a sua exploração e é punido, no mais das vezes, criminalmente;
III) abolicionista: o exercício, em si, embora seja considerado imoral, não é punido, reservando-se a incidência da lei penal somente àqueles que tomam proveito da prostituição alheia. É o sistema adotado no Brasil.
Para se aprofundar, recomendamos o livro TRÁFICO DE PESSOAS – LEI 13.344/16 COMENTADA POR ARTIGOS (2017)