O Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, de modo que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário) e à existência de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (caráter fragmentário).
Como desdobramento lógico da fragmentariedade, temos o princípio da insignificância. Ainda que o legislador crie tipos incriminadores em observância aos princípios gerais do Direito Penal, poderá ocorrer situação em que a ofensa concretamente perpetrada seja diminuta, isto é, incapaz de atingir materialmente e de forma relevante e intolerável o bem jurídico protegido. Nesses casos, estaremos diante do que se denomina infração bagatelar ou crime de bagatela. Segundo Carlos Vico ManãsO Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1ª. ed., São Paulo: Saraiva, pp. 56 e 81, “o princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção da fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal.” Para ele, tal princípio funda-se “na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal”.
Os tribunais superiores têm reconhecido com frequência o princípio da insignificância, mas estabelecem alguns requisitos necessários. São eles: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada.
Com base nesses critérios, tanto o STF quanto o STJ têm julgado casos de insignificância na seara dos crimes ambientais. Ambos os tribunais reconhecem ou afastam a tipicidade material baseados nas circunstâncias dos casos concretos que lhes são submetidos.
Em um caso de pesca ilegal (art. 34, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 9.605/98)Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem: (...) II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos;, por exemplo, o STJ AgRg no REsp 1.651.092/SC, j. 06/06/2017 considerou inaplicável o conceito de insignificância porque o agente, embora não tivesse capturado nenhum peixe, fora surpreendido com petrechos proibidos (redes) capazes de causar significativo dano ambiental no momento em que utilizados. No julgado, aliás, o crime foi considerado formal, conferindo-se à captura de peixes a natureza de mero exaurimento.
Em outro caso, o tribunalREsp 1.409.051/SC, j. 20/04/2017 reconheceu a atipicidade material: “1. A devolução do peixe vivo ao rio demonstra a mínima ofensividade ao meio ambiente, circunstância registrada no “Relatório de Fiscalização firmado pelo ICMBio [em que] foi informado que a gravidade do dano foi leve, além do crime não ter sido cometido atingindo espécies ameaçadas.” 2. Os instrumentos utilizados – vara de molinete com carretilha, linhas e isopor –, são de uso permitido e não configuram profissionalismo, mas ao contrário, demonstram o amadorismo da conduta do denunciado. Precedente. 3. Na ausência de lesividade ao bem jurídico protegido pela norma incriminadora (art. 34, caput, da Lei n. 9.605/1998), verifica-se a atipicidade da conduta”.
O STF também tem seguido a linha em que, considerando o caso concreto, a tipicidade pode ou não ser afastada:
“11. Diante das especificidades que regem a proteção ambiental, a descaracterização do aspecto material da tipicidade não se baseia apenas numa valoração econômica do objeto do crime. A análise da relevância ou não da conduta em relação ao bem jurídico tutelado é conduzida sob uma perspectiva ecológica, em defesa do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Constituição Federal. 12. Isso porque, além da possibilidade de ser irreversível, o dano ambiental nem sempre é resultado de uma ação em um único período de tempo, mas de uma sucessão de atos integrantes de uma cadeia complexa. Devido ao potencial de provocar um conjunto de danos, a cumulatividade de atos pode resultar em uma lesão maior do que a soma de cada um individualmente. 13. No caso, ao contrário do alegado pela impetrante, a falta de apreensão de peixes ou petrechos pelos fiscais não é suficiente para concluir pela inexpressividade da lesão jurídica provocada. O paciente, pescador profissional, foi flagrado junto a outros três indivíduos, por três vezes consecutivas, em embarcação motorizada, praticando pesca em local proibido e com redes de arrasto de fundo. 14. Como registrou as instâncias ordinárias, a pesca em local proibido caracteriza atividade predatória que acarreta sérios danos aos ciclos de reprodução da espécie e culmina por lesionar, em cadeia, todo o ecossistema. Por sua vez, o uso de rede de arrasto pode causar impactos ambientais relevantes na medida em que implica na captura de grandes quantidades de espécies – visadas e não visadas pelo agente –, bem como na destruição da vegetação aquática submersa, principalmente em se tratando de leitos de águas rasas, como é o caso do Estuário Lagoa dos Patos” (HC 137.652/DF, j. 08/06/2017).
“No processo em exame, houve a impossibilidade de produzir-se prova material de qualquer dano efetivo ao meio ambiente, sendo a conduta do Acusado enquadrada no art. 34 da Lei n. 9.605/1998. Mesmo diante de crime de perigo abstrato, não é possível dispensar a verificação in concreto do perigo real ou mesmo potencial da conduta praticada pelo acusado com relação ao bem jurídico tutelado. Esse perigo real não se verifica na espécie vertente. O acusado estava em pequena embarcação, próximo à Ilha de Samambaia, quando foi surpreendido em contexto de pesca rústica, com vara de pescar, linha e anzol. Não estava em barco grande, munido de redes, arrasto nem com instrumentos de maior potencialidade lesiva ao meio ambiente” (Inq 3788/DF, j. 01/03/2016).
Essas decisões, no entanto, não têm abordado diretamente o conceito de crime de acumulação, que, uma vez aplicado, modifica a perspectiva pela qual a insignificância deve ser analisada.
Ao criar determinados tipos penais, o legislador busca proteger interesses supraindividuais (de caráter coletivo). É o que acontece nos crimes contra o meio ambiente. Nesses casos, é possível que não se compreenda como pode uma conduta isolada causar relevante dano ou perigo de dano ao bem jurídico. De fato, alguém que corta uma árvore em área de preservação permanente, despeja pequena quantidade de detritos em um rio cujas águas servem uma cidade ou captura alguns peixes em período de defeso não comete um ato de lesão grave ao meio ambiente.
No entanto, a lesão – ou o perigo de que ocorra – passa a ser compreendida quando se leva em conta não apenas a conduta de um agente, mas o acúmulo de condutas e resultados semelhantes caso não haja punições individuais. Uma pessoa que pesca sem autorização legal um determinado peixe não viola de forma expressiva o bem jurídico (meio ambiente), mas se considerarmos a soma de várias condutas análogas, percebe-se o dano que ocorreria. Sustenta-se portanto a punição da conduta isolada, mesmo sem lesividade aparente (mas projetada).
Percebe-se que a lesão relevante ao bem jurídico somente é considerada com a soma de várias condutas hipotéticas. Isso significa, para parcela da doutrina, que a punição do agente ocorre sem que se observe o princípio da lesividade.
O princípio da lesividade, como todos sabem, exige que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Como explicam Alice Bianchini, Antonio Molina e Luiz Flávio Gomes Direito Penal – Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007, vol. 1. p. 125, o princípio “Está atrelado à concepção dualista da norma penal, isto é, a norma pode ser primária (delimita o âmbito do proibido) ou secundária (cuida do castigo, do âmbito da sancionabilidade). A norma primária, por seu turno, possui dois aspectos: (A) ela é valorativa (existe para a proteção de um valor); e (B) também imperativa (impõe uma determinada pauta de conduta). O aspecto valorativo da norma fundamenta o injusto penal, isto é, só existe crime quando há ofensa concreta a esse bem jurídico. Daí se conclui que o crime exige, sempre, desvalor da ação (a realização de uma conduta) assim como desvalor do resultado (afetação concreta de um bem jurídico). Sem ambos os desvalores não há injusto penal (não há crime)”.
Isso nos leva ao conceito de tipicidade material, segundo a qual só é típica a conduta que representa relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Com esse conceito, a tipicidade penal deixa de ser mera subsunção do fato à norma (tipicidade formal) e passa a abrigar também um juízo de valor, consistente na relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
Nos delitos de acumulação, no entanto, não se considera esse aspecto de lesão ou perigo de lesão sobre condutas unitárias, mas sobre a soma hipotética de condutas. Dada a natureza dos bens jurídicos protegidos por meio dessa espécie de delito, modifica-se a perspectiva sob a qual o princípio da lesividade pode limitar o poder punitivo. Quando se trata da lesividade num furto de uma caneta Bic, por exemplo, a possiblidade de que milhares de pessoas tomem a mesma atitude contra exatamente o mesmo bem jurídico é, para não dizer inexistente, remotíssima. O mesmo não ocorre, todavia, nos delitos de tutela coletiva. Com feito, caso não haja a devida repressão, é muito provável que ocorram inúmeros casos de corte de árvore em área de preservação permanente, de despejo de detritos em rios e de pesca ilegal. Vê-se, portanto, que não obstante as múltiplas condutas sejam consideradas por hipótese, o grau de abstração não é tão elevado quanto se possa imaginar. A possiblidade de que condutas pouco relevantes se multipliquem caso sejam toleradas é real e derivada dos dados da experiência.
O que legitima a punição, portanto, é a soma de pequenas lesões ao bem jurídico coletivo. Nas palavras de Ana Carolina Carlos de Oliveirahttps://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/176-ARTIGOS, “Trata-se, em síntese, de uma soma de microlesões e de uma técnica de tipificação baseada em um grande número de atos. Nesse sentido, e conforme sustentam Wohlers e von Hirsch, a acumulação é mais do que uma técnica legislativa, é também um fundamento para a justificação ou legitimação de condutas perigosas contra bens jurídicos coletivos”. E, de acordo com a mesma autora, “as condições para que se verifique uma conduta merecedora de punição com base na acumulação são: (i) prognóstico realista de realização de condutas; (ii) existência de resultado efetivo, ainda que reduzido; (iii) consideração de condutas pouco significantes”.
Isso significa que o princípio da insignificância não tem lugar nos delitos por acumulação? A resposta é negativa.
À primeira vista pode parecer que se a tipificação dos delitos de acumulação se baseia na soma de condutas que, isoladas, não teriam relevância, não é possível considerar insignificante determinada conduta pouco lesiva ao bem jurídico coletivo, sob pena de contrariar o próprio fundamento dessa espécie de delito.
Não se trata disso, no entanto. É possível a incidência do princípio da insignificância, mas sua análise deve ser adequada aos fundamentos do crime por acumulação. Isso quer dizer que não se examina a pouca relevância da lesão ou do perigo de lesão baseando-se na conduta individual, mas considerando o resultado da provável acumulação. Dessa forma, o produtor rural surpreendido despejando detritos em um rio pode estar cometendo uma conduta em si irrelevante, mas, se consideramos a provável repetição daquela conduta por outros produtores instalados ao longo do mesmo rio, nota-se aí a alta probabilidade de um dano maior, que afasta o princípio da insignificância. Se, no entanto, trata-se de alguém surpreendido em uma área isolada pescando em período de defeso apenas com uma linha atrelada a uma vara artesanal, pode-se imaginar que mesmo considerada a possibilidade de repetição daquela conduta por outras poucas pessoas que vivem na região o dano ainda assim seria diminuto. Neste caso, o princípio da bagatela pode incidir para que se reconheça a atipicidade material.
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