11) Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de apropriação indébita previdenciária, quando, na ocasião do delito, o valor do débito com a Previdência Social não ultrapassar o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais), previsto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)..
O princípio da insignificância tem sido aplicado com frequência no crime de apropriação indébita previdenciária. O parâmetro para considerar materialmente atípica a conduta é o valor mínimo para que os órgãos fazendários promovam a execução fiscal. Entende-se que se o Estado considera inviável movimentar a estrutura judiciária para promover a cobrança de tributos abaixo de determinado valor, com maior razão deve ser afastada a pretensão punitiva criminal, caracterizada pela intervenção mínima.
Há quem sustente que o valor a ser considerado para a incidência da insignificância não é o da Lei 10.522/02, mas o das Portarias 75/2012 e 130/2012 do Ministério da Fazenda, que atualizam para R$ 20.000,00 o valor mínimo para a execução fiscal. Este valor é considerado pelo STF para a insignificância no descaminho, por exemplo (HC 139.393/PR, DJe 02/05/2017).
O STJ, no entanto, é contrário a essa pretensão, e tem considerado o valor estabelecido na Lei 10.522/02 para os casos envolvendo crimes tributários. O tribunal considera inadequado que uma regra de natureza administrativo-fazendária seja utilizada para balizar a justiça criminal em tema de tamanha relevância:
“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona em reconhecer a aplicação do princípio da insignificância ao delito de apropriação indébita previdenciária, quando, na ocasião do delito, o valor do débito com a Previdência Social não ultrapassar o montante de R$ 10.000,00, descontados os juros e as multas. Precedentes. Ressalva do Relator” (REsp 1.419.836/RS, DJe 23/06/2017).
Aliás, mesmo a possibilidade de considerar o valor mínimo estabelecido na Lei 10.522/02 é objeto de crítica por alguns dos ministros (embora seja jurisprudência do tribunal, como se extrai do aresto citado), entre os quais há quem considere despropositado impedir a aplicação da lei penal com fundamento nos critérios meramente financeiros que norteiam a regra estabelecida sobre a execução fiscal:
“Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum uma tese que, apoiada em mera opção de política administrativo-fiscal, movida por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição penal à iniciativa de uma autoridade fazendária. Sobrelevam, assim, as conveniências administrativo-fiscais do Procurador da Fazenda Nacional, que, ao promover o arquivamento, sem baixa, dos autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00, determina, mercê da elástica interpretação dada pela jurisprudência dos tribunais superiores, o que a Polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve acusar e, o que é mais grave, o que – e como – o Judiciário deve julgar.
Semelhante esforço interpretativo, a par de materializar tratamento penal desigual e desproporcional, se considerada a jurisprudência usualmente aplicável aos autores de crimes contra o patrimônio, consubstancia, na prática, sistemática impunidade de autores de crimes graves decorrentes de burla ao pagamento de tributos devidos em virtude de importação clandestina de mercadorias, amiúde associada a outras ilicitudes graves (como corrupção, ativa e passiva, e prevaricação) e que importam em considerável prejuízo ao erário e, indiretamente, à coletividade” (REsp 1.393.317/PR, DJe 02/12/2014 – Trecho do voto do min. Rogério Schietti Cruz).
12) O delito de receptação (art. 180 do CP Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. ), nas modalidades transportar, conduzir ou ocultar, é crime permanente, cujo flagrante perdura enquanto o agente se mantiver na posse do bem que sabe ser produto de crime.
Na receptação própria, o agente, sabendo ser a coisa produto de crime, a adquire (obtém a título gratuito ou oneroso), recebe (qualquer forma de aceitação da posse que não seja a propriedade), transporta (carrega), conduz (dirige) ou oculta (esconde).
Como se pode notar, a conduta de quem transporta, conduz ou oculta a coisa produto de crime é caracterizada pela permanência, em que a consumação de protrai no tempo, possibilitando, portanto, a prisão em flagrante a qualquer momento.
Em diversas ocasiões o STJ foi provocado a julgar a licitude de diligências policiais nas quais o crime de receptação havia sido constatado mediante violação de domicílio sem mandado judicial. Agentes processados pelo crime de receptação – especialmente com fundamento na forma de ocultação – buscavam a declaração de nulidade das provas obtidas por meio da entrada em imóveis sem prévia manifestação da autoridade judiciária.
O tribunal, no entanto, firmou a tese de que não há nulidade. A violação de domicílio sem mandado judicial é lícita quando empreendida para viabilizar a prisão em flagrante. Dessa forma, se policiais constatam, por exemplo, que o agente guarda em sua garagem determinado veículo roubado, e há indícios de receptação, é possível entrar no imóvel e efetuar a prisão independentemente de autorização judicial:
“1. A receptação, na modalidade ocultar, é crime permanente. Assim enquanto o agente estiver guardando ou escondendo o objeto que sabe ser produto de crime, consuma-se a infração penal, perdurando o flagrante delito. 2. A garantia constitucional de inviolabilidade ao domicílio é excepcionada nos casos de flagrante delito, não se exigindo, em tais hipóteses, mandado judicial para ingressar na residência do agente. Precedentes” (RHC 80.559/RS, DJe 26/04/2017).
13) No crime de receptação, se o bem houver sido apreendido em poder do acusado, caberá à defesa apresentar prova acerca da origem lícita da res ou de sua conduta culposa (art. 156 do CPP), sem que se possa falar em inversão do ônus da prova.
O art. 156 do CPPArt. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. estabelece que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer.
É equivocada, portanto, a alegação no sentido de que o ônus da prova criminal cabe ao autor. Nessa linha é a lição de Câmara LealComentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942, vol. I, p. 429, para quem “não é verdadeira a doutrina que atribui ao autor o encargo da prova. Toda alegação consistente em matéria de fato deve ser provada. Assim, pois, quem alega um fato deve produzir a prova do mesmo, seja autor ou réu”. De outra parte, também não prosperou o entendimento de Bentham, para quem o ônus da prova é sempre do réu, na medida em que há uma presunção de sinceridade militando em favor do autor, não se admitindo que alguém deduza uma acusação injusta e que não venha calcada no mínimo de prova.
Em verdade – repita-se – a prova do fato cabe a quem alega. Assim, cumpre à acusação a prova da tipicidade e de sua autoria, ou seja, dos fatos constitutivos. Ao réu cabe a prova dos fatos extintivos (prescrição, decadência, por exemplo), dos fatos impeditivos (causas de exclusão de culpabilidade, v.g.) e dos fatos modificativos (por exemplo, as causas excludentes da ilicitude).
Seguindo essa orientação, o STJ estabeleceu a tese de que a apreensão do bem em poder do agente impõe a ele a responsabilidade de comprovar a alegação de que sua conduta não foi criminosa. Se, por exemplo, alguém é surpreendido conduzindo um veículo roubado e alega tê-lo adquirido legalmente em um estabelecimento comercial, não é o Ministério Público quem tem de provar o contrário, mas é o próprio agente quem deve apresentar provas da licitude do negócio. Não se trata, portanto, de inversão do ônus da prova, mas de fazer cumprir a determinação legal de que a prova da alegação incumbe a quem a faz:
“A conclusão das instâncias ordinárias está em sintonia com a jurisprudência consolidada desta Corte, segundo a qual, no crime de receptação, se o bem houver sido apreendido em poder do paciente, caberia à defesa apresentar prova acerca da origem lícita do bem ou de sua conduta culposa, nos termos do disposto no art. 156 do Código de Processo Penal, sem que se possa falar em inversão do ônus da prova” (HC 388.640/SP, DJe 22/06/2017).
14) Talonário de cheques pode ser objeto material do crime de receptação, dada a existência de valor econômico do bem e a possibilidade de posterior utilização fraudulenta para obtenção de vantagem ilícita.
É um tanto controversa na doutrina a possibilidade de o talonário de cheques ser objeto do crime de furto. Isso ocorre porque há quem defenda a inexistência de valor econômico no talonário de cheques. E, como o objeto material do furto deve ser coisa alheia móvel economicamente apreciável, dizem que nessa situação o fato é atípico.
A orientação que prevalece, todavia, é de que o talão de cheques tem valor econômico intrínseco em virtude da ampla possibilidade de fraudes que podem ser cometidas por quem o possua indevidamente.
Se a conclusão é de que o talão de cheques tem valor econômico, e pode ser objeto de furto, nada impede que também seja receptado:
“Por fim, e ainda que superado tal óbice de ordem processual, cumpre ter presente que o pleito atinente à absolvição do crime de receptação não merece acolhimento, pois, “É de reconhecer-se potencialidade lesiva a um talonário de cheques, dado seu inegável valor econômico, aferível pela provável utilização das cártulas como meio fraudulento para a obtenção de vantagem ilícita por parte de seus detentores” (AREsp 1.040.873/MG, DJe 08/05/2017).
15) É inaplicável o princípio da consunção entre os crimes de receptação e porte ilegal de arma de fogo por serem delitos autônomos e de natureza jurídica distinta, devendo o agente responder por ambos os delitos em concurso material.
Não são raras as situações em que criminosos são surpreendidos portando ilegalmente armas de fogo produto de crime (por exemplo, furtadas da polícia ou de fóruns onde estavam armazenadas em virtude de apreensão anterior).
Confrontados com a acusação pelos crimes de porte ilegal e de receptação, tais agentes comumente questionam a imputação dos delitos em concurso alegando que a infração correspondente ao porte da arma absorve a receptação.
Verifica-se a relação de consunção quando o crime previsto por uma norma (consumida) não passa de uma fase de realização do crime previsto por outra (consuntiva) ou é uma forma normal de transição para o último (crime progressivo). Podemos falar em princípio da consunção nas seguintes hipóteses: 1) crime progressivo: se dá quando o agente, para alcançar um resultado/crime mais grave passa, necessariamente, por um crime menos grave. Ex.: homicídio (o agente tem que passar pela lesão corporal; a lesão é o crime de passagem); 2) “antefactum” impunível: é o fato anterior que está na linha de desdobramento para a ofensa mais grave. É o caso da violação de domicílio para praticar o furto. Note que o delito antecedente (antefato impunível) não é passagem necessária para o crime fim (distinguindo-se do crime progressivo). É um meio de executá-lo. Outros furtos ocorrem sem haver violação de domicílio; 3) “postfactum” impunível: pode ser considerado um exaurimento do crime principal praticado pelo agente, que, portanto, por ele não pode ser punido. Ex.: o agente introduz em circulação moeda falsificada por ele mesmo.
A relação entre o porte de arma e a receptação não se subsume a nenhuma dessas situações. A receptação não é passagem necessária para o porte de arma; nem está na linha de desdobramento para esse crime mais grave; tampouco o porte de arma pode ser considerado exaurimento do crime anterior.
Trata-se de dois delitos absolutamente diferentes, com objetividades jurídicas que de nenhuma forma se confundem: a punição do porte ilegal de arma visa à incolumidade pública, ao passo que a receptação é punida para proteger o patrimônio na medida em que, de certa forma, desestimula o cometimento das infrações que a podem anteceder.
Por isso, o STJ firmou a tese de que há concurso material entre as duas condutas:
“É inaplicável o princípio da consunção entre os delitos de receptação e porte ilegal de arma de fogo, por ser diversa a natureza jurídica dos tipos penais” (AgRg no REsp 1.494.204/RS, DJe 27/03/2017).
16) Justifica-se a opção do legislador pela imposição de pena mais grave ao delito de receptação qualificada em relação à figura simples pois a comercialização ou industrialização do produto de origem ilícita lesiona o mercado e os consumidores.
O tipo da receptação contempla uma forma qualificada consistente em “adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime”.
O crime é punido a título de dolo, discutindo a doutrina a natureza da expressão deve saber contida no tipo. Para uns (minoria), trata-se somente de dolo eventual, e, consequentemente, aquele que sabe (dolo direto) responde simplesmente pelo caput, modalidade menos rigorosa. Já para outros (maioria), a expressão sabe está contida naquela (deve saber), pois, se o legislador pretende punir mais severamente o agente que deveria ter conhecimento da origem criminosa do bem, é óbvia sua intenção em punir também aquele que possui conhecimento direto sobre a proveniência da coisa.
Os partidários da orientação de que o tipo pune apenas o dolo eventual argumentam que a pena cominada (reclusão de três a oito anos) é desproporcional, pois o indivíduo que, no exercício de atividade comercial, sabe que adquire coisa produto de crime, sofre punição mais amena do que aquele que apenas assume o risco.
Essa tese não vingou nos tribunais superiores, que majoritariamente endossam a pena cominada pelo legislador:
“Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal (RE 443.388/SP, Rel. Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 18/08/2009; RHC 117.143/RS, Rel. Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 25/06/2013) e da Terceira Seção desta Corte, ‘não se mostra prudente a imposição da pena prevista para a receptação simples em condenação pela prática de receptação qualificada, pois a distinção feita pelo próprio legislador atende aos reclamos da sociedade que representa, no seio da qual é mais reprovável a conduta praticada no exercício de atividade comercial’ (AgRg no REsp 1.497.836/SC, DJe 26/09/2016).
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