“Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas” – E. H. Gombrich, A História da Arte.
Com essa frase depreende-se que há, ao longo da existência humana (bem como na da História da Arte), uma luta perene para compreender o que vem, efetivamente, a ser “Arte”. Assim, cabe algumas indagações para delimitarmos nossa análise: o juízo estético seria sempre e só subjetivo? Teria características Universais, ou seja, um ponto comum para todos? Mesmo que possa parecer estranho, segundo alguns pensadoresPlatão ou Santo Agostinho por exemplo., a decodificação em sentido objetivo do “Belo” pode ser um grande desafio, mas nunca impossível. Observamos, contudo, que se trata, em síntese, de individualizar quanta ideologia está presente na obra de arte em análise.
A conclusão que atualmente predomina no campo da EstéticaAqui, empregado o termo como ramo da Filosofia. é: quanto mais forte a ideologia na obra e na sua estrutura, tanto mais limitado corre o risco de ser o seu valor estético e, como consequência, a obra esteticamente mais bem sucedida é aquela menos ideológica.
Sabemos, entretanto, que a Arte se revela sempre como “transgressão” (notaSem qualquer intenção de comparação estética ou axiológica, lembremos que a Nona Sinfonia de Beethoven foi considerada “revolucionária demais” para a época, tendo em vista que, em 1824, quebrou paradigmas ao introduzir um coral no quarto movimento da obra. Muitos consideraram “provocativa”. ). Há limitações para isto? Pois bem.
No último mês, em duas ocasiões, fomos surpreendidos pela promoção de sessões rotuladas como artísticas pelos seus organizadores e participantes, gerando grande repercussão e generalizada indignação.
Uma delas, realizada no Rio Grande do Sul, exibia, inclusive para crianças, desenhos eróticos representando cenas de zoofilia Embora tenha sido caracterizada pela Medicina Legal como parafilia ou transtorno sexual - a “zoofilia” ou “bestialismo”, nos dias atuais, encontra sustentáculo que se trata de orientação sexual.e retratando menores com apelo evidentemente erótico e com inscrições impróprias, como, por exemplo, “criança viada”.
Não obstante a repugnância que provocaram aquelas obras, concluiu-se não ter havido crime relativo à promoção de pornografia infantil porque nenhum menor de idade havia sido exibido em cena de sexo explícito ou pornográfica. Ainda que seja possível cogitar a responsabilidade civil pela sujeição de crianças ao material evidentemente impróprio – conduta que viola o propósito de proteção integral da criança e do adolescente, expresso no ECA – não havia, ao menos na análise decorrente das notícias divulgadas, conduta criminosa a ser reprimida nesse âmbito.
Nesta semana, contudo, a Arte, para muitos, ultrapassou qualquer limite. O Museu de Arte Moderna de São Paulo promoveu uma performance, denominada “La Bête”, consistente, segundo informou o próprio museu, numa “proposição artística interativa”, na qual um homem nu permanecia deitado no solo para que visitantes o tocassem. Ocorre que, como mostra um registro em vídeo de ampla circulação nas redes sociais, alguns visitantes induzidos a tocar o homem eram crianças (menor de 12 anos, nos termos do ECA).
Disso surge a inevitável indagação: houve crime? Ou se trata de Arte?
Muitos defendem a proposta do Museu de Arte Moderna (MAM) e lecionam que não havia o propósito de erotização, mas uma performance artística concebida para estimular o público a interagir com o artista (nu). Tratava-se, dizem, de genuína manifestação de liberdade artística e de expressão, que, embora possa chocar, revela tão somente a mudança nos paradigmas morais que estamos vivenciando.
Com a devida vênia, discordamos, havendo indícios de crime, mais precisamente do art. 240 do ECA (produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente).
Não é possível, com efeito, cingir a incidência desse tipo penal, e seu escopo de proteção, a considerações prévias que, levadas às últimas consequências, podem servir de justificativa para qualquer conduta aparentemente criminosa cometida sob o pretexto da expressão artística.
No mais, é um despropósito justificar aquela cena com a garantia da liberdade de expressão e de manifestação artística. Ora, há limites a serem observados no exercício de qualquer liberdade, limitações decorrentes não só do próprio sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais, mas também – e principalmente – do princípio universal e inarredável de que o exercício absoluto da liberdade é promotor do caos. Se até mesmo a liberdade de expressão por palavras sofre as limitações impostas na esfera dos crimes contra a honra, o que justificaria a garantia absoluta, inatacável de uma performance artística na qual se verifica uma possível infração penal contra criança?
A criança e o adolescente, não custa recordar, gozam de integral proteção, como estabelece a Lei nº 8.069/90, mais precisamente no seu artigo inaugural. Essa opção do legislador fundou-se na interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais que elevaram ao nível máximo de validade e eficácia as normas referentes às crianças e aos adolescentes, e que, por sua vez, foram inspirados nas normas internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos da Criança e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Assim, pode-se apontar que o reconhecimento jurídico dos direitos da criança e do adolescente se deu no Brasil já em um novo patamar, mais ligado aos processos emancipatórios e constituído por uma concepção de positivação dos direitos humanos, tornando-os fundamentais.
O caput do art. 227 da CF afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Em verdade, o art. 227 representa o metaprincípio da prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, tendo como destinatários da norma a família, a sociedade e o Estado.
Como admitir, diante de um sistema de proteção tão contundente, que alguém submeta impunemente uma criança a situação tão grotesca? O Estado – no caso, por meio dos órgãos justiça criminal – tem o dever de exercer a função legal e constitucional que lhe cabe nessa divisão de tarefas tão importante para a preservação da infância e para o saudável desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Reconhecemos que o ponto nevrálgico desta questão se revela num verdadeiro “nó górdio” para o Direito, pois caberá à sociedade se manifestar sobre o rumo que o Brasil adotará sobre o tema. De um lado temos historicamente a importante luta pelo direito à manifestação livre de ideias (do qual, como cidadãos livres, não abrimos mão). De outro, é histórica a natureza da sociedade de preservar valores e possuir elementos que buscam manter a ordem (eis aqui a presença do Direito) bem como os inconformados, que buscam transformá-la, quebrar paradigmas.
Posto isso, eis os pontos que deixamos para a reflexão de todos: a liberdade de expressão pode servir como pretexto para perpetrar violências, ainda mais contra pessoas ou grupos que não possuem meios concretos para se defender? Aqui se aplica a tolerância e o pluralismo? Esse subjetivismo é salutar para o Brasil? O tempo dirá sobre o rumo que a sociedade tomará e quais as consequências deste caminho…
Relutamos muito em escrever sobre o assunto em tela, especialmente por conta das paixões que dominam os leitores nas suas (inevitáveis) críticas. Enxergamos, por prognose, alguns escrevendo que a mesma liberdade que nos permitiu escrever esse texto deve ser garantida aos artistas que trabalharam na performance “La Bête” do MAM. Mas alerto aos respeitáveis leitores que discordarem do conteúdo aqui exposto que a nossa opinião foi contida. As palavras foram escolhidas de forma a não ofender quem quer que seja. Sabemos que a nossa liberdade de expressão não é absoluta. Essa consciência, portanto, de que existem limites a serem respeitados por todos, deveria ter sido observada na citada performance.