Informativo: 611 do STJ – Penal
Resumo: Crime de peculato em continuidade delitiva. Tabelião. Ausência de repasse de verbas destinadas ao Fundo de Desenvolvimento do Judiciário Estadual. Trancamento da ação penal. Falta de justa causa.
Comentários:
Dentre os crimes contra a Administração Pública, o peculato é certamente um dos mais cometidos, ao lado da corrupção. Sua figura básica (art. 312, caput, do CP) consiste em apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
Os titulares de cartórios de notas e de registro podem cometer o crime de peculato, pois são considerados servidores públicos para fins penais, tendo em vista que, por meio de concurso público, recebem delegação do poder público para atuação na esfera cartorária. Além disso, o art. 24 da Lei nº 8.935/94Art. 24. A responsabilidade criminal será individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a administração pública. Parágrafo único. A individualização prevista no caput não exime os notários e os oficiais de registro de sua responsabilidade civil. estabelece que à responsabilidade criminal se aplicam, no que couber, as disposições relativas aos crimes contra a Administração Pública.
Dos emolumentos recebidos pelos cartórios, sabe-se que, do valor total, apenas uma parte é destinada aos próprios cartórios. Se analisarmos, por exemplo, a tabela do tabelionato de notas do Estado de São Paulo, veremos que, para uma escritura com valor de R$ 1.000,00, os emolumentos constituem R$ 348,01, divididos entre o tabelião, o Estado, o IPESP, o Município, o Ministério Público, o Registro Civil, o Tribunal de Justiça e a Santa Casa. Isso significa que os responsáveis pelos cartórios devem recolher valores que não lhes pertencem para repassá-los aos titulares, o que nos induz à conclusão de que, em tese, a apropriação desses valores pelo titular do cartório se subsume tipo do peculato.
O cometimento do crime de peculato não permite, conforme a orientação dominante do STJ, a aplicação do princípio da insignificância e a extinção da punibilidade pela reparação do dano:
“É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de não ser possível a aplicação do princípio da insignificância ao crime de peculato e aos demais delitos contra Administração Pública, pois o bem jurídico tutelado pelo tipo penal incriminador é a moralidade administrativa, insuscetível de valoração econômica” (AgRg no AREsp 1.019.890/SP, DJe 24/05/2017).
“A reparação do dano antes do recebimento da denúncia não exclui o crime de peculato doloso, diante da ausência de previsão legal. Poderá influir, no entanto, quando da fixação da pena, nos termos do art. 16 do Código Penal” (HC 88.959/RS, DJe 06/10/2008).
O óbice à extinção da punibilidade pela reparação do dano provém do fato de que o peculato não tem natureza econômica, ainda que possa ter efeitos no erário. Não é possível aplicar, na seara de crimes cometidos por funcionários públicos contra a própria Administração, o regramento específico dos delitos tributários, nos quais o foco é o recebimento dos valores devidos (tanto que são vários os incentivos para que o sonegador efetue o pagamento). O que fundamenta um crime como o de peculato é sobretudo a moral administrativa, uma vez que a norma visa a resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a higidez da atividade estatal.
O STJ, no entanto, proferiu recentemente uma decisão que pode modificar esse cenário relativo à reparação do dano.
No caso, o titular de um cartório foi denunciado por peculato em continuidade delitiva porque havia se apropriado de valores que deveriam ter se destinado ao Fundo de Desenvolvimento do Judiciário, valores estes recebidos entre os emolumentos.
Ocorre que o agente se dirigiu à Procuradoria do Estado e obteve o parcelamento do valor devido, razão pela qual, argumentava, deveria ser reconhecida a suspensão da exigibilidade do crédito, de natureza tributária.
Isso não teria relevância na esfera criminal porque, como já ressaltamos, o peculato não é crime contra a ordem tributária. Ainda que o agente tenha se apropriado de valores de natureza tributária, a persecução penal poderia ocorrer independentemente de qualquer circunstância envolvendo os valores apropriados.
Mas, para o STJ, da forma como foi praticado, o delito pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, razão pela qual deve ser aplicada a súmula vinculante 24:
“(…) necessária a aplicação do distinguishing para afastar a subsunção do caso em exame aos precedentes desta Corte Superior. Isso porque, na presente hipótese, o delito pressupõe um crédito tributário, ainda pendente de deliberação na seara administrativa. De mais a mais, a imputação penal em exame deve se submeter à mesma ratio que deu origem ao verbete n. 24 de súmula vinculante do STF – segundo o qual “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo” –, já que os fatos narrados na inaugural acusatória pressupõem a apropriação de valores de natureza sui generis, porém, com substancial carga tributária, possibilitando, inclusive, o parcelamento do débito perante a Administração. Diante desse cenário, enquanto pendente de deliberação na esfera administrativa o referido débito – frise-se, in casu, composto por valores que também têm origem tributária –, não poderá ser imputado ao impetrante o fato típico descrito na denúncia, considerando o viés de ultima ratio do Direito Penal no ordenamento jurídico”.
RHC 75.768/RN, DJe 11/09/2017