Em meio a tantas idas e vindas da exacerbação da pena dos crimes de homicídio e lesão corporal culposos no trânsito devido à embriaguez do autor, a última novidade legislativa é a promovida pela Lei 13.546/17, que apresenta a ebriedade como uma qualificadora no homicídio culposo (artigo 302, § 3º., CTB§ 3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.) e na lesão culposa com resultado grave ou gravíssimo (artigos 303, § 2º. , CTB§ 2º A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.).
O problema é que no crime de Racha (artigo 308, CTBArt. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada: Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. ), o qual também foi alterado, ampliando-se sua redação pela Lei 13.546/17, há qualificadoras para os resultados morte e lesões graves ou gravíssimas (vide §§ 1º.§ 1º Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo. e 2º.§ 2º Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo., do artigo 308, CTB). Essas qualificadoras foram acrescidas pela Lei 12.971/14.
Quando ocorrer somente a embriaguez ou somente a prática do racha, em termos de tipificação, não haverá maiores dificuldades. No caso do sujeito embriagado ao volante que cause morte ou lesão grave ou gravíssima culposas, aplicar-se-á o disposto no artigo 302, § 3º., CTB ou 303, § 2º., CTB, conforme o caso. Se não estiver ébrio, mas participando de racha, então é claro que a aplicação somente poderá ser do artigo 308, §§ 1º. e 2º., CTB, conforme o caso. No plano da tipicidade, tudo bem. Entretanto, mesmo nestes casos surge uma lesão – Culposa? Imperícia Legislativa? – ao Princípio da Proporcionalidade. Senão vejamos:
Não há motivo aparente para que o ébrio ou o participante de racha, ao causarem morte ou lesões graves nessas situações tenham tratamentos diversos. Ambas as condutas são altamente reprováveis em idêntico patamar. O correto seria um tratamento igualitário, na verdade, surgindo o racha, como a embriaguez, na forma de qualificadoras do homicídio e da lesão culposos (mera sugestão de “lege ferenda”). Mas, não é isso que ocorre, como já visto. E pior, quando a morte ou lesão grave ocorre culposamente no racha, as penas são maiores do que as previstas para os mesmos casos com embriaguez do autor. A morte no acidente com o autor do homicídio culposo embriagado tem pena reclusão de cinco a oito anos; já no caso de racha, a pena sobe, sem justificativa plausível, para reclusão de cinco a dez anos. No caso de lesões culposas com resultados graves ou gravíssimos no trânsito, estando o agente embriagado, a pena prevista é de reclusão de dois a cinco anos; quanto ao racha, no mesmo caso, a pena é de reclusão de três a seis anos.
Não há motivo plausível para esse tratamento diverso em clara lesão ao Princípio da Proporcionalidade, o que ocorre a cada alteração infeliz do legislador nos crimes do Código de Trânsito, consertando uma coisa e destruindo outra, cobrindo a cabeça e descobrindo os pés. As reformas legislativas no CTB se assemelham a remédios que causam enfermidades iatrogênicasEm resumo, são doenças iatrogênicas aquelas causadas por efeitos colaterais de medicamentos ou mesmo interações medicamentosas. (basta ver os estragos feitos pelas Leis 11.705/08, 12.760/12, 12.971/14, 13.281/16 e, finalmente, 13.546/17).
O que fazer diante da clara e evidente ofensa à proporcionalidade nesses casos? Eis uma incógnita.
Caberá aos Tribunais resolver a questão, embora ultimamente também venham criando ainda mais confusão do que solucionando.
Uma coisa certamente não pode ser feita. Esta é aplicar aos casos de somente embriaguez com morte e lesão grave ou gravíssima as penas mais duras do artigo 308, CTB, porque então, para retificar uma lesão à proporcionalidade, se estaria pisoteando a legalidade e o princípio “Favor Rei”.
É plausível a aplicação aos casos de racha das penas previstas no preceito secundário dos artigos 302, § 3º. e 303, § 2º., CTB, considerando ter havido uma derrogação tácita por incompatibilidade provocada pela situação de desproporcionalidade. A lei posterior prevê penas menos gravosas para os casos de embriaguez e não haveria justificativa para que nos casos de racha, a pena fosse maior. Em situação semelhante os Tribunais de Justiça de São Paulo e de Minas Gerais, bem como o STJ já reconheceram a inconstitucionalidade apontada pela doutrina do preceito secundário do artigo 273, § 1º. – B, V, CP § 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: (...) V - de procedência ignorada;, que trata de medicamentos de origem ignorada, com pena superior ao tráfico de drogas ilegais, determinando a aplicação da pena prevista para este segundo crime, eis que a pena determinada para o primeiro seria muito gravosa em comparação com o tráfico (vide Arguição de Inconstitucionalidade em Habeas Corpus nº 239.363/PR – STJ, 6ª. Turma, 18.10.2012).
Mas, será que isso vai ocorrer nos casos concretos a serem julgados pelos tribunais? A solução dogmática mais correta seria essa, entretanto a imprevisibilidade e insegurança jurídicas neste país nunca foram tão intensas.
O outro caminho é simplesmente ignorar a ofensa à proporcionalidade e aplicar os dispositivos de acordo com a adequação típica, seja dos preceitos primários, seja dos secundários, até que o próprio legislador venha a consertar, um dia, definitivamente, essa desproporção por ele mesmo criada.
A situação se agrava ainda mais e fica mais complexa, até mesmo em termos de adequação típica se o autor da morte ou lesão grave ou gravíssima culposos estiver embriagado “e” participando de racha. Qual será então o dispositivo a aplicar? Os artigos 302 e 303 e suas qualificadoras mais brandas por causa da embriaguez? Ou o artigo 308 e seus parágrafos e suas qualificadoras mais rigorosas devido ao racha?
Os caminhos podem ser muitos. Em primeiro lugar, se por acaso vingar a tese de que os §§ 1º. e 2º., do artigo 308, CTB tornam-se ilegítimos devido à ofensa à proporcionalidade, então, em qualquer caso, a aplicação somente poderá ser a dos artigos 302 ou 303 e suas qualificadoras, já que tornar-se-iam letra morta os §§ 1º e 2º., do artigo 308, CTB. Nesse caso ficaria em aberto a pergunta do que fazer em relação ao crime de racha. A solução pode ser a absorção, o que não nos parece mais correto, ou o concurso formal com o artigo 308, “caput”, CTB, o que nos parece mais acertado. Afinal a prática do racha não pode ser considerada algo irrelevante nesse quadro.
Num segundo quadro, considerando a coexistência das qualificadoras do homicídio culposo e da lesão culposa no trânsito e do racha, ainda poder-se-ia cogitar da aplicação da pena mais branda dos parágrafos dos artigos 302 e 303, CTB com base no Princípio do “Favor Rei”, permanecendo a problemática da absorção ou concurso formal com o crime de racha (artigo 308, “caput”, CTB), nos mesmos termos acima expostos. Entretanto, nos parece que uma terceira via seria a mais correta, em se mantendo as qualificadoras de ambos os dispositivos. Havendo embriaguez e racha com morte ou lesões graves ou gravíssimas, deveria ser aplicada a pena mais grave prevista nos parágrafos do artigo 308, CTB. A embriaguez ao volante (artigo 306, CTBArt. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.) poderia ser absorvida, o que não parece viável ou, ingressar em concurso formal, o que nos parece mais acertado. Neste caso também a direção embriagada não parece ser algo desprezível.
Enfim, essas são as possíveis soluções para a mais nova miscelânea provocada pelo legislador no Código de Trânsito Brasileiro. Esperemos para constatar qual será a orientação predominante da doutrina e dos tribunais.