Em uma matéria publicada no último dia 21 pelo jornal The New York Times, o jornalista Nick Wingfield apresenta a nova loja da Amazon em Seattle, no Estados Unidos, concebida num formato muito diferente do que estamos acostumados.
A entrada, ao contrário da maioria dos estabelecimentos comerciais, não é aberta para que as pessoas circulem livremente. Há catracas semelhantes às existentes em estações de metrô, pelas quais só passam as pessoas que têm o aplicativo da Amazon instalado em seus aparelhos celulares.
No interior do estabelecimento não há caixas registradoras nem funcionários responsáveis pela cobrança dos produtos. Em todas as prateleiras há câmeras que registram quando cada unidade de uma mercadoria é retirada do lugar. O sistema interpreta aquele movimento como se o cliente estivesse pondo o produto em um carrinho e o insere na sacola virtual aberta pelo aplicativo no momento em que se deu a entrada na loja. Caso o item seja colocado de volta na prateleira, o sistema o retira da sacola virtual. Uma vez encerrada a coleta dos produtos desejados, basta que o cliente se retire da loja para que o sistema promova a finalização da compra e efetue o respectivo débito no cartão de crédito cadastrado.
O sistema de câmeras que monitoram a retirada dos produtos das prateleiras é sofisticadíssimo. São centenas de aparelhos que identificam cada item que compõe o estoque.
Com a permissão de um funcionário, o jornalista tentou burlar o monitoramento: embrulhou em uma sacola um pacote de latas de refrigerante antes de retirá-lo da prateleira, escondeu-o embaixo do braço e saiu da loja. Recebeu ainda assim a cobrança.
Diante disso, indaga-se: poderia essa forma de organização do estabelecimento comercial tornar impossível a consumação de um furto segundo a lei brasileira? Pensamos que não.
Inicialmente, destacamos a já conhecida súmula 567 do STJ, segundo a qual “Sistema de vigilância realizado por monitoramento eletrônico ou por existência de segurança no interior de estabelecimento comercial, por si só, não torna impossível a configuração do crime de furto”.
Parte-se do princípio de que o sistema de segurança – eletrônico ou não – não é capaz de, sozinho, impedir que a subtração se perfaça, exatamente porque há possibilidade de que o agente se desvencilhe da segurança.
Mas, considerando as circunstâncias dos casos concretos, o STF concedeu habeas corpus em dois casos em que “a forma específica mediante a qual os funcionários dos estabelecimentos exerceram a vigilância direta sobre os acusados, acompanhando ininterruptamente todo o trajeto de suas condutas, tornou impossível a consumação do crime, dada a ineficácia absoluta do meio empregado”. Mas, ressaltou, a conclusão pela atipicidade depende sempre da análise pormenorizada das circunstâncias do caso concreto (HC 844.851/SP e RHC 144.516/SC).
Não seria este o caso do sistema implantado pela loja apresentada na matéria jornalística? Afinal, nem mesmo disfarçadamente o jornalista conseguiu enganar as câmeras que monitoram a retirada dos produtos das prateleiras.
A nosso ver – e à luz da lei brasileira –, o sistema de monitoramento jamais pode tornar impossível a consumação do furto.
Sabemos que o crime impossível pode ocorrer de duas formas: por absoluta impropriedade do objeto material ou por absoluta ineficácia do meio empregado pelo agente. A impropriedade deve ser inerente ao objeto, assim como a ineficácia deve ser inerente ao meio empregado. Daí porque se diz, no primeiro caso, impossível o homicídio se a pessoa visada já estava morta no momento em que ocorreu a ação, porque a vida, característica inerente à pessoa e que a torna apta a ser vítima de homicídio, já não existia. Daí também a razão de dizer, quanto à ineficácia do meio, que a arma de brinquedo jamais consumaria o homicídio, porque lhe falta a característica inerente às armas de fogo: a capacidade de efetuar disparos.
Ocorre que o sistema de vigilância não é inerente ao meio empregado – e tampouco ao objeto material –, mas é algo completamente externo, que, portanto, não pode ser considerado para caracterizar o crime impossível nos moldes em que dispõe o art. 17 do Código Penal. Com efeito, o fato de haver um sistema de vigilância em torno de um objeto não modifica sua natureza nem tem absolutamente nenhuma relação com o meio eleito pelo agente.
Suponhamos que alguém planeje o furto de uma joia valiosíssima exposta em uma joalheria dotada dos mais modernos aparatos de segurança: câmeras, sensores e agentes armados. O furtador se infiltra entre os seguranças e conta com a colaboração de um comparsa para desativar as câmeras e os sensores. É evidente que o sucesso do furto, nessas circunstâncias, é dificílimo, mas não se pode dizer, de forma nenhuma, que a consumação é impossível porque o meio eleito é absolutamente ineficaz. Ora, ao contrário: o meio, no caso, é o usual para que se cometa um furto. O fato de haver algo externo que possa dificultar a prática do crime não tem o poder de modificar a natureza da forma como ele é praticado. Quando se diz que o crime é impossível por absoluta ineficácia do meio, isso quer dizer que em qualquer situação o meio de que lança mão o agente seria incapaz de provocar o resultado. Alguém que, querendo matar outra pessoa com algumas gotas de veneno, adiciona por engano no café algumas gotas de água não pode, em nenhuma hipótese, consumar o homicídio. Mas alguém que, querendo furtar, planeja burlar o sistema de segurança, pode consumar o furto lançando mão desse meio, exatamente porque o sistema de segurança, não obstante seja um fator que dificulta a consumação, não tem nenhuma relação com a natureza do meio como o delito é cometido.
Dá-se o mesmo no caso do agente que – a exemplo do que encenou o jornalista – entra na loja para subtrair um produto tentando ludibriar o sistema de câmeras que monitoram o estoque. O meio é adequado para a subtração; não há outra forma de furtar um produto a não ser se apoderando dele. As câmeras – que de resto podem falhar – são antes de tudo um obstáculo, não estão na esfera das ações de que pode lançar mão o furtador para subtrair um objeto.
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