O tema foi objeto de questionamento na 2ª fase do concurso de ingresso para promotor de justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo, com a seguinte questão discursiva: “Em ação civil pública, proposta pelo Ministério Público, pode o Promotor de Justiça fazer negócio ou convenção processual?”
Em primeiro lugar, necessária a apresentação do conceito de negócio ou convenção processual. Há duas espécies de negócios jurídicos ou convenções processuais: unilaterais e bilaterais.
Em relação aos negócios jurídicos unilaterais – que são aqueles nos quais apenas a vontade de uma das partes é considerada primordial para sua verificação – a resposta à pergunta é negativa, isso porque são exemplos de tal negócio jurídico a renúncia ao direito de recorrer, a desistência do prazo recursal ou o reconhecimento jurídico do pedido.
Tratando-se de atos relacionados ao direito material e por se tratar o Ministério Público de legitimado considerado por parte da doutrina como extraordinário autônomo (Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.), ou seja, condutor do processo em nome de terceiros ou ordinário autônomo (posição de Nelson Nery e Rosa Maria Andrade Nery), pois age institucional e objetivamente em defesa da sociedade, não sendo o titular do direito material posto em causa, em tese não poderia o Promotor de Justiça praticar tais negócios jurídicos processuais unilaterais. A regra disposta na própria Lei da Ação Civil Pública (art. 5º, par. 3º, da Lei 7.347/85) é dispositivo que embasa esse entendimento:
“Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa.”
Já os negócios jurídicos ou convenções processuais bilaterais exigem o acordo de vontade entre as partes.
A doutrina considera negócios jurídicos processuais típicos todas as hipóteses em que o próprio legislador prevê expressamente determinada conduta ou ato – unilateral ou bilateral – como por exemplo, as previstas nos arts. 313, II, (suspensão do processo por convenção das partes) e 373, par. 3º, ambas do CPC (convenção sobre redistribuição do ônus da prova). De outro lado, atípicos são aqueles que não tem expresso tratamento legal.
Os negócios jurídicos bilaterais típicos, além de situados em diversos dispositivos específicos, foram também tratados no art. 190, do CPC, mas de forma mais ampla:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Referido dispositivo legal é considerado pela doutrinaNEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil vol. único. 9ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017. p. 389 como “cláusula geral de negociação processual”, pois permite de forma “aberta” que as partes estabeleçam acordos sobre questões processuais e procedimento, contendo aqui, portanto, a classificação de negócios jurídicos atípicos (aqueles que não possuem tratamento específico em lei).
Como o dispositivo traz expressa referência ao “momento” de pactuação – “antes ou durante o processo” – fundamental apresentar breve consideração a respeito dos negócios jurídicos ou convenções pré-processuais.
Nesse passo, relevante afirmar que em sede pré-processual os acordos firmados pelo Ministério Público são denominados compromissos de ajustamento de conduta (mais conhecidos como termos de ajustamento de conduta – TACs), reconhecidamente acordos pré-processuais.
Os compromissos de ajustamento foram instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 211, da Lei Federal n. 8.069/90) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal n. 8.078/90) que acrescentou o par. 6º, no art. 5º, da Lei Federal n. 7.347/85 (Lei da Ação civil Pública):
“Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.”
Hugo MazziliMAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 309. sempre foi defensor de que o compromisso de ajustamento de conduta contivesse determinados limites, não sendo autorizado dispensar, total ou parcialmente, as obrigações reclamadas para a efetiva satisfação do interesse lesado, restrito às “condições de cumprimento das obrigações, como modo, tempo, lugar ou outras semelhantes”.
Assim, os mesmos limites dos acordos firmados pelo Ministério Público em termos de ajustamento de conduta (TACs) devem ser observadosMANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 29. na ação civil pública, porquanto os interesses envolvidos são os mesmos: os interesses “sociais”, ou seja, relacionados ao “bem comum” ou valores e bens mais elevados. Por estas razões, para parte da doutrina não seria possível a formalização de todas e quaisquer convenções pré-processuais, ou mesmo processuais pelo Ministério Público.
É que certas convenções pré-processuais ou processuais atípicas, tais como o adiantamento e suporte de custas periciais pelo Ministério Público, poderiam ser consideradas até mesmo ilegais (isso porque contrárias a expressa previsão do art. 18, da Lei 7.347/85) em prejuízo à própria instituição do Ministério Público.
Contudo, para outros autores como Daniel Amorim Assumpção NevesNEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil vol. único. 9ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017. p. 395., a admissão do negócio jurídico processual em processos que envolvam direitos que admitam a autocomposição não se confunde com a indisponibilidade dos interesses ou direitos tutelados, isso porque mesmo nos processos que versam sobre direito indisponível é cabível a autocomposição, que nesse caso não estaria relacionada com o objeto material, mas sim às “formas de exercício desse direito, tais como os modos e momentos de cumprimento da obrigação”.
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.JR. Fredie Didier; JR. Hermes Zaneti. Curso de Direito Processual Civil – vol.4. 12ª ed., Salvador: Juspodivm, 2018. p. 338 e 347. também defendem expressamente o cabimento de celebração de negócios processuais atípicos em processos coletivos, pelo Ministério Público, inclusive.
A respaldar esse entendimento está a Resolução n. 118/14, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que previu em sua seção V, os artigos 15 a 17, recomendando expressamente a utilização de convenções processuais pelo Ministério Público. Cabe a menção aos arts. 16 e 17, abaixo transcritos:
“Art. 16. Segundo a lei processual, poderá o membro do Ministério Público, em qualquer fase da investigação ou durante o processo, celebrar acordos visando constituir, modificar ou extinguir situações jurídicas processuais.
Art. 17. As convenções processuais devem ser celebradas de maneira dialogal e colaborativa, com o objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos por intermédio da harmonização entre os envolvidos, podendo ser documentadas como cláusulas de termo de ajustamento de conduta.”
Importante ainda ressaltar que, seguindo esse entendimento que restou sedimentado em Resolução do CNMP, o Fórum Permanente de Processualistas Civis aprovou enunciados favoráveis à possibilidade de o Ministério Público celebrar convenções ou negócios jurídicos processuais e sobre o cabimento de tais negócios em ações coletivas.
O enunciado 253 dispõe sobre a expressa possibilidade de o Ministério Público celebrar negócio jurídico processual:
“O Ministério Público pode celebrar negócio processual quando atua como parte.”
O enunciado 255 dispõe sobre a viabilidade de formalização dos negócios jurídicos processuais em ações civis públicas (coletivas):
“É admissível a celebração de convenção processual coletiva.”
De se ver que o tema permite a defesa de duas posições devidamente embasadas do ponto de vista jurídico, tanto no sentido da possibilidade, ou não, de o Ministério Público, por meio de seu promotor de justiça, firmar negócios jurídicos ou convenções processuais em ações civis públicas.
Bibliografia consultada
JR. Fredie Didier; JR. Hermes Zaneti. Curso de Direito Processual Civil – vol.4. 12ª ed., Salvador: Juspodivm, 2018.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6ª ed., São Paulo: RT, 2004.
MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil vol. único. 9ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017.