Em janeiro de 2018, o governador Geraldo Alckmin sancionou parcialmente um projeto de lei que estabelecia, no âmbito dos estabelecimentos prisionais do Estado de São Paulo, a possibilidade de remição da pena pela leitura.
A sanção contemplou apenas os artigos 1º e 2º do projeto que havia sido aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo. Tais dispositivos estabelecem, respectivamente, que “Fica instituída, no âmbito dos estabelecimentos carcerários das comarcas do Estado, a possibilidade de remição da pena pela leitura” e que “A remição da pena pela leitura consiste em proporcionar aos presos custodiados alfabetizados a possibilidade de remir parte da pena pela leitura mensal de uma obra literária clássica, científica, filosófica ou religiosa, dentre outras, de acordo com as obras disponíveis na unidade prisional”. Os parágrafos únicos dos mencionados dispositivos e os artigos 3º a 13 foram todos vetados pelo governador, basicamente sob o argumento de vício formal de constitucionalidade.
Com efeito, argumentou o chefe do Executivo estadual que a matéria disciplinada no projeto sob sua apreciação era atinente à execução penal, que por sua vez envolve elementos de Direito Penal e de Direito Processual Penal, disciplinas que, por disposição do art. 22, inc. I, da Constituição Federal, são de competência privativa da União. A Lei de Execução Penal já estabelece que as situações nas quais se admite a remição são o trabalho e o estudo, razão por que não poderia o Legislativo estadual inserir nova modalidade não contemplada na lei federal, sob pena de ofensa ao pacto federativo.
Além disso, o veto fez referência à Recomendação 44/2013 do CNJ – que atribui à autoridade penitenciária a constituição de projeto específico visando à remição pela leitura – para apontar que a iniciativa tomada pela Assembleia Legislativa dizia respeito a matéria atribuída ao Poder Executivo.
Não se ignora que a matéria tratada na lei estadual diz respeito à execução penal e tem reflexos diretos na pena executada, uma vez que disciplina a remição. Não nos parece, no entanto, que a lei crie uma espécie de desconto da pena não contemplada na lei federal, senão que apenas disciplina a forma pela qual o benefício já existente na norma federal deve ser aplicado no âmbito dos estabelecimentos prisionais paulistas.
Isto porque embora a remição pela leitura não esteja literalmente disciplinada na Lei de Execução Penal, sua incidência tem sido amplamente reconhecida com base em analogia in bonam partem que se baseia no desconto da pena por meio do estudo, isto é, a leitura e a resenha de obras literárias seriam apenas formas por meio das quais o preso pode se dedicar ao estudo. O STJ é unânime a esse respeito:
“2. A redação do artigo 126 da LEP deixa clara a preocupação do legislador com a capacitação profissional do interno e com o estímulo a comportamentos que propiciem a readaptação de presos ao convívio social. 3. O sentido e o alcance do artigo 126 da LEP podem ser ampliados pelo aplicador do direito, com o uso da hermenêutica, para abarcar atividades complementares como o estudo ou a simples leitura, com a finalidade de readaptação e ressocialização do preso, além de incentivar o bom comportamento e a disciplina. 4. Não é outro o espírito da Recomendação n. 44⁄2013, do Conselho Nacional de Justiça, ao dispor sobre atividades educacionais complementares que deverão ser consideradas pelos Tribunais para fins de remição da pena pelo estudo. 5. Essa particular forma de parametrar a interpretação da lei (no caso, a LEP) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos (incisos II e III do art. 3º). Mais: Constituição que tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I e III do art. 3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo de nossa Constituição caracteriza como “fraterna” (HC 94163, Relator Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma do STF, julgado em 02⁄12⁄2008, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-04 PP-00851)” (5ª Turma, HC 390.721/RS, j. 08/08/2017).
“O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que é compatível com o art. 126 da Lei de Execução Penal – LEP a remissão pela leitura” (6ª Turma, HC 317.679/SP, j. 15/12/2015).
Nesse espirito, o CNJ editou a Recomendação 44/2013, cujo art. 1º, inc. V recomenda aos tribunais que estimulem e promovam “no âmbito das unidades prisionais estaduais e federais, como forma de atividade complementar, a remição pela leitura, notadamente para apenados aos quais não sejam assegurados os direitos ao trabalho, educação e qualificação profissional”. Em seguida, considerando que a leitura não se enquadra diretamente na frequência escolar de que trata a LEP, a norma administrativa estabelece diversos critérios para que a pena seja adequadamente descontada.
Pois bem, a Assembleia Legislativa de São Paulo nada mais fez do que tomar o cuidado de promover, por meio de lei em sentido estrito, a disciplina que a norma administrativa já recomendava aos tribunais.
De qualquer forma, o Legislativo estadual derrubou os vetos impostos pelo governador e restaurou na íntegra o projeto aprovado, que, como já adiantamos, impõe diversas regras para que a remição pela leitura seja criteriosa. Vejamos a seguir como, no geral, se estabelecem as novas regras.
Destaca-se inicialmente que o art. 1º, parágrafo único, admite a remição inclusive em benefício de presos cautelares. Repete-se, com isso, a permissão já existente no § 7º do art. 126 da LEP, que estende as regras da remição à prisão não decorrente de condenação.
O parágrafo único do art. 2º disciplina a remição no caso em que o preso escolhe a leitura da Bíblia: “Sendo a Bíblia a obra literária escolhida, esta será dividida em 39 (trinta e nove) livros segundo o Velho Testamento e 27 (vinte e sete) livros integrantes do Novo Testamento, considerando-se assim a leitura de cada um destes livros como uma obra literária concluída”.
Há quem enxergue inconstitucionalidade na inclusão da remição pela leitura da Bíblia, que representaria a eleição, pelo sistema penitenciário estadual, de determinada vertente religiosa em detrimento das demais, o que ofenderia a laicidade estatal.
Parece-nos, todavia, algo um tanto exagerado ver nisso ofensa ao Estado laico, pois de forma nenhuma se impõe a leitura do livro religioso. Aliás, a lei deixa claro que se trata de uma opção ao iniciar com a expressão “Sendo a Bíblia o livro escolhido (…)”. Não há inconstitucionalidade pelo simples fato de a lei mencionar a obra fundamental do Cristianismo e não outros livros de caráter semelhante relativos a outras religiões, que, de resto, não são vetados. Ainda que possa parecer inusitado, é perfeitamente possível concluir que o legislador estadual levou em consideração o fato de que a Bíblia é o livro mais lido do mundo e tem, na prática, muito maior influência do que qualquer outro de natureza semelhante, inclusive em iniciativas religiosas em curso nos estabelecimentos prisionais.
O § 1º do art. 4º deixa expresso o óbvio: que só podem participar do programa de remição os presos capazes de leitura e escrita. A habilidade de escrita é necessária porque, ao final do prazo de trinta dias para a leitura da obra selecionada, o preso terá dez dias para produzir uma resenha (art. 7º). Para que haja critério e a atividade seja válida, devem ser formadas oficinas de leitura durante as quais os presos serão instruídos a observar os seguintes critérios (art. 6º): a) estéticos: o texto deve respeitar parágrafos, margens, letra cursiva e legibilidade e não deve conter rasuras; b) limitação ao tema: o preso deve se ater ao conteúdo da obra lida, evitando estender-se a outros temas; c) fidedignidade: não devem ser admitidas resenhas que caracterizem plágio.
Tendo em vista que a remição pela frequência escolar já está disciplinada na LEP e que a leitura tem sido considerada, como já ressaltamos, uma espécie de analogia in bonam partem para ampliar o acesso à educação e à cultura como incentivo à ressocialização, o § 2º do art. 4º estabelece a preferência na participação de presos que ainda não tenham acesso ou não estejam matriculados em programas de alfabetização e escolarização. A preferência faz sentido, pois se a remição pela leitura é uma forma de expandir a reinserção social contornando a falta de estrutura para o ensino regular, não seria adequado recrutar, para as oficinas de leitura, presos que estejam matriculados em programas de ensino comum ou profissionalizante.
A seleção dos presos e a orientação das atividades competem a uma comissão nomeada e presidida pelo diretor da unidade carcerária (art. 5º). Das oficinas de leitura podem participar o escritor que tenha indicado a obra e o autor do livro objeto de estudo. Também se permite a participação dos funcionários da unidade prisional e de possíveis colaboradores (como voluntários que desejem auxiliar os presos). A lei também admite que o governo estadual firme convênios, termos de cooperação, ajustes ou instrumentos congêneres com órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, e ainda admite a participação das igrejas que normalmente atuam na recuperação dos detentos (art. 12).
À comissão nomeada compete analisar as resenhas produzidas pelos presos, observando os aspectos já destacados no art. 6º (estética, limitação ao tema e fidedignidade) e aqueles relacionados à compreensão do conteúdo do livro por meio de arguição do preso participante. Note-se que, segundo já decidiu o STJ, não se impede a remição se, embora haja dúvida a respeito da absorção da obra pelo preso, não se comprove má-fé de sua parte:
“Os vícios administrativos identificados pelo Tribunal de origem não têm o condão de obstar o direito do apenado à remição. Uma vez implementado o projeto de remição por leitura na unidade prisional em que cumpre pena o paciente, não comprovada má-fé do apenado e ausente dúvida fundada a respeito da efetiva leitura e absorção da obra literária pelo sentenciado, impõe-se a concessão do direito ao apenado” (HC 349.239/SP, j. 04/10/2016).
A comissão também deve atestar o prazo de trinta dias de leitura (art. 10). O resultado da análise promovida pela comissão será remetido ao juízo da execução instruído com a resenha, a declaração de sua fidedignidade ou de plágio e com os atestados da arguição oral e do tempo de leitura. Ouvido o Ministério Público e a defesa, o juízo decidirá sobre o aproveitamento do participante e a correspondente remição.
Caso a comissão constate que a resenha é produto de plágio, o juiz da execução pode arguir oralmente o preso autor do trabalho. Se efetivamente constatado o plágio, o tempo de leitura não pode ser aproveitado para os efeitos da remição, ainda que o preso produza outra resenha sobre a mesma obra.
Para que o juízo da execução possa acompanhar o andamento e a efetividade das oficinas de leitura, a direção da unidade prisional deve encaminhar, mensalmente, cópia do registro de todos os participantes, com informação referente ao item de leitura de cada um deles (art. 11).
Por fim, destacamos a contagem do tempo, que deve ser feita à razão de quatro dias de pena para cada ciclo de trinta dias de leitura, sendo que, no período de doze meses, até quarenta e oito dias da pena podem ser atingidos pela remição (art. 8º), que pode inclusive ser concedida de forma cumulativa com o trabalho, se as atividades forem compatíveis (art. 9º). É, aliás, a orientação do STJ, que considera a atividade de leitura complementar, não subsidiária:
“O fato de o estabelecimento penal onde se encontra o paciente assegurar acesso a atividades laborais e à educação formal, não impede que se obtenha também a remição pela leitura, que é atividade complementar, mas não subsidiária, podendo ocorrer concomitantemente, havendo compatibilidade de horários” (HC 353.689/SP, j. 14/06/2016). Lembramos apenas que, com a finalidade de atingir o maior número possível de presos, a lei estadual estabelece preferência de recrutamento, para as oficinas de leitura, entre os que não estejam matriculados no ensino regular.
Vemos, portanto, que a lei estadual disciplina, no âmbito das unidades prisionais paulistas, um benefício já reconhecido como extensão da remição pelo estudo, e o faz para garantir que os presos obtenham o benefício de maneira criteriosa e adequada à realidade das instalações penais estaduais.
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