Acho curioso como o jurista tem uma tendência para a repetição de ideias transmitidas sem reflexões ou filtragens.
Parece-me que, muita vez, termina por se aceitar o argumento da autoridade (normalmente, essa autoridade é a própria lei), sem considerar a autoridade do argumento ou, sequer, contextualizá-lo.
De modo interessante, a série Merlí, do NetFlix, vem se discutindo essa absorção acrítica de informações, através da atuação de um professor de Filosofia que usa métodos pouco ortodoxos para estimular os alunos a pensar com liberdade. Na mesma linha, anteriormente, na belíssima película Sociedade dos Poetas Mortos, um professor incentivava os seus pupilos a pensar mais longe, propondo que aproveitassem o dia para refletir: CARPE DIEM!!!
No campo jurídico, é comum aceitar passivamente certas afirmações, sem reflexão acerca do seu contexto ou razoabilidade. São criadas, assim, verdades absolutas, incorporadas sem que se saiba bem o motivo…
É mais fácil assim. Pensar, em certos casos, pode ser muito difícil. Já dizia CAETANO VELOSO, “estar provado que só é possível filosofar em alemão…”
Dentre essas verdades absolutas absorvidas sem maiores reflexões está o momento de dissolução do casamento. A partir do que reza o art. 1.571 do CC02 (inspirado, por seu turno, no Par. 6o do art. 226 da CF), afirma-se que o matrimônio pode ser dissolvido pela morte e pelo divórcio. Foi estabelecido, então, um certo consenso doutrinário e jurisprudencial de que a superveniência do óbito de um dos consortes (que, pelos vistos, não estava com tanta sorte….) na pendência da ação de divórcio importaria em perda do objeto da demanda e extinção imediata do casamento. Gerava-se, assim, extinção do processo sem resolução de mérito.
Um enorme problema, no entanto, se apresenta: onde foi estabelecida essa hierarquia entre a morte e o divórcio, de forma que aquela esvaziaria este? Efetivamente, não há em qualquer norma essa prevalência!
É preciso interpretar a norma com razoabilidade (proporcionalidade). Ao dispor que o casamento se dissolve (extinção) pela morte ou divórcio, a norma não estabeleceu gradação, preferência, mas, em verdade, uma alternatividade. Confere, assim, às pessoas casadas a possibilidade de dissolver seu casamento em vida, por meio do divórcio. Não o fazendo, o falecimento de um deles produzirá a dissolução.
Ora, se há propositura de uma ação de divórcio (litigiosa ou amigável), a vontade de colocar fim ao vínculo pelo divórcio está explicitada, de forma inconcussa, induvidosa. Até porque a obtenção do divórcio é um direito potestativo extintivo de quem é casado. Basta, portanto, a manifestação de vontade da pessoa para que se produzam os efeitos, automaticamente. A atuação do Poder Judiciário é meramente chancelatória, homologatória, não se podendo negar o direito ao divórcio – que, desde a EC 66/10, não mais se submete a qualquer prazo ou causa.
Era o que os romanos denominavam “voluntas divorciandi” – a vontade de não permanecer casado!!!
Simples assim: uma pessoa ajuíza uma ação de divórcio (depois de contratar advogado, assinar uma procuração, pagas as custas do processo….) porque não mais quer permanecer casada. Por óbvio, que essa pessoa está exercendo o seu direito potestativo ao divórcio. Direito que lhe foi conferido pelo Texto Constitucional, sem qualquer limitação.
Ora, uma vez ajuizada a ação de divórcio (consensual ou litigiosa, insisto), sobrevindo o óbito de um dos cônjuges, a demora de julgamento pelo Estado-Juiz (em razão, muita vez, do necessário processamento da ação) não pode prejudicar as partes. Os particulares não podem ter violado o seu direito ao divórcio pela demora de decisão ou por formalidades.
É dizer: requerido o divórcio (em juízo ou em cartório), a superveniência do falecimento de um dos cônjuges não retira o interesse na sua decretação. Nesse caso, o matrimônio será dissolvido pelo divórcio (com eficácia retroativa à data do requerimento, consubstanciando o direito potestativo), e não pela morte. Até mesmo porque se assim não fosse, importaria em reconhecer absurdos direitos sucessórios a pessoas que já não mais tinham vínculo afetivo ou de solidariedade com o autor da herança.
Congratulo, no ponto, a recente decisão do TJMG (ApCiv. 1.0000.17.071266-5/001 – comarca de Belo Horizonte, rel. Des. Oliveira Firmo, j. 29.5.2018, com participação dos Des. Alice Birchal – que é jurista muito qualificada e competente – e Wilson Benevides), decretando um divórcio, mesmo após o óbito de um dos cônjuges, depois de proposta a ação, inclusive com pedido de tutela de urgência. Vale a pena conferir a propositiva e alvissareira decisão.
Estou lembrando da música do LULU SANTOS: “eu vejo a vida melhor no futuro”. Precisamos interpretar melhor o sistema e tornar o sistema jurídico mais próximo da vontade das pessoas. Nenhum formalismo justifica atentar contra a vontade declarada de alguém que explicitou o desejo de se divorciar.
Precisamos, pois, interpretar melhor a norma, entendendo que deve prevalecer a declaração da vontade de divorciar (exercendo seu direito potestativo) sobre o falecimento ulterior. Nesse caso, enfim, a morte não nos separa…
Bons ventos soprando….