A Constituição Federal de 1988 consagra como direito fundamental a vedação à tortura. Dispõe, com efeito, o art. 5º, inc. III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Com fundamento nesta disposição constitucional, a Lei 12.847/13 instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, regido pelos princípios da proteção da dignidade da pessoa humana, da universalidade, da objetividade, da igualdade, da imparcialidade, da não seletividade e da não discriminação (art. 4º). Este sistema de proteção tem o objetivo de fortalecer a prevenção e o combate à tortura por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes permitindo a troca de informações e o intercâmbio de boas práticas.
O sistema brasileiro de proteção vem na esteira de um intenso movimento internacional de repúdio à tortura, surgido após a Segunda Guerra Mundial e por meio do qual se aprovaram diversos tratados e convenções, alguns ratificados pelo Brasil.
Os esforços engendrados para combater a tortura podem ser vistos, por exemplo, na edição do Manual para a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Protocolo de Istambul), elaborado a partir de pesquisas desenvolvidas por dezenas de cientistas das áreas do direito, da medicina e de direitos humanos provenientes de quinze países. O manual tem o propósito de servir de referência internacional para avaliar os casos relatados de tortura.
Organizado em seis capítulos, em linhas gerais o manual estabelece as normas internacionais aplicáveis no combate à tortura, faz referência à ética dos profissionais nas áreas jurídica e médica, institui princípios para os inquéritos sobre a prática de tortura, traça considerações gerais sobre as entrevistas com pessoas que alegam ter sido vítimas e traz inúmeras diretrizes para a constatação de sintomas físicos e psicológicos de tratamento cruel, desumano ou degradante.
Para facilitar a apreensão dos indícios físicos, proporcionar o tratamento adequado à vítima e viabilizar a devida punição do autor, a apuração de casos suspeitos de tortura deve ser iniciada tão brevemente quanto possível, razão pela qual os ordenamentos jurídicos nacionais devem estabelecer mecanismos que permitam a pronta investigação.
No caso do Brasil, o instrumento adequado para essa finalidade é a audiência de custódia, disciplinada na Resolução n. 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça e em normas internas de tribunais.
A audiência de custódia (ou de apresentação), tem, na realidade, dupla finalidade: de proteção, a fim de tutelar a integridade física do preso, e de constatação, aquilatando, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, a necessidade de ser mantida a prisão do autuado.
Trata-se, no que concerne à primeira finalidade, de cautela que atende, basicamente, à Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7.5), a impor a apresentação do preso a um juiz ou autoridade que exerça função assemelhada, legalmente constituída. No mesmo sentido, o art. 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York.
Com a audiência de custódia assegura-se prévia entrevista entre o preso e seu advogado ou, à falta deste, um defensor público. Após a formulação de perguntas de cunho pessoal, referentes à “qualificação, condições pessoais, tais como estado civil, grau de alfabetização, meios de vida ou profissão, local da residência, lugar onde exerce sua atividade, e, ainda, sobre as circunstâncias objetivas da sua prisão”, sem adentrar o mérito dos fatos em si, é concedida a palavra ao Ministério Público e à defesa.
Os textos internacionais acima referidos não estabelecem um prazo determinado para a realização da audiência de custódia. Utilizando expressões abertas, indicam, contudo, imediatidade. No Brasil, a Resolução 213 do CNJ estabelece um prazo de vinte e quatro horas da comunicação do flagrante.
Por meio desse procedimento, em que o preso é ouvido sobre as circunstâncias da prisão quase imediatamente após sua ocorrência, é possível averiguar prontamente a prática de abusos físicos ou psicológicos, e para tanto o Protocolo de Istambul pode ser de grande valia, guardadas, evidentemente, as devidas proporções, pois este documento estabelece diretrizes abrangentes para a apuração da tortura, o que obviamente não ocorre no momento da audiência de custódia, na qual apenas podem ser obtidos indícios que em seguida levarão à efetiva apuração.
Mas há elementos no Protocolo de Istambul segundo os quais pode se guiar o juiz no momento em que o preso lhe é apresentado. O capítulo 4, por exemplo, estabelece as condições gerais para as entrevistas com quem alega ter sido torturado, considerando a situação peculiar de quem foi submetido a tratamento desumano e que nem sempre consegue expor com facilidade a terceiros a violência por que passou (assim como ocorre com vítimas de crimes sexuais). No parágrafo 134, dispõe o protocolo:
“A obtenção de informação é certamente importante, mas a pessoa entrevistada é-o ainda mais e ouvir é mais importante do que fazer perguntas. Se o entrevistador se limita a formular perguntas, apenas obterá respostas. Para o recluso, pode ser mais importante falar acerca da família do que da tortura. Há que ter em conta este aspecto, pelo que deverá ser disponibilizado algum tempo para a discussão de questões pessoais. A tortura, particularmente de natureza sexual, é um assunto muito íntimo e poderá não ser abordado antes da segunda visita ou mesmo mais tarde. Os indivíduos não devem ser forçados a falar sobre qualquer forma de tortura se não se sentirem à-vontade para o fazer.”
Fala-se em “visita” porque este trecho vem na esteira de outro que trata de visitas oficiais a centros de detenção. Nada impede, no entanto, que essa técnica seja seguida pelo juiz que note sinais de agressão no preso levado à audiência de custódia
Há também outros elementos que podem auxiliar bastante na obtenção de dados indicativos de tortura, como, por exemplo, a indagação a respeito de circunstâncias da detenção (data, local, duração, condições, etc.) antes de adentrar em detalhes sobre eventuais agressões. E, sobre estas, há questões específicas que não só podem facilitar a obtenção de informações como também servem para apurar a fidedignidade do que está sendo relatado. Veja-se, por exemplo, o parágrafo 139:
“Ao recolher informação sobre tortura e maus tratos, deve ter-se cuidado ao sugerir formas de maus tratos a que a pessoa possa ter sido sujeita, uma vez que a pessoa pode ser tentada a distorcer os factos. A resposta negativa a perguntas sobre diversas formas de tortura pode, contudo, ajudar a estabelecer a credibilidade do testemunho. As questões devem ser formuladas de forma a obter um relato coerente do sucedido. Eis algumas sugestões de perguntas a colocar: Onde ocorreram os maus tratos, quando e durante quanto tempo? Foi vendado? Antes de passar à descrição dos métodos empregues, tome nota das pessoas presentes (com os respectivos nomes e posições). Descreva a sala ou outro local em causa. Que objectos viu? Se possível, descreva em detalhe cada um dos objectos de tortura; no caso de tortura eléctrica, indique a voltagem, aparelho, número e forma dos eléctrodos. Inquira acerca do vestuário usado, se alguém se despiu ou mudou de roupa. Tome nota de tudo quanto tenha sido dito durante o interrogatório, nomeadamente injúrias e insultos à vítima e conversas dos torcionários entre si.”
É claro que na audiência de custódia não é necessário que o juiz se debruce sobre tantos detalhes, mas a partir dessas diretrizes podem ser formuladas questões compatíveis com as limitações próprias daquele ato judicial.
Vemos, portanto, que não obstante o Protocolo de Istambul tenha o propósito de estabelecer um sistema abrangente, completo para apuração de relatos de tortura, alguns de seus elementos podem inspirar já na audiência de custódia a adoção das primeiras providências contra o abuso de autoridade, medida de extrema importância e de muita utilidade para que se coíbam atos dessa natureza.
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