1) A alteração da competência não torna inválida a decisão acerca da interceptação telefônica determinada por juízo inicialmente competente para o processamento do feito.
O art. 1º da Lei 9.296/96 dispõe que a interceptação telefônica depende de ordem do juiz competente da ação principal. Trata-se, inicialmente, do juiz a quem compete, segundo as normas de organização judiciária, a fiscalização do inquérito policial. É normalmente o juiz a quem se dirigem os pedidos mais urgentes, como os relativos a prisões e à própria interceptação telefônica.
Ocorre que, a depender das circunstâncias, a investigação pode revelar fatos cujo julgamento seja de competência de juiz diverso. É possível, por exemplo, que um juiz estadual defira uma interceptação telefônica para a investigação de organização criminosa dedicada à prática de tráfico de drogas e, durante a apuração, a polícia constate que a mercancia é transnacional, situação em que a competência para julgamento é da Justiça Federal. Em situações como esta, a interceptação decretada pelo juiz que depois se revelou incompetente permanece válida:
“II – Na espécie, sendo certo que o d. Juízo da 1ª Vara de Vinhedo/SP era o competente para o processo e julgamento da ação cujo objeto era a apuração do delito de tráfico até então sem evidências de transnacionalidade, não há que se falar em incompetência do d. Juízo para a determinação da interceptação de comunicações. III – Ademais, na linha da jurisprudência desta Corte, a declinação de competência não possui o condão de invalidar a interceptação telefônica anteriormente determinada por Juízo que até então era competente para o processamento do feito (precedentes).” (HC 349.583/SP, j. 15/09/2016)
2) É admissível a utilização da técnica de fundamentação per relationem para a prorrogação de interceptação telefônica quando mantidos os pressupostos que autorizaram a decretação da medida originária.
Segundo Antônio Magalhães Gomes Filho, “existe motivação ad relationem quando sobre um ponto decidido o juiz não elabora uma justificação autônoma ad hoc, mas se serve do reenvio à justificação contida em outra decisão” (A motivação das decisões penais. 2ª ed. São Paulo: RT, 2013, p. 163). Em outras palavras, a fundamentação ad relationem ou per relationem é aquela na qual o julgador não se vale de argumentação própria, oriunda exclusivamente de seu raciocínio, mas, antes, louva-se em manifestações lançadas nos autos, por outros órgãos, às quais faz alusão. Costumeiramente, nessa espécie de decisão se utiliza a expressão adoto como razões de decidir… Assim, por exemplo, quando o juiz, para acolher um pedido de prisão preventiva, encampa como motivação de decidir a representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público.
No caso da interceptação telefônica, há quem questione a validade da prorrogação baseada em decisão na qual o juiz simplesmente faz referência aos fundamentos utilizados para autorizar o início da diligência. Argumenta-se que o juiz deve analisar os resultados intermediários e, com base neles, fundamentar a prorrogação. O STJ, contudo, tem se orientado no sentido de que os fundamentos originários podem ser utilizados na prorrogação, desde que se mantenham as circunstâncias que motivaram a interceptação telefônica:
“No caso, para as prorrogações das interceptações telefônicas, a autoridade judiciária utilizou-se da regra da fundamentação per relacionem, adotando as mesmas justificativas da decisão que autorizou a primeira medida de interceptação telefônica, o que é permitido legalmente pela jurisprudência pátria.” (RHC 70.560/SP, j. 04/12/2018)
3) O art. 6º da Lei n. 9.296/1996 não restringe à polícia civil a atribuição para a execução de interceptação telefônica ordenada judicialmente.
A Constituição Federal, no art. 144, § 4º, incumbe às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. E cabe à Polícia Federal “apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei” (art. 144, § 1º, inc. I).
Segundo o disposto no art. 6º da Lei 9.296/96, uma vez deferido o pedido de interceptação telefônica a autoridade policial conduzirá os procedimentos e dará ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização. Mas o que se entende por autoridade policial? Seriam somente os órgãos de polícia judiciária ou estariam abrangidos outros órgãos eventualmente capazes de conduzir apurações criminais, como a Polícia Militar, Ministério Público, etc.?
Segundo Guilherme de Souza Nucci, “sob o estreito princípio da legalidade, deve conduzir a interceptação e gravação a Polícia Civil, que é a Polícia Judiciária. Não vemos cabimento em se “delegar” essa tarefa à Polícia Militar, cuja função é de polícia ostensiva, nos termos constitucionais. Igualmente, não nos parece correta a condução da interceptação e gravação pelo Ministério Público diretamente. A lei é clara no tocante ao acompanhamento da realização” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas – 10 ed. – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 579).
Mas o STJ tem decidido em sentido contrário para referendar a legalidade do procedimento, desde que a investigação seja feita de forma regular:
“2. O art. 6º da Lei n. 9.296⁄1996, não restringe à polícia civil a atribuição (exclusiva) para a execução da medida restritiva de interceptação telefônica, ordenada judicialmente.
3. Nessa linha de raciocínio, vale a pena lembrar: ofato da quebra de sigilo telefônico ter sido requerida pela polícia militar, que cooperava em investigação do MP, não se constitui em nulidade, pois o art. 144 da Constituição Federal traz as atribuições de cada força policial, mas nem todas essas atribuições possuem caráter de exclusividade. Há distinção entre polícia judiciária, responsável pelo cumprimento de ordens judiciais, como a de prisão preventiva, e polícia investigativa, atinente a atos gerais de produção de prova quanto a materialidade e autoria delitivas. A primeira é que a Constituição Federal confere natureza de exclusividade, mas sua inobservância não macula automaticamente eventual feito criminal derivado” (PGR). A Constituição da República diferencia as funções de polícia judiciária e de polícia investigativa, sendo que apenas a primeira foi conferida com exclusividade à polícia federal e à polícia civil, o que evidencia a legalidade de investigações realizadas pela polícia militar e da prisão em flagrante efetivada por aquela corporação”(HC 332.459⁄SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 30⁄11⁄2015). No mesmo diapasão: RHC 67.384⁄ES, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 27⁄02⁄2018, DJe 05⁄03⁄2018.
4. De qualquer modo, a constitucional definição da atribuição de polícia judiciária às polícias civil e federal não torna nula a colheita de indícios probatórios por outras fontes de investigação criminal (HC 343.737⁄SC, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 18⁄08⁄2016, DJe 29⁄08⁄2016).
5. No caso, não há ilegalidade na atuação investigatória da GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) em parceria com a SSINT⁄SESEG. Não procede, com efeito, a insurgência quanto aos atos de investigação realizados pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Estado de Segurança, sob o argumento de que caberia à autoridade policial militar a condução dos procedimentos.
6. Além disso, o Ministério Público, órgão incumbido de exercer o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, CF), conduziu e fiscalizou a tempo e modo as investigações, o que afasta o apontado constrangimento ilegal. A propósito, inexiste qualquer mácula na interceptação telefônica realizada pelo Ministério Público, por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – GAECO, tendo em vista que, considerando o caso dos autos, em que se percebe a atuação de articulada organização criminosa, com envolvimento, inclusive, de policiais civis e militares, não há outro meio de se manter a integridade e o sigilo das investigações sem sua condução por órgão especializado em delitos dessa natureza (RHC 58.282⁄SP, Rel. Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄SP), SEXTA TURMA, julgado em 01⁄09⁄2015, DJe 07⁄10⁄2015).” (RHC 78.743/RJ, j. 13/11/2018)
4) É possível a determinação de interceptações telefônicas com base em denúncia anônima, desde que corroborada por outros elementos que confirmem a necessidade da medida excepcional.
Nossos tribunais superiores vêm admitindo que, a partir de “denúncia” anônima, seja deflagrada uma investigação criminal. É dizer: o simples fato de não se identificar o autor da comunicação da infração penal não impede, por si só, que investigações sejam realizadas. O que não se tolera, porém, é que, a partir da “denúncia”, de pronto seja instaurado o inquérito policial. Antes disso, impõe-se a realização de algumas diligências preliminares, aptas, ainda que de forma precária, a dar um mínimo de sustentação à acusação apócrifa. Imaginemos um relato anônimo dando conta de que em determinado imóvel se pratica o crime de tráfico de drogas. Antes de instaurar o inquérito policial e representar pela expedição de mandado de busca e apreensão, por cautela, investigadores de polícia dirigem-se ao local indicado para averiguar a movimentação e a frequência. É muito comum, na prática, que denúncias anônimas não tenham procedência, sendo apontados endereços inexistentes e pessoas desconhecidas. Uma investigação prévia impede a inútil instauração de um inquérito policial ou mesmo, em nosso exemplo, evita a devassa em um imóvel cujos ocupantes jamais se envolveram em atividades criminosas.
Seguindo essa orientação, no julgamento do HC 133.148/ES (j. 21/02/2017) o STF considerou válida a instauração de investigação criminal e a determinação de interceptação telefônica em decorrência de “denúncia” anônima. Naquele caso, o Ministério Público havia recebido diversas comunicações apócrifas que davam conta da ocorrência dos crimes de associação criminosa, corrupção e fraude licitatória. Diante disso, foram feitas diligências preliminares, inclusive com a oitiva de testemunhas informais, o que motivou a instauração do procedimento de investigação criminal no qual foi requerida a interceptação telefônica e que culminou na identificação dos crimes e de seus autores e no oferecimento de denúncia. Os impetrantes do habeas corpus pretendiam a declaração de nulidade de todo o procedimento, desde a instauração da investigação, porque tudo havia se baseado apenas na denúncia anônima. O tribunal, no entanto, denegou a ordem sob o fundamento de que sua própria jurisprudência admite a validade de denúncias anônimas se a investigação se baseia também em outras diligências.
É exatamente a mesma orientação firmada pelo STJ:
“1. Esta Corte já decidiu que a denúncia anônima pode justificar a necessidade de quebra do sigilo das comunicações como forma de aprofundamento das investigações policiais, desde que acompanhada de outros elementos que confirmem a necessidade da medida excepcional, o que, na espécie, ocorreu.
2. O deferimento da quebra do sigilo de dados telefônicos e de interceptação telefônica foi precedido de adequado procedimento prévio de investigação das informações e notícias de prática de delitos pelo paciente e outros investigados, o que torna legítima a prova colhida por meio da medida.
3. Foram atendidos os requisitos da Lei n. 9.296⁄1996, dada a indicação dos indícios de existência de conduta tendente à obstrução da justiça, associação criminosa e crimes contra a Administração Pública, conforme apurado na investigação criminal em andamento, com destaque para a impossibilidade da realização de provas por outros meios disponíveis.” (HC 443.331/SP, j. 18/09/2018)
5) A interceptação telefônica só será deferida quando não houver outros meios de prova disponíveis à época na qual a medida invasiva foi requerida, sendo ônus da defesa demonstrar violação ao disposto no art. 2º, inciso II, da Lei n. 9.296/1996.
Ao estabelecer os requisitos para a interceptação telefônica, a Lei 9.296/96 o faz de forma negativa e dispõe, no art. 2º, inc. II, que a diligência não será admitida se a prova puder ser feita por outros meios disponíveis. Também não se defere a interceptação se não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal ou se o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
Assim é porque, tratando-se de meio de prova que excepciona a proteção constitucional à intimidade e à inviolabilidade das comunicações telefônicas, deve ser utilizado com parcimônia, não como primeira medida, inclusive porque em muitos casos são captados diálogos entre o investigado e pessoas sobre as quais não recai a suspeita de crime. Se a interceptação foi determinada licitamente, a gravação desses diálogos não a macula, evidentemente, porque não é possível prever com quem o investigado se comunicará. Mas tanto não se trata de algo irrelevante que o legislador determina a inutilização das gravações que não interessarem à prova (art. 9º).
A tese do STJ corrobora a excepcionalidade da interceptação telefônica, mas atribui à defesa o ônus de provar a violação dos requisitos:
“(…) deve-se asseverar que ‘é ônus da defesa, quando alega violação ao disposto no artigo 2º, inciso II, da Lei 9.296/1996, demonstrar que existiam, de fato, meios investigativos às autoridades para a elucidação dos fatos à época na qual a medida invasiva foi requerida, sob pena de a utilização da interceptação telefônica se tornar absolutamente inviável’ (…)”. (HC 468.604/PR, j. 25/09/2018)
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