Estão na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal duas ações que versam sobre atos de preconceito contra homossexuais, transexuais e travestis: a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4733. Busca-se, em síntese, a criminalização específica de atos de ameaça, violência e incitação à discriminação por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero.
Dentre os pedidos na ADO 26, destacamos o seguinte: Fixação de “prazo razoável para o Congresso Nacional aprovar legislação criminalizadora de todas as formas de homofobia e transfobia (…)”; uma vez transcorrido o prazo “sem que o Congresso Nacional efetive a criminalização/punição criminal específica citada ou caso esta Corte entenda desnecessária a fixação deste prazo, [requer-se] sejam efetivamente tipificadas a homofobia e a transfobia como crime(s) específico(s) por decisão desta Suprema Corte, por troca de sujeito e atividade legislativa atípica da Corte, ante a inércia inconstitucional do Parlamento em fazê-lo, de sorte a dar cumprimento da ordem constitucional de punir criminalmente a homofobia e a transfobia (inclusive em sua teleologia-sistêmica e sua lógica), superando-se a exigência de legalidade estrita parlamentar da mesma forma que esta Corte a superou ao exercer ação legislativa/normativa em sentido estrito ao regulamentar a greve dos servidores públicos civis (cf. a ratio decidiendi da decisão do STF nos MI n.º 670, 708 e 712) e como iria fazer para regulamentar o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço caso o Congresso não tivesse aprovado a lei respectiva antes que a Corte o fizesse (para, assim, garantir a imperatividade positiva das ordens constitucionais de legislar e da decisão desta Suprema Corte), mediante: d.1) a inclusão da criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente), das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89) ou em outra lei que venha a substituí-la, determinando-se a aplicação da referida lei (e outra que eventualmente a substitua) para punir tais atos até que o Congresso Nacional se digne a criminalizar tais condutas, pois isto inclusive prestigia o Parlamento por se usar uma lei por ele aprovada para suprir a omissão inconstitucional do mesmo acerca do tema, ou, subsidiariamente, d.2) efetivando a tipificação criminal/criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero (real ou suposta) da vítima, legislação criminal esta que puna, de forma específica, especialmente (mas não exclusivamente) a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a conduta de “praticar, induzir e/ou incitar o preconceito e/ou à discriminação” por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero, real ou suposta, da pessoa, da forma que esta Suprema Corte julgar mais pertinente/adequada em termos constitucionais, na medida em que essa atividade normativa pura é o que a Corte iria realizar quando estava prestes a normatizar o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço (o que não fez porque o Congresso Nacional, após a Corte afirmar que iria regulamentar normativamente o tema, finalmente cumpriu seu encargo constitucional e elaborou a legislação respectiva) (…)” – grifamos.
No MI 4733, de forma semelhante, pede-se:
a) o reconhecimento de que “a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito ontológico-constitucional de racismo” ou, subsidiariamente, que sejam entendidas como “discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais”;
b) a declaração, com fundamento nos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, de mora inconstitucional do Congresso Nacional no alegado dever de editar legislação criminal que puna, de forma específica, a homofobia e a transfobia, “especialmente (mas não exclusivamente) a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a conduta de ‘praticar, induzir e/ou incitar o preconceito e/ou a discriminação’ por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero, real ou suposta, da pessoa”.
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão integra o arcabouço do controle concentrado de constitucionalidade e pode ser ajuizada diante de situações em que há omissão do legislador em editar atos legislativos que confiram plena eficácia a normas constitucionais.
Em ações dessa natureza, como dispõe o art. 103, § 2º, da Constituição Federal, “será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. Como se pode notar, a decisão proferida não substitui o Poder Legislativo na edição da norma, mas apenas declara o estado de inconstitucionalidade e dá ciência ao órgão competente, normalmente estabelecendo um prazo razoável para a adoção das providências, como ocorreu na ADI por omissão 3.682, julgada em 09/05/2007 e que versava sobre a necessidade de edição de lei complementar para criação, incorporação, desmembramento e fusão de municípios:
“Ação julgada procedente para declarar o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, em prazo razoável de 18 (dezoito) meses, adote ele todas as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto pelo art. 18, § 4º, da Constituição (…).” – grifamos
A respeito da natureza da decisão na ADI por omissão, ensina Gilmar MendesCurso de Direito Constitucional, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1193-4.:
“O Supremo Tribunal Federal deixou assente, na decisão proferida no Mandado de Injunção n. 107, da relatoria do Ministro Moreira Alves, que a Corte deve limitar-se, nesses processos, a declarar a configuração da omissão inconstitucional, determinando, assim, que o legislador empreenda a colmatação da lacuna. Tal como a decisão proferida na ação direta por omissão, a decisão tem, para o legislador, caráter obrigatório. Ambos os instrumentos buscam a expedição de uma ordem judicial ao legislador, configurando o chamado Anordnungsklagerecht (“ação mandamental”) de que falava Goldschmidt. Assim, abstraídos os casos de construção jurisprudencial admissível de pronúncia de nulidade parcial que amplie o âmbito de aplicação da norma, deveria o Tribunal limitar-se, por razões de ordem jurídico-funcional, a constatar a declaração de inconstitucionalidade da omissão do legislador.
No mesmo sentido, afirmou a Corte Constitucional alemã, já no começo de sua judicatura, que não estava autorizada a proferir, fora do âmbito da regra geral, uma decisão para o caso concreto, ou de determinar qual norma geral haveria de ser editada pelo legislador. Também o Supremo Tribunal Federal deixou assente, na decisão proferida no Mandado de Injunção n. 107, que a Corte não está autorizada a expedir uma norma para o caso concreto ou a editar norma geral e abstrata, uma vez que tal conduta não se compatibiliza com os princípios constitucionais da democracia e da divisão de Poderes.”
O mandado de injunção, por outro lado, integra o elenco de direitos e garantias fundamentais e pode ser impetrado “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5º, inc. LXXI, da CF/88).
Para José Afonso da SilvaCurso de Direito Constitucional Positivo, 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 450-1., o mandado de injunção não é uma variante da ação direta por omissão, pois sua impetração não visa à edição de norma regulamentadora, mas sim a garantir a eficácia da norma constitucional no caso concreto:
“O mandado de injunção tem, portanto, por finalidade realizar concretamente em favor do impetrante o direito, liberdade ou prerrogativa, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício. Não visa obter a regulamentação prevista na norma constitucional. Não é função do mandado de injunção pedir a expedição da norma regulamentadora, pois ele não é sucedâneo da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 29). É equivocada, portanto, data venia, a tese daqueles que acham que o julgamento do mandado de injunção visa a expedição da norma regulamentadora do dispositivo constitucional dependente de regulamentação, dando a esse remédio o mesmo objeto da ação de inconstitucionalidade por omissão. Isso quer apenas dizer que o mandado de injunção não passaria de ação de inconstitucionalidade por omissão subsidiária, a dizer: como os titulares dessa ação (art. 103) se omitiram no seu exercício, então fica deferido a qualquer interessado o direito de utilizar o procedimento injuncional para obter aquilo que primeiramente ocorria àqueles titulares buscar. A tese é errônea e absurda, porque: (1) não tem sentido a existência de dois institutos com o mesmo objetivo e, no caso, de efeito duvidoso, porque o legislador não fica obrigado a legislar; (2) o constituinte, em várias oportunidades na elaboração constitucional, negou ao cidadão legitimidade para a ação de inconstitucionalidade; por que teria ele que fazê-lo por vias transversas?; (3) absurda mormente porque o impetrante de mandado de injunção, para satisfazer seu direito (que o moveu a recorrer ao Judiciário), precisaria percorrer duas vias: uma, a do mandado de injunção, para obter a regulamentação que poderia não vir, especialmente se ela dependesse de lei, pois o legislativo não pode ser constrangido a legislar; admitindo que obtenha a regulamentação, que será genérica, impessoal, abstrata, vale dizer, por si, não satisfatória de direito concreto; a segunda via é que, obtida a regulamentação, teria ainda que reivindicar sua aplicação em seu favor, que, em sendo negada, o levaria outra vez ao Judiciário para concretizar seu interesse, agora por outra ação porque o mandado de injunção não caberia.”
Não obstante o STF tenha inicialmente discordado dessa orientação, em julgados posteriores de certa forma mitigou a limitação de que o mandado de injunção deveria apenas constatar a inconstitucionalidade da omissão e determinar que o legislador adotasse as providências necessárias. Como exemplo, temos o MI nº 670, que versava sobre a não regulamentação do direito de greve do servidor público.
Consignou-se no acórdão que “Apesar dos avanços proporcionados por essa construção jurisprudencial inicial, o STF flexibilizou a interpretação constitucional primeiramente fixada para conferir uma compreensão mais abrangente à garantia fundamental do mandado de injunção. A partir de uma série de precedentes, o Tribunal passou a admitir soluções “normativas” para a decisão judicial como alternativa legítima de tornar a proteção judicial efetiva”. Nessa esteira, determinou-se a aplicação das Leis 7.701/1988 e 7.783/1989 nas situações que envolvessem o exercício do direito de greve por servidores públicos civis.
De qualquer modo, não se trata propriamente de um ato de substituição do Congresso Nacional pela elaboração de um marco normativo. A solução adotada consistiu apenas em garantir o direito com base em leis já existentes para disciplinar matéria semelhante.
Dito tudo isso, não podemos ignorar a absoluta impropriedade de solução semelhante no MI 4733, como também a impossibilidade do pedido formulado na ADO 26.
Em matéria penal vigoram rígidos princípios limitadores do direito de punir, que só pode ser exercitado sob as estritas diretrizes impostas pela Constituição Federal e por tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário.
O artigo 5º, inc. II, da Constituição Federal dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Reforçando essa garantia, o artigo 5º, inc. XXXIX, estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, disposição fundamental que encontra correspondência idêntica no art. 1º do Código Penal.
Trata-se de real limitação ao poder estatal de interferir na esfera de liberdades individuais, daí sua inclusão na Constituição entre os direitos e garantias fundamentais. É garantia consolidada e reconhecida por tratados e convenções internacionais, a exemplo do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Roma, 1950, art. 7º), da Convenção Americana de Direitos Humanos (San José da Costa Rica,1969, art. 9º) e Estatuto de Roma (Roma, 1998, art. 22).
Conhecido em latim como nullum crimen, nulla poena sine lege, é mandamento revestido de maior importância num Estado Democrático de Direito, servindo como determinante à subordinação de todos à imperatividade da lei e limitando o exercício do poder pelo governante. Ensina, a esse respeito, Alexandre de MoraesDireito Constitucional. Atlas: São Paulo, 2006, p. 36:
“Conforme salientam Celso Bastos e Ives Gandra Martins, no fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma ou outra via que não seja a lei, pois como já afirmava Aristóteles, “a paixão perverte os Magistrados e os melhores homens: a inteligência sem paixão – eis a lei.”
Mas, diante da possibilidade de interpretação lato sensu da palavra “lei”, que pode abarcar atos normativos não emanados do Poder Legislativo, faz-se necessário um plus, consistente no princípio da reserva legal, que pode ser analisado em conjunto com outros cinco axiomas diretamente decorrentes do princípio da legalidade:
1) Não há crime nem pena sem lei: Segundo o princípio da reserva legal, a infração penal somente pode ser criada por lei em sentido estrito, ou seja, lei complementar ou lei ordinária, aprovadas e sancionadas de acordo com o processo legislativo respectivo, previsto na CF/88 e nos regimes internos da Câmara dos Deputados e Senado Federal.
Não é admissível nem mesmo que lei delegada verse sobre Direito Penal, pois o art. 68, §1º, CF/88 veda, a um só tempo, a delegação de atos de competência exclusiva do Congresso Nacional e que a lei delegada discipline direitos individuais, matéria ínsita a toda norma penal.
2) Não há crime nem pena sem lei anterior.
3) Não há crime nem pena sem lei escrita: Só a lei escrita pode criar crimes e sanções penais, excluindo-se o direito consuetudinário para fundamentação ou agravação da pena.
4) Não há crime nem pena sem lei estrita: Proíbe-se a utilização da analogia para criar tipo incriminador, fundamentar ou agravar pena.
5) Não há crime nem pena sem lei certa: O princípio da taxatividade ou da determinação é dirigido mais diretamente à pessoa do legislador e exige clareza da elaboração dos tipos penais, que não podem deixar margens a dúvidas, de modo a permitir à população em geral o pleno entendimento do tipo criado.
6) Não há crime nem pena sem lei necessária: trata-se de um desdobramento lógico do princípio da intervenção mínima.
Pois bem, o pedido lançado na ADO 26 para que o Supremo Tribunal Federal substitua o Congresso Nacional e criminalize determinadas condutas simplesmente dilacera as mais básicas garantias individuais que caracterizam os sistemas constitucionais democráticos modernos.
Uma decisão que eventualmente atendesse a pedido dessa ordem jogaria por terra o princípio da reserva legal – e seus corolários – e constituiria, embora com aparência de normalidade – pois proveniente da Suprema Corte –, verdadeira aberração inadmissível em nossa ordem constitucional, cujos poderes são muito bem delimitados e devem ser respeitados. Seria, com efeito, além de um golpe de morte em direitos e garantias fundamentais, verdadeiro ato de ruptura institucional devido à clara invasão de um poder nas atribuições essenciais de outro.
Não se trata, ressalte-se, do desempenho das denominadas “funções atípicas”, em que um poder, em decorrência da própria disciplina constitucional, realiza, excepcionalmente, funções normalmente atribuídas a outro mas que são imprescindíveis para seu regular funcionamento e sua auto-organização. É o caso do tribunal que legisla ao elaborar seu regimento interno e do órgão administrativo que julga um funcionário público que tenha cometido uma falta funcional.
No caso da ADO 26, no entanto, pede-se que o Supremo Tribunal Federal exerça função típica e privativa do Congresso Nacional, o que obviamente não se pode admitir sob pena – reitere-se – de verdadeira violação da ordem institucional. Não importam os argumentos lançados e a relevância do bem jurídico que se pretende ver tutelado. O Poder Legislativo não pode jamais ser suplantado em sua função precípua de legislar.
O Mandado de Injunção 4733 não goza de melhor sorte. Embora seu pedido não diga respeito à criação de uma infração penal, sua solução não pode, de forma nenhuma, ser algo semelhante à do já mencionado Mandado de Injunção 670, que tratava do direito de greve.
Ora, direito de greve em nada se assemelha a normas de índole criminal, razão por que não pode o Supremo Tribunal Federal determinar a aplicação de uma lei penal vigente (no caso, a Lei 7.716/89, que tipifica delitos de racismo) a fatos que nem remotamente se inserem em seus termos estritos, que não podem servir de ponte de integração na forma pretendida.
A aplicação da lei penal pode provocar impasses cuja solução depende de regras de interpretação e de integração. Podemos mencionar, para o que nos importa no momento, as técnicas de interpretação extensiva, de interpretação analógica e de analogia.
A interpretação extensiva se dá quando o intérprete amplia o significado de uma palavra para alcançar a real acepção da norma. Foi o que ocorreu sobre o art. 41 da Lei 11.340/06, que veda a aplicação da Lei 9.099/95 “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher” – grifamos. O STJ firmou o entendimento de que, não obstante a lei mencione apenas os crimes, as contravenções estão abrangidas pela vedação. Daí se infere inclusive que, não obstante certa divergência, a interpretação extensiva pode prejudicar o autor do crime.
É possível também que, atendendo ao princípio da legalidade, a lei detalhe todas as situações que quer regular e, posteriormente, permita que aquilo que a elas seja semelhante possa também ser abrangido no dispositivo. É o que ocorre, por exemplo, no artigo 121, §2º, I, do Código Penal, que dispõe ser qualificado o homicídio quando cometido “mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe”. Percebe-se que o legislador fornece uma fórmula casuística (“mediante paga ou promessa”) e, em seguida, apresenta uma fórmula genérica (“ou por outro motivo torpe”). A interpretação desta fórmula genérica é a analógica (ou intra legem).
A analogia não se confunde com interpretação analógica e não é propriamente uma forma de interpretação da lei, senão que se traduz num mecanismo de integração consistente na síntese entre diferenças e semelhanças. Parte-se do pressuposto de que não existe uma lei a ser aplicada ao caso concreto, motivo pelo qual é preciso socorrer-se de previsão legal empregada a outra situação similar.
Tratando-se de mecanismo utilizado para suprir uma lacuna legal, não nos custa muito concluir que a analogia é absolutamente vedada contra o réu (in malam partem). Não é possível que, ao deparar com um fato atípico, o julgador se socorra de lei que regula fato semelhante, ainda que sob o pretexto de tutelar bens jurídicos de grande relevância.
Pois a interpretação que ser pretende impor a atos de preconceito sexual no MI 4733 – e que também é mencionada na ADO 26 – constitui estrita analogia in malam partem. Não há interpretação extensiva, pois sob nenhum aspecto é possível ampliar o significado de racismo para abranger preconceito sexual, nem tampouco interpretação analógica, pois as fórmulas usadas na Lei 7.716/89 não contêm aspectos genéricos a partir dos quais se pode igualar o preconceito sexual ao racismo.
Em ambas as ações, o pedido para que o preconceito sexual se enquadre “no conceito ontológico-constitucional de racismo” é baseado no julgamento do HC 82.424/RS (j. 17/09/2003), que concluiu subsumirem-se ao art. 20 da Lei 7.716/89 as condutas de “escrever, editar, divulgar e comerciar livros fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica”.
Ora, a situação julgada no referido habeas corpus em nada se relaciona com o preconceito de ordem sexual. O acórdão é fundamentado no terrível histórico de discriminação de arianos contra judeus, tratados como raça inferior e vitimados por um genocídio. Daí se concluiu:
“(…) 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham.”
Neste caso, o tribunal não fez uso de analogia para inserir no tipo penal uma conduta que lhe era absolutamente estranha. Fez uma contextualização histórica da perseguição de arianos contra judeus para concluir que se tratava de um conflito de ordem racial, o que justificava a subsunção do fato levado a julgamento à lei que pune o racismo.
Embora os pedidos nas ações não façam referência explícita à analogia, interpretar o preconceito de ordem sexual de forma a submetê-lo à lei contra o racismo é inegável invocação de analogia incriminadora, o que avilta ao menos quatro dos axiomas decorrentes do princípio da legalidade: reserva legal, lei escrita, lei estrita e lei certa. O uso de expressões diversionistas como “conceito ontológico-constitucional de racismo” não muda a natureza do que se pretende: a utilização de um órgão do Poder Judiciário para criar, por via oblíqua, uma figura criminosa à revelia do Poder Legislativo e, consequentemente, da ordem constitucional.
Espera-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal se atente para a estrita divisão de poderes e se afaste da tentação de suplantar a função legislativa, especialmente em se tratando de matéria tão cara para as liberdades individuais.