A Lei 13.769/18 alterou o Código de Processo para nele inserir o artigo 318-A, segundo o qual a prisão preventiva decretada sobre a “mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar”, desde que a presa: I – não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; II – não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
A lei processual penal já estabelecia a possibilidade de conceder prisão domiciliar em substituição à prisão preventiva para gestantes e mulheres com filho de até doze anos de idade incompletos no art. 318, incisos IV e V. Há, porém, uma diferença que já provoca controvérsia: o caput do art. 318 dispõe que o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar, ao passo que o caput do novo art. 318-A dispõe que a prisão preventiva será substituída, a não ser que uma das situações elencadas nos incisos o impeça.
A interpretação literal do novo disposto nos leva a à conclusão de que a intenção do legislador foi criar um poder-dever para o juiz, isto é, somente os crimes cometidos com violência ou grave ameaça contra a pessoa e contra o próprio filho ou dependente poderiam impedir que mulheres gestantes ou responsáveis por criança ou pessoa com deficiência permanecessem presas cautelarmente. Neste passo, a nova lei é mais pródiga na concessão do benefício do que foi a decisão do STF no habeas corpus coletivo 143.641/SP (j. 20/02/2018), cujo acórdão reconhece que “situações excepcionalíssimas” podem fundamentar a denegação da prisão domiciliar. Nesta ressalva é possível inserir crimes que, não obstante cometidos sem violência ou ameaça, guardam acentuada gravidade. O STJ tem decisões nas quais se refere a situações excepcionalíssimas referentes à prática de tráfico de drogas:
“V – O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus coletivo n. 143.641, determinou a substituição da prisão preventiva pela domiciliar sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas. VI – Na presente hipótese, verifica-se situação excepcionalíssima que impede a concessão do benefício, porquanto a paciente foi presa em flagrante realizando a mercancia e armazenamento de drogas ilícitas em sua própria residência, local onde se encontrava seu filho de 1 ano de idade, consoante consignado no v. acórdão vergastado. Precedentes.” (HC 471.503/RJ, j. 13/11/2018).
“O fato de a acusada comercializar entorpecentes em sua própria residência, local onde foi apreendida quantidade relevante de cocaína, já embalada em porções individuais, além de outros petrechos comumente utilizados para o tráfico de drogas, evidencia o prognóstico de que a prisão domiciliar não cessaria a possibilidade de novas condutas delitivas no interior de sua casa, na presença dos filhos menores de 12 anos, circunstância que inviabiliza o acolhimento do pleito” (STJ – RHC 96.737/RJ, j. 19/06/2018).
“O fato de a acusada realizar a contabilidade do grupo criminoso e transmitir as ordens de seu companheiro – líder da associação, atualmente privado de sua liberdade – evidencia o prognóstico de que a prisão domiciliar não seria suficiente para evitar a prática delitiva no interior de sua residência, na presença dos filhos menores de 12 anos, circunstância que inviabiliza o acolhimento do pleito” (RHC 96.157/RS, j. 05/06/2018).
A nosso ver, a interpretação literal não é a melhor saída, pois desconsidera o cometimento de crimes graves como o tráfico de drogas, a participação em associações e organizações criminosas voltadas à prática do próprio tráfico, fraudes de grande vulto e até mesmo determinadas figuras tipificadas na Lei 13.260/16, que trata do terrorismo.
A prisão domiciliar é, em si, uma medida de natureza cautelar e deve ser analisada sob as diretrizes estabelecidas no art. 292 do Código de Processo Penal, o qual dispõe que as medidas previstas no Título IX devem ser aplicadas de acordo com a necessidade e com adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Ora, afirmar que o juiz é obrigado à substituição, sem considerar particularidades e circunstâncias do crime imputado à acusada, opõe-se abertamente às regras gerais para a concessão de cautelares.
A substituição automática também acaba por violar o disposto no art. 5º da Constituição Federal, que garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Diante do plexo de direitos e garantias explicitados na Constituição, têm o legislador e o juiz a obrigação de proteger os bens jurídicos de forma suficiente. Em outras palavras: é tão indesejado o excesso quanto a insuficiência da resposta do Estado punitivo. A obrigação de que o juiz substitua a prisão preventiva pela domiciliar torna evidentemente falha a proteção de que se incumbe o Estado.
Em decisão recente, o STJ nos dá razão ao ponderar que, mesmo diante do texto do art. 318-A, as circunstâncias excepcionais mencionadas pelo STF não podem ser ignoradas.
No caso julgado (HC 426.526/RJ, j. 12/02/2019), a impetrante era acusada de ter cometido tráfico de drogas em associação com o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, sendo que a imputação, que lhe atribuía a função de líder do tráfico na região e o emprego arma de fogo, fazia referência à apreensão de grande quantidade de drogas sob sua responsabilidade (470g de maconha e 857g de cocaína).
Em seu voto, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca admite que o art. 318-A do CPP estabelece um poder-dever do juiz, ou seja, reconhece-se o caráter objetivo da norma, que em regra deve ser aplicada diante de situações que se subsumam às suas disposições. Isto, no entanto, não afasta os requisitos impostos pelo STF no habeas corpus coletivo, que, segundo o ministro, continua aplicável porque a Lei 13.769/18 contém clara omissão:
“Entendo que não se trata de um silêncio eloquente da norma, mas apenas como uma omissão legislativa e é assim que deve ser interpretado.
De fato – e aqui faço propositadamente uma redução ao absurdo da novidade legal, de forma a demonstrar a inevitabilidade da sua interpretação no sentido de que houve omissão legislativa –, a leitura do disposto em termos literais forçaria a concessão da prisão domiciliar à mãe que nem sequer convive ou criou os filhos, unicamente porque o crime não envolveu violência ou grave ameaça ou dirigiu-se contra a prole.
A exceção da concessão do benefício em determinadas situações excepcionalíssimas deve, portanto, ao meu ver, subsistir. Como efeito, por meio desse parâmetro adicional era possível fazer um controle maior de condutas criminosas que, embora não alcançados pelas duas exceções, se revestiam de elevada gravidade, evidenciando um risco concreto de violação dos direitos da criança ou uma ameaça acentuada à ordem pública.
(…)
O fato de o legislador não ter inserido outras exceções na lei, não significa que o Magistrado esteja proibido de negar o benefício quando se deparar com casos excepcionais. Tenho que deve prevalecer a interpretação teleológica da lei, assim como a proteção aos valores mais vulneráveis. Com efeito, naquilo que a lei não regulou, o precedente da Suprema Corte deve continuar sendo aplicado, pois uma interpretação restritiva da norma pode representar, em determinados casos, efetivo risco direto e indireto à criança cuja proteção deve ser integral e prioritária, como determina a Constituição no art. 227, bem como à pessoa deficiente.”
A decisão é salutar, porque, além de adequar o procedimento às regras gerais para a concessão de cautelares no processo penal, garante que a análise da substituição da prisão preventiva seja mais criteriosa e condizente com a natureza e as circunstâncias do crime imputado.
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