“A nós nos bastem nossos próprios ais
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
os nossos calos doem muito mais…”.
Mário Quintana
Talvez não seja exagero afirmar que a responsabilidade civil é um dos mais importantes e sedutores fenômenos sócio-jurídicos deste século. A discussão acerca de suas funções e possibilidades está renascendo. Aliás, acerca das funções da responsabilidade civil, ao contrário do que se poderia pensar, elas não estão, até hoje, suficientemente claras ou bem definidas. André Tunc, jurista francês, percebeu isso com clareza ao afirmar que a responsabilidade civil, resultado de uma evolução quase tão longa quanto à da humanidade, não possui – ao contrário do que poderíamos imaginar – funções bem estabelecidas e definidas. Se, por um lado, ninguém duvida que a responsabilidade civil tem uma função de reparar danos sofridos, por outro lado há hoje intensa discussão sobre a natureza punitivo-pedagógica da responsabilidade civil. Seria uma nova função? Seria compatível com nossa ordem jurídica?
Recentemente, belas exceções surgem na literatura jurídica brasileira. Nelson Rosenvald, por exemplo, em preciosas pesquisas (dialogando sobretudo com autores italianos e franceses), vem estudando com argúcia as funções da responsabilidade civil. O jurista destaca que “discutir as funções da responsabilidade civil já é um avanço por estas bandas, tão acostumados que estamos a apenas investir os esforços doutrinários pela lente dos seus pressupostos: o alcance da ilicitude; a reinterpretação do nexo de causalidade e o reexame do conceito de lesão indenizável, conferindo à questão das condições da responsabilidade prevalência sobre os deveres que aquela justifica”.
Entendemos que é possível – ainda que haja, aqui e ali, divergências terminológicas – atribuir três funções à responsabilidade civil: a) compensatória; b) punitivo-pedagógica; c) preventiva (ainda que as duas últimas possam em certos aspectos se confundir). Aliás, conforme escrevemos em outra oportunidade, não há uma separação absoluta entre essas três funções. A responsabilidade civil se serve funcionalmente de técnicas variadas, havendo mesmo uma interseção entre elas, uma conjugação funcional – sem contudo suprimir a especificidade de cada uma. Aliás, em 2017, a Suprema Corte Italiana (Corte Suprema di cassazione) expressamente reconheceu a multifuncionalidade da responsabilidade civil em nossos dias.
Na doutrina, por exemplo, no Brasil e lá fora, sempre houve vozes em favor da aceitação da função punitiva da responsabilidade civil. Para esses autores, existe, no âmbito da responsabilidade civil, uma função punitivo-preventiva paralela à função de ressarcimento de danos injustos. Sabe-se que essa função punitivo-preventiva é comumente associada ao no direito inglês e norteamericano, sobretudo através da da doutrina dos punitive damages ou exemplary damages. A primeira (punitive damages) é mais comum nos Estados Unidos, ao passo que a segunda (exemplary damages) é mais usada na Inglaterra.
É verdade que a doutrina brasileira não é uniforme no tratamento do tema. Nem há muita sistematicidade em sua abordagem. Percebe-se a dificuldade doutrinária e jurisprudencial ao cuidar do tema, que é realmente desafiador. Mesmo autores que defendem que “a finalidade precípua da indenização não é punir o responsável, mas recompor o patrimônio do lesado, no caso do dano material, e servir de compensação e servir de compensação, na hipótese de dano moral”. Por outro lado autores clássicos e cultos como Caio Mario da Silva Pereira já sustentavam que a indenização por dano moral traz um duplo caráter: não só compensar mas também punir. Haveria, portanto, segundo o jurista, nessas hipóteses, a conjugação entre: a) a punição do ofensor pela lesão de bem jurídico imaterial da vítima; b) a concessão ao ofendido de uma soma que não é o pretium doloris, mas o meio de lhe proporcionar uma satisfação de qualquer espécie (intelectual ou moral, ou mesmo patrimonial). Sérgio Cavalieri Filho, de modo semelhante, defende o caráter punitivo do dano moral, para que se atenda ao objetivo de prevenção. Argumenta que o intuito punitivo deve ser adotado “quando o comportamento do ofensor se revelar particularmente reprovável – dolo ou culpa grave – e, ainda, nos casos em que, independentemente de culpa, o agente obtiver lucro com o ato ilícito ou incorrer em reiteração da conduta ilícita”.
A justificação – filosófica e jurídico-conceitual – da função punitiva é importante, não negamos isso. Mas também é relevante, e talvez ainda mais, analisar os resultados concretos, funcionais, do instituto entre nós, no Brasil. O direito dos nossos dias caminha claramente em direção a dimensões de análise mais pragmáticas, mais próximas dos problemas e das aflições reais das pessoas. Busca-se soluções jurídicas que se afastem da pura abstração conceitual que tanto marcou o direito no século XIX e em boa parte do século XX.
Vejamos agora como a indenização punitiva tem sido aplicada em determinados casos concretos. Assiste-se, atualmente, a uma redescoberta das penas civis. Elas – que eram hostilizadas e mal compreendidas – passam a desempenhar relevante função no direito que está sendo construído no século XXI. A responsabilidade civil, nesse contexto, perde a função puramente ressarcitória, passando a ostentar, também, inegavelmente, funções que podem ser punitivas. Se nem toda responsabilidade civil terá função punitiva, não é menos certo que muitas delas podem – e devem – ostentar essa função.
O curioso, nesse processo histórico, é o que direito civil passa a assumir funções que tradicionalmente não eram suas. Funções que sempre foram apresentadas como notas típicas do direito penal passam, aos poucos, a integrar – seja na doutrina, seja na jurisprudência – as funções do direito privado no século XXI. O direito penal – seja por sua notória ineficiência (pelo menos tradicionalmente, os eventos mais recentes apontam para saudáveis e necessárias mudanças), seja por seu caráter de ultima ratio – retrai-se e mostra-se pouco efetivo diante de certas agressões inegavelmente desvaliosas para a convivência social. Aliás, paradoxalmente, o direito penal parece se aproximar, cada vez mais, da adoção de técnicas reparatórias (que, em ostensiva contradição com suas funções clássicas, buscam não punir, mas reparar a vítima do crime). O direito civil, por sua vez, progressivamente assume funções preventivas e punitivas, que não constavam entre suas funções clássicas, por assim dizer.
Antônio Junqueira de Azevedo nos chama a refletir e procurar soluções para aquilo que poderíamos afirmar – “pedindo desculpas, se for o caso, aos penalistas” – como ineficiência do direito penal para impedir crimes e contravenções (atos ilícitos, na linguagem civilista). Segue-se daí que a tradicional separação entre o direito civil e o direito penal, ficando o primeiro com a reparação e o último com a questão da punição, merece ser repensada. Lembrando que, em muitos casos, a questão da punição e da prevenção andam juntas. A jurisprudência brasileira, em múltiplas ocasiões, tem abordado o tema. Tem frisado a função pedagógica que a indenização pode assumir (STJ, REsp 945.369). O STJ, citando acórdão do TJRJ, proclama que “a indenização deve atuar não apenas como compensação pela dor sentida pela autora pela morte de seu filho, mas também como forma de punir uma grave conduta e prevenir comportamentos semelhantes” (STJ, REsp 1.262.938). A responsabilidade civil, sobretudo no que se refere ao dano moral, traz hoje a função preventiva como algo relevante em sua configuração, podendo assumir, em determinados casos, uma função pedagógica.
Em 2007 – na Barra da Tijuca, no Rio – cinco jovens de classe média alta agrediram brutalmente a empregada doméstica Sirlei Dias. Eles voltavam de uma casa noturna e a vítima estava num ponto de ônibus. Eles pararam o carro e a espancaram. Em juízo disseram depois: “A gente pensou que era uma prostituta”. Além da declaração torpe, outro dado que colore com tintas tristes o caso: ela tinha acordado de madrugada para pegar dois ônibus e conseguir ser atendida num posto de saúde (situação bem brasileira). Os agressores, de confortável condição econômica, tinham antecedentes criminais (um deles por roubo com arma de fogo). No caso, além de espancarem brutalmente a vítima, ainda roubaram um celular e 47 reais. Eles foram condenados a pagar 500 mil reais em indenização por danos morais.
Sigamos com casos concretos. Melhor, às vezes, que longas explicações conceituais, é trazer exemplos, breves e claros. Tentemos fazer isso neste tópico. Busquemos três casos mais ou menos conhecidos, e vejamos as consequências concretas, civis e penais, que tiveram no Brasil.
No trágico caso de Lars Grael – um atleta olímpico atropelado brutalmente por uma lancha, tendo uma das pernas amputadas, enquanto se preparava para as Olimpíadas de 2000 – o STJ manteve os valores fixados em instâncias inferiores, e a condenação foi cerca de 2,5 milhões de reais (em valores de 2003, entre danos morais e materiais). Já na esfera penal, a sanção foi apenas prestação de serviços à comunidade, já que a pena privativa de liberdade foi convertida em restritiva de direitos. O empresário que conduzia a lancha estava embriagado. Em termos pragmáticos, não é preciso muito esforço de argumentação para demonstrar que o efeito punitivo, a sanção efetiva, veio através da responsabilidade civil e não do direito penal.
O mesmo fenômeno se deu, de modo semelhante, no caso do acidente envolvendo os aviões da GOL e o jato Legacy, ocorrido em 2006. Os aviões colidiram no ar, e o Legacy, de menor porte, embora tenha tido sua asa avariada, conseguiu pousar, sem danos aos tripulantes. Já o avião da GOL caiu causando a morte de 154 pessoas (todos os passageiros e tripulantes). As investigações evidenciaram a culpa dos pilotos norte-americanos do Legacy (os pilotos foram acusados de desligar o transponder do Legacy antes do acidente e ligá-lo novamente após o acidente). Quais as consequências concretas, civis e penais, do caso? O STJ condenou os pilotos norte-americanos por crime culposo (3 anos e 10 dias em regime aberto), e as penas foram convertidas em serviço comunitário a ser prestado nos Estados Unidos.
Já no que toca à responsabilidade civil, as condenações foram significativas (lembremos que o transportador responde pelos danos conexos à sua atividade, mesmo que a culpa seja de terceiro, como foi o caso). Em apenas um dos processos relacionados ao acidente, o STJ elevou de R$ 240 mil para R$ 570 mil o valor a ser pago pela GOL à família de uma das vítimas. A maioria das famílias das vítimas fez acordo com GOL, e os valores pagos, segundo a imprensa, variaram entre cem mil a um milhão de reais. A GOL, além disso, em 2017, firmou um acordo inédito com os índios que habitam a reserva onde o avião caiu: 4 milhões de reais pelos danos materiais e morais causados pela queda da aeronave.
Um terceiro caso que poderíamos citar – mais antigo – é rico, sob o ângulo da responsabilidade civil, em matéria de aprendizado, em vários aspectos (função punitiva, quantificação do dano moral, dano material futuro etc.). Analisemos apenas a eventual função punitiva da indenização em contraste com a ausência de efetiva sanção penal. Em 1986, três jovens estavam num restaurante no Rio (La Fiorentina, na Avenida Atlântica, no Leme). Um deles era o ator Tarcisio Meira Filho, filho de Tarcisio Meira e Glória Menezes, também atores. Um dos jovens, amigo de Tarcisinho, teria trocado olhares com uma mulher que se encontrava no restaurante. Essa mulher – Sabrina Harouche Garcia, cuja beleza e elegância chamava a atenção de quase todos no local – era namorada do conhecido banqueiro carioca do jogo do bicho Maninho.
Instaurou-se um certo mal-estar no restaurante, e os jovens resolveram ir embora. Na saída do restaurante, quando já se encontravam dentro do carro, os jovens foram surpreendidos pelo bicheiro e seus seguranças que, chutando o carro, afirmou que os jovens haviam desrespeitado a mulher dele, com gritos e xingamentos. Os jovens, ainda assim, conseguiram escapar.
O bicheiro foi atrás, em vários carros, com seus capangas. Na Avenida Princesa Isabel, em frente ao Hotel Meridien, os jovens perceberam que outros carros os perseguiam. Mais adiante, na altura da Igreja Santa Terezinha, ao lado do shopping center Rio Sul, foram alcançados pelos carros dos perseguidores, que fizeram um “V” invertido, pondo-se, um lado, atrás, e outros dois ao lado do veículo onde estavam os jovens. Nessa situação, três tiros foram disparados, atingido Carlos Gustavo, jovem de 22 anos, com pavorosas consequências.
O jovem, então iniciando o curso de engenharia, ficou paraplégico.
Cabe contextualizar melhor o caso, traçar contornos breves acerca do agressor. Maninho, ainda jovem, com pouco mais de 20 anos, se tornou um dos bicheiros mais poderosos do Rio. Morreu aos 42 anos, assassinado a tiros, quando deixava a academia, em Jacarepaguá. Inúmeras brigas e confusões marcaram sua vida. Em 1988, a Polícia Federal encontrou um arsenal em seu apartamento de cobertura na Barra da Tijuca (nove espingardas e rifles, duas escopetas, nove pistolas e sete revólveres). Em 1993, foi condenado a seis anos de prisão por formação de quadrilha pela juíza Denise Frossard, em processo que levou para a cadeia outros bicheiros, entre eles seu pai. Maninho foi solto três anos e meio depois. No mês seguinte aos disparos que deixaram o jovem de 22 anos paraplégico, Maninho voltou aos jornais. No restaurante Buffalo Grill, no Leblon, um de seus seguranças agrediu a socos um dos fregueses que fez comentários sobre a presença do bicheiro no local.
Pois bem, quais foram as consequências jurídicas reais, concretas, desse caso? Na esfera penal, os agressores foram absolvidos no Tribunal do Júri por falta de provas. Já na esfera civil as consequências foram severas. O STJ destacou que “estudante de Engenharia, no auge da sua juventude, levou um disparo de arma de fogo, que penetrou no seu pulmão, quebrou-lhe uma costela, perfurou seu fígado, passou pelo rim, atingindo-lhe as vias urinárias e, finalmente, alojou-se na coluna, depois de atravessar a região lombar. Em consequência, o autor ficou paraplégico, perdeu o controle dos esfincteres anal e uretral, ficando impossibilitado de defecar e de urinar normalmente. O tempo de internação do autor foi de 5 (cinco) meses, mas as lamentáveis sequelas serão permanentes”.
Nestes termos, continuou o STJ, pelas palavras do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira: “Levando em consideração a situação econômico-social das partes, a atividade ilícita exercida pelo agressor, de ganho fácil, o abalo físico, psíquico e social sofrido pela vítima, o elevado grau da agressão, a ausência de motivo e a natureza punitiva e inibidora que a indenização, no caso, deve ter, tenho como insuficiente o valor fixado pelo Tribunal de origem a título de danos morais” (STJ, REsp 183.508). O dano moral foi fixado pelo STJ em 1.500 (mil e quinhentos) salários-mínimos. Além disso, a título de danos materiais, foi fixada a pensão mensal de 18 (dezoito) salários-mínimos mensais (o STJ, corretamente, afastou a argumentação dos advogados do bicheiro, que diziam que não cabia dano material porque o jovem não trabalhava, dando na verdade prejuízo para os pais. Que a vítima não exercia ainda a função de engenheiro, e por isso qualquer indenização seria imaginativa, fantástica, sem base atual. O STJ, porém, lucidamente ponderou que a se seguir a ordem natural das coisas ele se formaria como engenheiro e trabalharia com isso ou com outra coisa, e concedeu também a indenização por dano material).
Em relação à elevação do valor da indenização do dano moral, com base na função punitiva (punitives damages), o ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao votar, destacou: “Além disso, o ato foi de uma agressividade tal, de uma anti-sociabilidade tal que de algum modo deve ser considerado na resposta”. O Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, relator, enfatizou que a indenização “deve procurar desestimular o ofensor a repetir o ato”. Conforme dissemos, o STJ alterou o valor fixado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, elevando a indenização por danos morais para 1.500 (mil e quinhentos) salários-mínimos. Obviamente que as funções da responsabilidade civil dialogam entre si, somam-se, isto é, uma não exclui a outra. Nos casos que citamos neste tópico, se houve a incidência da função punitivo-pedagógica, houve a aplicação ao mesmo tempo das funções reparatórias e compensatórias.
A função punitiva tem sido uma realidade de nossa jurisprudência nas últimas décadas. Inclusive no STJ, que tem a função, atribuída pela Constituição, de uniformizar a interpretação da lei federal no Brasil. Flávia Portela Puschel, em artigo publicado há mais de 10 anos, abre suas reflexões, já no primeiro parágrafo, constatando a existência de uma realidade: “Partindo da constatação da existência de responsabilidade civil com fins punitivos no direito brasileiro, introduzida pela atividade jurisdicional nos casos de danos morais, este artigo tem como objetivo central estabelecer critérios a serem utilizados em uma pesquisa empírica, proposta para se conhecer a dimensão exata, os fundamentos e objetivos da jurisprudência brasileira que admite o caráter punitivo da responsabilidade civil por danos morais”. A própria autora reconhece que essa aceitação, pela jurisprudência, com frequência não é problematizada ou fundamentada. Seja como for, gostemos ou não, a função punitiva é um fato, isto é, a jurisprudência brasileira costuma aplicá-la, embora nem sempre com clareza ou sistematicidade.
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