1) Para a configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi.
O Código Penal contempla três figuras criminosas relativas à ofensa à honra: a calúnia (art. 138), a difamação (art. 139) e a injúria (art. 140).
Caluniar é falsamente imputar a alguém fato definido como crime; difamar é imputar a alguém fato não criminoso, porém ofensivo a sua reputação; injuriar, ao inverso do que sucede na calúnia e na difamação, não é imputar fato determinado, mas sim atribuir qualidades negativas ou defeitos.
Em todos os caos, e consideradas as particularidades de cada figura, é imprescindível o propósito de ofender. Assim, não incide no crime – por falta de dolo – aquele que age com intenção de brincar (animus jocandi), aconselhar (animus consulendi), narrar fato próprio da testemunha (animus narrandi), corrigir (animus corrigendi) ou defender direito (animus defendendi):
“1. Tem prevalecido nesta Corte o entendimento de que, “na peça acusatória por crimes contra a honra, exige-se demonstração mínima do intento positivo e deliberado de lesar a honra alheia”, ou seja, o denominado animus injuriandi vel diffamandi (APn 724⁄DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, CORTE ESPECIAL, julgado em 20⁄08⁄2014, DJe de 27⁄08⁄2014). 2. O contexto em que foram proferidas as palavras tidas pelo querelante como ofensivas foi o de embate político entre o Governo do Distrito Federal, representado pelo Governador querelado, e o Sindicato dos Médicos, presidido pelo querelante. 3. Não verificado o dolo específico ínsito ao tipo, a conduta não ingressa na órbita penal. Precedentes. 4. Impõe-se a absolvição sumária do querelado, pois o fato narrado na queixa-crime, embora verdadeiro, evidentemente não constitui crime (CPP, art. 397, III, c⁄c Lei 8.038⁄90, art. 6º).” (APn 887/DF, j. 03/10/2018)
2) Nos casos em que a inexistência da intenção específica de ofender a honra alheia é flagrante, admite-se, excepcionalmente, em sede de habeas corpus, a análise da presença do dolo específico exigido para a caracterização dos crimes contra a honra.
Destina-se o habeas corpus a tutelar a liberdade de locomoção do indivíduo. Protege, pois, o direito de ir, vir, ficar ou voltar. Vê-se, portanto, que se assegura o livre direito de locomoção, o jus manendi, ambulandi, e undi ultro citroque, isto é, o direito de ir e vir para onde quer que se pretenda, mas diretamente relacionado ao indivíduo.
Dada a essência do habeas corpus, que é uma ação célere, não há lugar para a dilação probatória, por exemplo, com a designação de audiência para oitiva de testemunhas ou a produção de prova pericial. Isso não significa que o impetrante se encontra liberado da produção de qualquer prova. Ao contrário, o próprio CPP, conforme disposição do § 2º do art. 660, prevê a necessidade de produção de prova documental. Mais: o art. 656 autoriza uma espécie de interrogatório do paciente, quando ele é apresentado ao juiz. Soma-se a isso a informação prestada pelo coator que, instruída com documentação capaz de justificar o ato tido por arbitrário, decerto se constituirá em mais um elemento a ser sopesado pelo julgador.
De qualquer forma, o direito invocado deve ser líquido e certo, ou seja, aquele que se prova de plano, com a própria inicial, a exemplo do que ocorre no mandado de segurança. A ação constitucional é no geral inidônea para a discussão a respeito do dolo e da culpa, por exemplo, ou da existência de uma excludente de ilicitude. Não obstante, o STJ firmou a tese de que, uma fez flagrante a inexistência do animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi, é possível, excepcionalmente, o reconhecimento da atipicidade em sede de habeas corpus:
“PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CALÚNIA. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DO ANIMUS CALUNIANDI. ELEMENTO INCONTROVERSO NOS AUTOS. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA RECONHECIDA. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEVE SER MANTIDA. 1. Esta Corte pacificou o entendimento de que o trancamento de ação penal pela via eleita é cabível apenas quando manifesta a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a manifesta ausência de provas da existência do crime e de indícios de autoria. Precedentes. 2. Na espécie dos autos, é flagrante o constrangimento ilegal a que estão sendo submetidos os agravados, evidenciado pela simples leitura dos documentos que acompanham os autos, de maneira que se faz desnecessária a avaliação de outros elementos probatórios e, consequentemente, torna a matéria passível de discussão no âmbito do habeas corpus. 3. Da “Ata da Assembleia Extraordinária com os Empregados do Edifício Condomínio Palácio do Congresso”, não se observa terem tido os agravados o dolo específico de imputar a prática de crime à suposta vítima, situação que afasta por completo a tipicidade da conduta. 4. Agravo regimental improvido.” (AgRg no HC 395.714/CE, j. 02/04/2019)
3) Para a caracterização do crime de calúnia, é indispensável que o agente que atribui a alguém fato definido como crime tenha conhecimento da falsidade da imputação.
Consiste a calúnia em imputar a alguém, implícita ou explicitamente, mesmo que de forma reflexa, determinado fato criminoso, sabidamente falso. O agente, para tanto, pode utilizar-se de palavras, gestos ou escritos. Há calúnia quando o fato imputado jamais ocorreu (falsidade que recai sobre fato), ou, quando real o acontecimento, a pessoa apontada não foi a autora (falsidade que recai sobre a autoria do fato).
O crime é punido apenas a título de dolo, consistente na vontade de ofender, denegrir a honra da vítima. E, como destaca Bitencourt: “É indispensável que o sujeito ativo – tanto o caluniador quanto o propalador – tenha consciência de que a imputação é falsa, ou seja, que o imputado é inocente da acusação que lhe faz. Na figura do caput, o dolo pode ser direto ou eventual; na do § 1º, somente o direto” (Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 2, p. 323). É a orientação adotada pelo STJ:
“1. A posição adotada pelo Tribunal a quo está em consonância com a jurisprudência desta Corte, segundo a qual, para a configuração do crime de calúnia é indispensável que o agente tenha conhecimento da falsidade da imputação por ele realizada, sem o que não se configura a prática do delito, por ausência de uma de suas elementares. 2. No caso, é irrelevante verificar se a narrativa das informações conteria a imputação da prática de crimes ao agravante, pois as instâncias ordinárias afirmaram que o agravado acreditava verdadeiros os fatos por ele descritos, o que é suficiente, por si só, para afastar a configuração do crime de calúnia, por ausência de uma das suas elementares. E, para rever a conclusão, seria necessário o reexame de matéria fático-probatória, vedado em recurso especial, pela Súmula 7⁄STJ.” (AgRg no AREsp 768.497/RJ, j. 13/10/2015)
4) O crime de calúnia não se contenta com afirmações genéricas e de cunho abstrato, devendo a inicial acusatória conter a descrição de fato específico, marcado no tempo, que teria sido falsamente praticado pela pretensa vítima.
O fundamento desta tese pode ser encontrado no texto do próprio tipo penal do art. 138, que faz referência expressa e induvidosa à imputação de fato definido como crime. Se é assim, somente pode ser imputado crime de calúnia a quem atribui falsamente a alguém um fato específico, bem descrito e marcado no tempo, pois, do contrário, restam apenas alusões, com as quais, em razão da natureza vaga, indireta, imprecisa o tipo penal não se contenta:
“1. O Tribunal de origem que expõe fundamentos pela inexistência de delito considerando os termos da queixa-crime atua em obediência ao princípio da correlação e ao disposto no art. 381, III, do CPP. 2. O tipo penal do delito de calúnia requer a imputação falsa a outrem de fato definido como crime. Conforme precedentes, deve ser imputado fato determinado, sendo insuficiente a alegação genérica. 2.1. No caso dos autos, constou da queixa-crime que o querelado afirmou que o querelante é inimigo das cotas e que isso estimula o racismo, sem a vinculação de um fato determinado. 3. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no REsp 1.695.289/SP, j. 07/02/2019).
5) O juízo de admissibilidade, o processamento e a instrução da exceção da verdade oposta em face de autoridades públicas com prerrogativa de foro devem ser feitos pelo próprio juízo da ação penal originária que, após a instrução dos autos, admitida a exceptio veritatis, deve remetê-los à instância decorrente da prerrogativa de função para julgamento do mérito.
A exceção da verdade é cabível nos crimes de calúnia e de difamação.
Na calúnia a exceção é de forma geral admitida, a não ser nos seguinte casos: I – se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível; II – se o fato é imputado ao presidente da República ou a chefe de governo estrangeiro; III – se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível. Já na difamação a exceção da verdade é admitida apenas se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.
Segundo dispõe o art. 85 do CPP, nos processos por crime contra a honra, sendo querelantes as pessoas que gozem de foro por prerrogativa de função, caso oposta a exceção da verdade o julgamento caberá ao tribunal respectivo, não ao juízo onde tem curso o processo. Num exemplo: um senador promove queixa-crime contra o autor de uma calúnia proferida na cidade de Santo André. O foro competente é o do local do crime, portanto a comarca de Santo André. Ocorre que o querelado opõe exceção da verdade, pretendendo comprovar, assim, que o fato que imputou ao senador é verdadeiro. Neste caso, o julgamento da exceção da verdade cabe ao Supremo Tribunal Federal. Acolhida a exceção, absolve-se o querelado; julgada improcedente, deve o STF determinar o retorno dos autos ao juízo de origem (em nosso exemplo, o juízo de Santo André), para que seja apreciado o crime de calúnia.
O STJ, porém, firmou a tese de que o juízo de admissibilidade, o processamento e mesmo a instrução da exceção da verdade devem ser feitos pelo próprio juízo da ação penal originária. Uma vez finalizada a instrução, remetem-se os autos ao juízo correspondente ao foro por prerrogativa para que se analise o mérito da exceção:
“CALÚNIA, INJÚRIA E DIFAMAÇÃO. VÍTIMA COM PRERROGATIVA DE FORO. OPOSIÇÃO DE EXCEÇÃO DA VERDADE. ADMISSÃO E PROCESSAMENTO PELO MAGISTRADO DE PRIMEIRO GRAU. LEGITIMIDADE. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL APENAS PARA O JULGAMENTO DO INCIDENTE. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 85 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. 1. Nos termos do artigo 85 do Código de Processo Penal, os Tribunais só são competentes para o julgamento da exceção da verdade, cujo juízo de admissibilidade e instrução são feitos perante o magistrado de primeira instância. Doutrina. Precedentes do STJ e do STF. 2. No caso dos autos, a exceção da verdade oposta pelos pacientes foi admitida pela magistrada de primeiro grau, que intimou o excepto para apresentar contestação, ressaltando que a sua competência se restringiria ao processamento do incidente, cujo julgamento será realizado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não havendo que se falar, por conseguinte, em ofensa ao princípio do juiz natural. 3. Habeas corpus não conhecido.” (HC 311.623/RS, j. 10/03/2015)
6) Não se admite a exceção da verdade quando o excipiente não consegue demonstrar a veracidade da prática de conduta criminosa do excepto.
A exceção da verdade é admitida em defesa do interesse da moralidade pública. Como bem define Guilherme de Souza Nucci: “Trata-se de um incidente processual, que é uma questão secundária refletida sobre o processo principal, merecendo solução antes da decisão da causa ser proferida. É uma forma de defesa indireta, através da qual o acusado de ter praticado calúnia pretende provar a veracidade do que alegou, demonstrando ser realmente autor de fato definido como crime o pretenso ofendido. Em regra, pode o réu ou querelado assim agir porque se trata de interesse público apurar quem é o verdadeiro autor do crime” (Código Penal comentado, p. 719).
O que se busca, portanto, na exceção é a comprovação de que o fato imputado, tido como falso pelo querelante, realmente ocorreu. Não se trata de um procedimento destinado a comprovar o equívoco da acusação, razão pela qual, não cumprido o propósito para o qual a exceção foi concebida, a solução é sua rejeição:
“2. Não se admite exceção da verdade quando o excipiente deixa de atribuir qualquer conduta ao excepto, bem como não comprova fato capaz de afastar a ação penal.” (ExVerd 49/PR, j. 04/10/2006)
7) Expressões eventualmente contumeliosas, quando proferidas em momento de exaltação, bem assim no exercício do direito de crítica ou de censura profissional, ainda que veementes, atuam como fatores de descaracterização do elemento subjetivo peculiar aos tipos penais definidores dos crimes contra a honra.
São contumeliosas as expressões insultuosas ou ultrajantes, que, à primeira vista, podem servir para caracterizar um crime contra a honra, especialmente o de injúria, que nada mais é do que insultar, por palavras ofensivas, pessoa determinada, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.
Ocorre que, como já ressaltamos nos comentários à tese nº 1, o crime contra a honra não se contenta com a expressão ofensiva, pois é de sua natureza a finalidade específica de ofender (animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi), o que nem sempre ocorre em situações nas quais uma pessoa se dirige a outra em termos aparentemente ultrajantes ou mesmo evidentemente malcriados.
De fato, é possível que, em momentos de altercação, por exemplo, palavras sejam proferidas de maneira rude, grosseira, sem no entanto carregar em si uma finalidade injuriosa, senão a natural inclinação de se sobrepor ao oponente, no geral também fora de seu estado normal de comportamento. Da mesma forma, o exercício da crítica e da censura profissionais está no geral a salvo de imputações criminosas, pois não traz a finalidade de ofender a honra. Aliás, o art. 142 do Código Penal é expresso no sentido de que não há injúria ou difamação punível: I – na ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; II – na opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar; III – no conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Sobre o tema, destaca-se o seguinte julgado do STJ a respeito da não caracterização do crime de calúnia em virtude da ausência de elemento subjetivo específico na conduta de um advogado acusado de imputar falsamente crimes a procuradores da República:
“Vê-se, ainda, que a denúncia formulada pelo Ministério Público Federal se mostra inepta, pois não ficou demonstrado o dolo específico do recorrente em ofender a honra dos membros do Parquet federal, tendo-se limitado a narrar e a reiterar que o acusado imputou falsamente aos referidos Procuradores da República o crime de prevaricação, ao asseverar que não procederam à intimação dele acerca do arquivamento das citadas representações porque tinham nítido interesse pessoal nos fatos apurados (fl. 175), sem se indicar a existência do elemento essencial do tipo.
No caso, sem nenhum esforço que extrapole os limites do habeas corpus, observa-se que os fatos narrados não permitem a adequação típica pretendida pelo órgão ministerial, pois ausente, de forma patente, a demonstração da presença do elemento volitivo indispensável à configuração do delito em questão.
(…)
No caso, tenho que o Ministério Público não demonstrou, na exordial acusatória, o especial fim de agir, qual seja, o dolo específico de caluniar; vale dizer, não se pode inferir de quaisquer das expressões proferidas pelo recorrente a ocorrência do animus caluniandi.
Por essas razões, justamente porque a inexistência do elemento subjetivo aos crimes contra a honra afasta a própria caracterização formal do crime de calúnia – o qual exige, sempre, a presença do dolo específico –, não tenho como aperfeiçoado o delito em questão.
No caso, tenho que o Ministério Público não demonstrou, na exordial acusatória, o especial fim de agir, qual seja, o dolo específico de caluniar; vale dizer, não se pode inferir de quaisquer das expressões proferidas pelo recorrente a ocorrência do animus caluniandi. Por essas razões, justamente porque a inexistência do elemento subjetivo aos crimes contra a honra afasta a própria caracterização formal do crime de calúnia – o qual exige, sempre, a presença do dolo específico –, não tenho como aperfeiçoado o delito em questão.” (RHC 44.930/RR, j. 18/09/2014)
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Manual de Direito Penal (parte especial)
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos