A condição de índio não integrado não gera presunção de incapacidade penal. A regra é a sua imputabilidade, que poderá ser afastada quando doente mental, menor de 18 anos na data dos fatos ou tomado por embriaguez acidental completa, como ocorre com todas as pessoas.
Não se descarta, entretanto, diante do caso concreto, que a sua não integração seja causa excludente da culpabilidade, mas por ausência de potencial consciência da ilicitude ou inexigibilidade de conduta diversa. Nesse sentido, explica Víctor Gabriel Rodríguez:
“No Brasil, em que ainda resta alguma população indígena não de todo integrada ao resto da sociedade, há que se questionar acerca da imputabilidade do índio. Mas esse questionamento deve necessariamente partir do abandono da antiga concepção de que o índio não integrado não tem desenvolvimento mental completo. Ainda que se reconheça, por questões antropológicas que aqui não cabe aprofundar, que a sociedade indígena se encontra em uma fase anterior de desenvolvimento – o que ainda assim é muito relativo –, não há qualquer sustentáculo, sequer jurídico, para que ao indígena não integrado se o considere de algum modo mentalmente incapacitado.
O que pode ocorrer ao índio não integrado é que a ignorância acerca dos valores vigentes na sociedade não indígena possam impedir o conhecimento da proibição de alguns delitos. Não se trata apenas de conhecer a lei penal – que nesse contexto é o menor dos problemas –, mas da absorção ou não dos valores que são subjacentes à norma jurídico penal. Se o ser humano aprende por imitação, há que se saber reconhecer que uma atitude que nos pareça abjeta pode representar um valor positivo a outra cultura. Em algumas tribos da Amazônia, matar o recém-nascido, o ancião ou o doente é atitude socialmente valorada para a manutenção do grupo” (Fundamentos e Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 284-5).
Recentemente, o STJ deu parcial provimento a recurso em habeas corpus no qual a defesa de dezenove índios acusados de assassinar dois agricultores no Rio Grande do Sul pedia a realização de exame antropológico por meio do qual fosse possível apurar elementos culturais e de organização social dos acusados. Um dos argumentos utilizados foi o de que “dizer que a conduta matar alguém é reprovável em qualquer povo indígena, induz a uma lógica equivocada e, com todo respeito, a conclusões presunçosas. Tal tipo de aferição só poderia ser feita para cada povo, em perícia técnica através de laudo antropológico e de maneira contextualizada. Vale lembrar que na nossa própria cultura há caso em que a conduta matar alguém é tida como não reprovável, como é o caso da legítima defesa, estado de necessidade etc.”.
A segunda instância havia negado o mesmo pedido argumentando que não havia elementos indicativos de que os acusados vivessem isolados e desconhecessem as regras e costumes da sociedade não indígena. Mas o STJ enxergou relevância no exame. Não para aferir a especificamente a imputabilidade, mas para analisar aspectos mais abrangentes que podem envolver a sociedade indígena da qual os acusados eram provenientes, o que pode provocar efeitos na responsabilidade penal. Citando precedente do Supremo Tribunal Federal e parecer do Ministério Público Federal, afirmou o ministro Rogério Schietti Cruz:
“Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Embargos de Declaração na Petição n. 3.388/RR, relativo ao processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, destacou a importância da realização do estudo antropológico, dado que “a inclusão de determinada área entre as ‘terras tradicionalmente ocupadas pelos índios’ não depende de uma avaliação puramente política das autoridades envolvidas, e sim de um estudo técnico antropológico. Sendo assim, a modificação da área demarcada não pode decorrer apenas das preferências políticas do agente decisório” (Pet n. 3.388 ED, Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 23/10/2013, DJe-023 DIVULG 3/2/2014 PUBLIC 4/2/2014).
Ainda sobre a importância da perícia, salienta o Ministério Público Federal que “é insatisfatório saber se o indígena era integrado ou isolado, ou ainda o grau de contato com a sociedade não índia, na medida em que a perícia não visa aferir o grau de imputabilidade dos acusados, mas sim obter uma compreensão da diversidade cultural que permeia os fatos, notadamente os elementos étnicos, históricos e culturais relevantes, que, no caso ora sob análise, são essenciais para o deslinde da questão” (fl. 331, destaquei).
Destaco ainda que a já mencionada Resolução n. 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça estabelece que, “[a]o receber denúncia ou queixa em desfavor de pessoa indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada” (fl. 537, destaquei).
Portanto, resulta acentuada a relevância do estudo antropológico para a adequada compreensão dos contornos socioculturais tanto dos fatos analisados quanto dos indivíduos a quem são imputados, de modo a auxiliar o Juízo de primeiro grau na imposição de eventual reprimenda, mormente diante do que prescreve o art. 56 do Estatuto do Índio, segundo o qual, “[n]o caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola” (grifei).”
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