Hoje, durante a pandemia de coronavírus (Covid-19) declaradaDisponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml. Acesso em 13/03/2020. pela Organização Mundial de Saúde, volto ao tema envolvendo o aumento abusivo de preços ao consumidor durante épocas de crise, calamidade, escassez etc., sobre o qual já tive a oportunidade de escrever nas épocas em que ocorreram as tragédia causadas pelos rompimentos das barragens das mineradoras Samarco e Vale, ocorridas, respectivamente, nos municípios de MarianaDisponível em: https://vitorgug.jusbrasil.com.br/artigos/257197349/acidente-da-samarco-aumentar-o-preco-da-agua-para-a-populacao-e-pratica-abusiva. Acesso em 13/03/2020. e BrumadinhoDisponível em: https://vitorgug.jusbrasil.com.br/artigos/667804699/a-tragedia-de-brumadinho-e-o-aumento-injustificado-do-preco-de-produtos-e-servicos-um-alerta-ao-consumidor-e-as-autoridades. Acesso em 13/03/2020., em Minas Gerais.
Naquelas oportunidades, comentei sobre a odiosa prática de alguns comerciantes locais que, naquele momento de crise e consternação, se aproveitam da escassez de oferta e aumento da procura por água para, sem justa causa, elevar o preço do produto.
Como o oportunismo não tem limites, dia 13 de março de 2020, em plena sexta-feira 13, novamente me deparei com uma notíciaDisponível em: https://radiocaxias.com.br/portal/noticias/coronavirus-faz-preco-de-caixa-de-mascaras-descartaveis-passar-de-r-3-para-r-60-em-caxias-do-sul-112659. Acesso em 13/03/2020. medonha, intitulada “Coronavírus faz preço de caixa de máscaras descartáveis passar de R$ 3 para R$ 60 em Caxias do Sul”. A matéria publicada no site da Rádio Caxias – 93,5 FM – denuncia um assustador aumento de 1900% sobre o preço normalmente praticado no mercado.
Referindo-se ao best seller de Michael Sandel, intitulado Justiça – o que é fazer a coisa certa, em que o autor menciona as tragédias provocadas pela passagem dos furacões Charley e Katrina, nos Estados Unidos, quando comerciantes cobravam o preço que queriam por seus produtos diante de situações calamitosas, Rizzatto NunesDisponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/abc-do-cdc/163430/a-ganancia-empresarial-e-o-direito-do-consumidor. Acesso em 13/03/2020. denuncia que a prática não é nova e nem surpreende, tendo ocorrido também no Brasil em outras ocasiões, como nos deslizamentos de terra na região serrana do estado do Rio de Janeiro, nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis.
Pois bem, nas linhas seguintes passo, novamente, a tratar do tema, utilizando a mesma base dos meus artigos anteriores, com as devidas adaptações e atualizações.
O art. 39 do Código de Defesa do Consumidor prevê, em rol meramente exemplificativo (numerus apertus), as práticas consideradas abusivas pelo legislador consumerista. Dentre as vedações exemplificadas pelo código, está aquela etiquetada no inciso X do dispositivo em questão, que é exatamente a elevação de preços de produtos e serviços sem justa causa. Veja-se:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(…)
X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.
A inclusão do dispositivo em questão no CDC foi sugerida por Antônio Herman de Vasconcellos e BenjaminBENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 394. – hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça -, com o objetivo de conferir ao Poder Público e ao Judiciário mecanismos de controle sobre o chamado preço abusivo. O mesmo autor segue advertindo que, como regra, os aumentos de preços devem sempre ser precedidos de justa causa, isto é, não podem ser arbitrários, leoninos ou abusivos.
Além disso, merecem atenção as disposições do inciso III, do art. 36 (caput) e do inciso X, do § 3º, do mesmo artigo, da Lei 12.529/11, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, dispondo sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, entre outros:
Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
(…)
III – aumentar arbitrariamente os lucros;
(…)
§ 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
(…)
X – discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços.
A mesma lei define, nos arts. 37 a 45, as penas e os respectivos parâmetros de aplicação a que o infrator está sujeito.
Prosseguindo, o aumento injustificado do preço de produtos e serviços vai de encontro aos objetivos e princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, em especial o princípio da boa-fé, consoante disposto, respectivamente, no caput e no inciso III, do art. 4º, do CDC, assim redigidos:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(…)
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Pertinente registrar também que a elevação de preços sem justa causa pode configurar abuso de direito, definido como ato ilícito pelo art. 187 do Código Civil, que tem a seguinte redação:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
No contexto deste breve artigo, precisas são as palavras de Bruno MiragemDisponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-28/garantias-consumo-direito-consumidor-ajudou-aperfeicoar-mercado. acesso em 13/03/2020. ao ponderar que “o Direito do Consumidor compreende, em si, também uma projeção da proteção da pessoa humana. Consumir é uma necessidade existencial, ninguém vive sem consumir. Logo, resguardar a integridade de cada pessoa é fazê-lo também na sua tutela como consumidora”.
Se por um lado a livre iniciativa está prevista na Constituição Federal de 1988 como fundamento da República (art. 1º, IV) e da ordem econômica (art. 170), por outro é necessário lembrar que o consumidor é o sujeito presumidamente vulnerável na relação de consumo. Assim, para que cumpra sua função social, a livre iniciativa deve ser exercida observando-se preceitos éticos e morais e, principalmente a dignidade da pessoa humana, sendo que a defesa do consumidor é, por expressa previsão constitucional, um dos princípios a serem observados nesse aspecto (art. 170, V).
Espera-se que nesse momento delicado, em que o mundo enfrenta a pandemia do Covid-19, prevaleça o espírito de solidariedade, e que com esse espírito os comerciantes desempenhem sua atividade, evitando-se abusos, e com isso o agravamento do prejuízo da população que se prepara para enfrentar o surto.
Por fim, o consumidor que identificar eventual aumento abusivo de preços de itens necessários à prevenção e tratamento da doença deve denunciar o fato ao Poder Público (órgãos de defesa do consumidor como os Procons), ao Ministério Público e, conforme o caso – tendo em vista se tratar de itens de primeira necessidade e de uso inadiável-, até mesmo ingressar com ação judicial para garantir a aquisição de produtos e a contratação de serviços a preço justo, livre da especulação, que só visa atender aos exclusivos interesses dos fornecedores.