Com a coluna desta semana concluiremos a série que examinou, brevemente, o conflito entre a liberdade de informar e a preservação da honra, imagem e vida privada das pessoas. Analisamos, anteriormente, alguns critérios (veracidade da notícia, licitude do meio empregado para obtê-la, personalidade pública ou privada, entre outros) que podem servir de base na decisão – sempre contextualizada – entre o direito de informar e a imagem das pessoas.
Veremos, a seguir, outros critérios, igualmente importantes (local e natureza do fato, existência de interesse público na divulgação e preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia de divulgação). George Orwell, com certa dose de sarcasmo, disse que “jornalismo é publicar o que alguém não quer que seja publicado. O resto é publicidade”. A frase, certamente exagerada, mostra, no entanto, um aspecto interessantíssimo da questão: o jornalismo, com frequência, desagrada e gera reações raivosas por parte de quem teve sua imagem exibida por ângulos menos favoráveis.
José Adércio Leite Sampaio – em “Direito à Intimidade e Vida Privada” (Belo Horizonte: Del Rey, 1998) – teve oportunidade de ponderar que “o comportamento da pessoa é pedra fundamental para que se possa descortinar a licitude ou não de dada invasão da intimidade realizada pela imprensa. Aqueles que buscam os holofotes e fazem de suas experiências pessoais um teatro aberto aos olhos e ouvidos de outros, fazem presumir autorização ou consentimento tácito para que a mídia reproduza, em uma plateia mais ampliada, suas confissões e aventuras”.
Isso nos leva a vários temas conexos. O comportamento da pessoa é, de certo, relevante para definir – ao lado de outros critérios – a licitude ou não da notícia veiculada. Divulgar a orientação sexual de determinado político, por exemplo, é algo que não traz, em princípio, interesse público. Porém, dependendo do caso, a necessidade da divulgação se mostra evidente por si mesma. Há poucos anos descobriu-se que respeitável (até então) senador americano – presidente da Comissão do Congresso que cuidava de crianças desaparecidas e exploradas – era, pasmem, pedófilo. Em casos assim o interesse público na divulgação é tão evidente que dispensa aprofundamento.
Em outras hipóteses a escolha por um dos lados não é tão simples. Um político nadando na piscina de sua casa poderia ser fotografado por câmera oculta? E se o mesmo político é fotografado saindo de motel com amante? Há relevância social na questão? Trata-se de alguém cuja plataforma política é amparada numa moral austera e rígida?
O interesse público, se existente, permeia de razoabilidade a divulgação da notícia. Havendo interesse público, e sendo verdadeira a informação jornalística, os demais tópicos, ainda que contrários, ficam enfraquecidos. Vivemos dias férteis em denúncias. Algumas, embora acompanhadas de fortíssimos indícios, são veiculadas pela imprensa e logo depois esquecidas, atropeladas, por assim dizer, por outras, tão ou mais graves. Denúncias de corrupção, escusos acordos políticos, violação a direitos fundamentais, entre tantos outros casos, são exemplos de notícias cuja divulgação se mostra fundamental ao interesse social.
Esclarece, em belo trabalho, Guilherme Döring Cunha Pereira: “Onde a crítica há de ter latitude especificamente ampla é no campo da ‘atuação das instâncias públicas”. O tema é pacífico, e diz respeito ao próprio núcleo de uma concepção democrática de sociedade. Importa observar que, dada a relevância radical de tudo o que concerne mais imediatamente à gestão da coisa pública, e suposto o papel especial dos meios de comunicação, reconhecido implicitamente pela Constituição, como instrumentos essenciais ao jogo democrático, deve-se reconhecer à mídia, e a todos os cidadãos igualmente, a mais ampla e desinibida liberdade de crítica nesse campo. Sem ela, não se consegue alcançar aquela transparência tão necessária em todos os processos de decisão que se refiram ao bem comum”. (Guilherme Döring Cunha Pereira, Liberdade e Responsabilidade dos Meios de Comunicação. São Paulo: RT, 2002, p. 244/245).
Precauções, porém, são necessárias. Alerta-se Luis Roberto Barroso, discorrendo sobre o interesse público: “É preciso, no entanto, cuidado com essa espécie de cláusula genérica que, historicamente, tem sido empregada, com grande dissimulação, para a prática de variadas formas de arbítrio no cerceamento das liberdades individuais, na imposição de censura e de discursos oficiais de matizes variados. Mesmo porque, vale lembrar que o pleno exercício das liberdades de informação e de expressão constitui um interesse público em si mesmo, a despeito dos eventuais conteúdos que veiculem”.
Interesse público obviamente não se confunde com interesse de eventuais governos – sendo, aliás, frequentemente contrapostos tais interesses. Notou, argutamente, García de Enterría, que “atualmente o interesse público reside na promoção dos direitos fundamentais”. A prisão de políticos é notícia de interesse público. Adiante-se que a divulgação é bem-vinda, não cabendo, segundo cremos, a alegação de ofensa à “honra, a boa fama ou a respeitabilidade”. Um senador acusado de corrupção poderia, por exemplo, impedir que os jornais do país publicassem sua foto, esgrimindo o direito de imagem? A resposta negativa é a única que casa com a razoabilidade.
Outro ponto da mais alta significação: devem ser evitadas quaisquer medidas, judiciais ou administrativas, que turbem o direito à livre circulação de notícias e opiniões. Lembremos que a Constituição Federal, art. 5º, IX, assegura ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Mais adiante, no inciso XIV, garante “a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Apenas em último caso o julgador deve determinar a proibição da veiculação da notícia. Mesmo porque, dada a difusão tecnológica da informação que define nossos dias, o efeito quase sempre é contrário ao pretendido.
No caso de artigos e matérias publicados em jornais, quem responde pelos danos causados à honra? O STJ já teve oportunidade de analisar a questão, decidindo que os jornalistas são civilmente responsáveis, ao lado do dono do veículo de comunicação, pelo que publicam (STJ, Súmula 221: “São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escritor quanto o proprietário do veículo de divulgação”). Assim, o “jornalista responsável pela veiculação de notícia ou charge em jornal, de que decorreu a ação indenizatória de dano moral promovida pelo que se julga ofendido em sua honra, tem legitimidade para figurar no seu pólo passivo” (STJ, REsp. 209.981). Solidariamente, responde o proprietário do veículo de comunicação. A vítima poderá escolher contra quem proporá a ação. Aliás, a jurisprudência já percebeu que “todos aqueles que concorrem para o ato lesivo decorrente da veiculação de notícia na imprensa podem integrar o pólo passivo da ação de responsabilidade civil” (STJ, AgRg no Ag. 702.321).
Julgando o célebre caso da Escola Base – ocorrido em 1994, quando falsas denúncias de abuso sexual destruíram a vida de inocentes, proprietários de uma escola de educação infantil – o STJ, confirmando assim decisão do TJSP, concedeu, a cada uma das vítimas, o valor de R$ 250 mil a título de danos morais, contra o jornal (Folha de São Paulo) que veiculou as acusações. O STJ entendeu que o valor em questão não é abusivo, diante das gravíssimas (e falsas) acusações (STJ, Ag. 801.495).
Convém indagar: vale tudo na guerra por audiência? A resposta, como o leitor intuitivamente pode perceber, é negativa. A televisão, com seu estupendo poder de divulgação, pode, naturalmente, ofender imagens e lesar honras. A TV aberta alcança, hoje, todos os municípios brasileiros. O número de moradias com televisores é maior do que o número de domicílios beneficiados com a rede de esgoto, conforme dados do IBGE. O potencial de lesão a direitos e interesses metaindividuais, portanto, é espantosamente alto. Sendo uma concessão pública, haverá de estar sujeita a padrões mínimos de responsabilidade, consignando a Constituição no art. 221: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Não é isso, contudo, que vem ocorrendo.
Sergio Suiama analisa: “Na busca por pontos no ibope, parece haver um especial prazer das emissoras em explicitar a miséria humana, em todas as suas manifestações. Brigas familiares, exposição de deformações físicas e a submissão de pessoas a constrangimentos de toda a espécie são eventos comuns, acessíveis a milhões de brasileiros. Na precisa observação do psicanalista Jurandir Freire Costa, ‘o jogo se assemelha às visitas que o burguês europeu ‘fin-de-siècle’ fazia a circos, hospícios, hospitais e prisões para ver de perto os ‘monstros degenerados’ e, depois, com suspiro de alívio, dizer: ‘Que bom que não sou eu’” (Sergio Gardenghi Suiama, “A voz do dono e o dono da voz: o direito de resposta coletivo nos meios de comunicação social”, Boletim Científico da ESMPU, ano I, nº 5, out/dez 2002, p. 107). Continua o autor: “Não se trata de moralismo. De há muito que o problema ultrapassou o restrito âmbito das reuniões da Liga das Senhoras Católicas. Trata-se, isso sim, da reiterada violação de direitos fundamentais, pelas emissoras de TV”.
Nas discussões acerca de valores de indenizações há quase sempre valorações pouco objetivas. Como quantificar lesões não patrimoniais? Esse ponto, contudo, ficará reservado para uma análise futura. A cultura jurídica brasileira reconhece a natureza extrapatrimonial do dano, mas insiste em repará-lo de forma puramente patrimonial. Não deixa de ser melancólico reparar em dinheiro direitos fundamentais violados. Podemos, no entanto, concluir com a fina ironia de Balzac, que provocou: “O que o dinheiro faz por nós não compensa o que fazemos por ele”.