6) Após o advento da Lei n. 12.015/2009, que tipificou no mesmo dispositivo penal (art. 213 do CP) os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, é possível o reconhecimento de crime único entre as condutas, desde que tenham sido praticadas contra a mesma vítima e no mesmo contexto-fático.
Esta tese reforça a necessidade de que as condutas sejam cometidas contra a mesma vítima e no mesmo contexto-fático. Se um desses elementos não estiver presente, deve ser reconhecido o concurso de crimes, que será material ou na forma de continuidade delitiva, conforme as circunstâncias.
7) Sob a normativa anterior à Lei n. 12.015/2009, na antiga redação do art. 224, a, do CP, já era absoluta a presunção de violência nos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual.
Antes da Lei 12.015/09, o ato sexual com pessoa vulnerável configurava, a depender do caso, estupro (art. 213) ou atentado violento ao pudor (art. 214), mesmo que praticado sem violência física ou moral, que era presumida no art. 224 do CP. Havia divergência a respeito da natureza da presunção, ou seja, se era absoluta ou relativa. A orientação majoritária é de que a presunção é absoluta, o que afasta a relevância da anuência da vítima:
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que, sob a normativa anterior à Lei nº 12.015/09, era absoluta a presunção de violência no estupro e no atentado violento ao pudor (referida na antiga redação do art. 224, “a”, do CPB), quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual (EREsp 762.044/SP, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. para o acórdão Ministro Felix Fischer, 3ª Seção, DJe 14/4/2010)” (AgRg no AgRg no AREsp 1.443.970/SP, j. 04/02/2020).
8) O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
Esta tese se diferencia da anterior apenas pelo fato de tratar do estupro de vulnerável (art. 217-A), crime resultante da Lei 12.015/09, que revogou a presunção de violência do art. 224 e criou um tipo penal específico para as vítimas menores de quatorze anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não têm o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não podem oferecer resistência.
Quando entrou em vigor o art. 217-A, permaneceu o debate a respeito da presunção, mas agora de vulnerabilidade. Leciona a maioria da doutrina não haver espaço para discussão, pois a lei nada presume. Sua redação é clara e inequívoca: proíbe-se a relação sexual com menor de quatorze anos. Foi este o manifesto propósito do legislador com a revogação do art. 224 – este sim expresso sobre a presunção de violência. Fosse para se perpetuar o debate, seria evidentemente desnecessária qualquer alteração. E, atendendo ao propósito da lei, o STJ firmou o entendimento no sentido de afastar pretensões para apurar concretamente a vulnerabilidade, como se extrai do enunciado da súmula nº 593.
Não obstante ter-se pacificado a matéria, decidiu o legislador inserir, no próprio tipo penal (art. 217-A, § 5º), disposição expressa de que manter relação sexual com menor de quatorze anos é sempre crime, ainda que a vítima tenha consentido, ou mesmo que se demonstre sua experiência sexual anterior.
9) O estado de sono, que diminua a capacidade da vítima de oferecer resistência, caracteriza a vulnerabilidade prevista no art. 217-A, § 1º, do Código Penal – CP.
O 1º do art. 217-A dispõe que incorre na mesma pena do caput quem pratica as ações nele descritas com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Na última hipótese, em que a vítima não pode, por qualquer causa, oferecer resistência, podemos citar como exemplos as situações da pessoa que, embora não padeça de nenhuma anomalia mental, embriaga-se até a inconsciência e, inerte, é submetida ao ato sexual sem que possa resistir; ou da pessoa que é induzida, por meio de drogas, à inconsciência por alguém que tem o propósito de com ela manter relação sexual não consentida. Segundo o STJ, o estado de sono também pode caracterizar a impossibilidade de resistir:
“1. Dispõe o art. 217-A, §1º, do Código Penal, que também se configura o delito de estupro de vulnerável quando é praticado contra pessoa que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”. 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, o estado de sono pode significar circunstância que retira da vítima a capacidade de oferecer resistência. 3. Considerando que o Tribunal a quo destacou que o paciente iniciou os atos enquanto a vítima estava dormindo, sem poder oferecer naquele momento qualquer resistência, não há ilegalidade a ser reconhecida nessa instância, em especial porque a via do habeas corpus não comporta análise de provas com o fim de alterar o entendimento da Corte de origem e do Juízo de primeiro grau, que têm maior proximidade com os dados fático-probatórios” (AgRg no HC 489.684/ES, j. 19/11/2019).
10) No crime de estupro em que a vulnerabilidade é decorrente de enfermidade ou deficiência mental (art. 217-A, § 1º, do CP), o magistrado não está vinculado à existência de laudo pericial para aferir a existência de discernimento ou a possibilidade de oferecer resistência à prática sexual, desde que a decisão esteja devidamente fundamentada, em virtude do princípio do livre convencimento motivado.
Ao contrário do que ocorre com o menor de quatorze anos, no caso do deficiente mental não se pune a relação sexual pelo simples fato de ter sido praticada com alguém nesta condição. Aqui, caracteriza-se o crime se o agente mantiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, em virtude de enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento. É imprescindível, portanto, ao contrário do que se verifica no caput do art. 217-A, apurar concretamente se a pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental tinha ou não discernimento para a prática do ato.
A forma mais adequada de apurar a capacidade de discernimento é o exame pericial, mas, segundo tem decidido o STJ, não se trata de condição inafastável:
“No processo penal brasileiro, vigora o princípio do livre convencimento motivado, em que o julgador, desde que de forma fundamentada, pode decidir pela condenação, não se admitindo no âmbito do habeas corpus a reanálise dos motivos pelos quais a instância ordinária formou convicção pela prolação de decisão repressiva em desfavor do acusado (AgRg no HC n. 469.930/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, julgado em 9/10/2018, DJe de 17/10/2018). 3. Para fins de caracterização da vulnerabilidade da vítima maior de idade e portadora de enfermidade mental, é permitido ao Magistrado, mesmo que sem a presença de laudo pericial, aferir a existência do necessário discernimento para a prática do ato ou a impossibilidade de oferecer resistência à prática sexual, desde que mediante decisão devidamente fundamentada, atendendo ao princípio do livre convencimento motivado” (HC 542.030/MS, j. 14/02/2020).
11) O beijo lascivo integra o rol de atos libidinosos e configura o crime de estupro se obtido mediante emprego de força física do agressor contra vítima maior de 14 anos.
No art. 213 do CP se pune o ato de libidinagem violento, coagido, obrigado, forçado, no qual o agente busca constranger a vítima à conjunção carnal (conjunção normal entre sexos opostos) ou praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.
A expressão “outro ato libidinoso” é bastante ampla, porosa e, se não interpretada com cautela, pode culminar em séria injustiça. Deve-se aquilatar o caso concreto para concluir se o ato praticado foi capaz de ferir ou não a dignidade sexual da vítima com a mesma intensidade de uma conjunção carnal. Como exemplos citamos o coito per anum, inter femora, a fellatio, o cunnilingus, o anilingus, ou ainda a associação da fellatio e o cunnilingus, a cópula axilar, entre os seios, vulvar etc. Segundo o STJ, mesmo o beijo lascivo pode caracterizar o crime se associado ao emprego de força que impeça a vítima de reagir:
“2. O estupro é tipo misto alternativo e crime pluriofensivo, pois o crime do art. 213 do Código Penal tutela dois bens jurídicos: a liberdade sexual e, alternativamente, a integridade corporal e a liberdade individual. O núcleo do tipo é “constranger”, o que acarreta no comportamento de retirar de uma pessoa sua liberdade de autodeterminação, no sentido de coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Outrossim, o dissenso da vítima quanto à conjunção carnal ou outro ato libidinoso é fundamental à caracterização do delito: trata-se de elementar implícita do tipo penal. 3. O estupro é, pois, crime complexo em sentido amplo, constituindo-se de constrangimento ilegal voltado para uma finalidade específica, consistente em conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Ademais, a execução desta conduta típica especial de constrangimento ilegal possui elementos especializantes de meio de execução, consistentes na violência (vis absoluta ou vis corporalis) ou grave ameaça (vis compulsiva). A grave ameaça, também conhecida como violência moral, é a promessa de realização de mal grave, futuro e sério contra a vítima (direta ou imediata) ou pessoa que lhe é próxima (indireta ou mediata). Por sua vez, a violência caracteriza-se pelo emprego de força física sobre a vítima, consistente em lesões corporais ou vias de fato. Pode ser direta ou imediata, quando dirigida contra o ofendido, ou indireta ou mediata, se voltada contra pessoa ou coisa ligada à vítima por laços de parentesco ou afeto. 4. O beijo lascivo ingressa no rol dos atos libidinosos e, se obtido mediante violência ou grave ameaça, importa na configuração do crime de estupro. Evidentemente, não são lascivos os beijos rápidos lançados na face ou mesmo nos lábios, sendo preciso haver beijos prolongados e invasivos, com resistência da pessoa beijada, ou então dos beijos eróticos lançados em partes impudicas do corpo da vítima. Por conseguinte, verificar-se-á estupro mediante violência caso a conduta do beijo invasivo busque a satisfação da lascívia, desde que haja intuito de subjugar, humilhar, submeter a vítima à força do agente, consciente de sua superioridade física. 5. No caso, resta evidente a utilização de força física, conquanto ausentes vestígios de lesão, para beijar a vítima contra sua vontade, e ainda lhe esfregar o órgão genital ereto, tendo o recorrente parado apenas por ter sido impedido por testemunha. Em tese, tal conduta amolda-se à hipótese típica do crime de estupro, para realização de atos libidinosos, cometido por meio de violência, consistente no emprego de força física contra a vítima, subjugando-a pela superioridade física do agente, até porque aquela possui limitações físicas decorrentes da ataxia cerebelar. 6. Ressalte-se que não há falar em aplicação retroativa, em tese, do crime de importunação sexual (CP, art. 215-A), porquanto a prova semiplena angariada até o momento levam à conclusão de utilização de violência para a prática do ato libidinoso, o que afasta a incidência da novatio legis in mellius, trazida pela Lei n. 13.718/2018, porquanto funciona como elemento especializante do crime de estupro” (RHC 93.906/PA, j. 21/03/2019).
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Manual de Direito Penal (parte especial)
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