Sumário: 1. Introdução – 2. A imprensa e a justiça – 3. Cooperação – 4. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
No dia 16 de janeiro de 2019, um só assunto dominava o debate político em Accra, capital de Gana: o assassinato do jornalista Hussein-Suale Divela, que havia sido encontrado morto num bairro ao norte da cidade e com três tiros fatais.
Hussein-Suale era um dos principais jornalistas do grupo Tiger Eye Private Investigations, uma equipe que, ao longo dos últimos anos, revelou alguns dos maiores casos de corrupção em países do Oeste Africano.
Com sua identidade sempre mantida em sigilo, o jornalista fez parte de investigações que mostraram, por exemplo, como juízes das mais altas cortes na Nigéria eram subornados por empresas petrolíferas.
Em junho de 2018, Hussein-Suale realizou um documentário em que expunha de forma explícita a corrupção na Associação de Futebol de Gana. Seu trabalho obrigou a FIFA a abrir investigações formais e o cartola que comandava o esporte no país, Kwesi Nyantakyi, foi banido do futebol.
Ainda que os produtores do documentário tivessem tentado manter a identidade do jornalista em sigilo, Kennedy Agyapong, membro do Parlamento de Gana e acusado de fazer parte do esquema de corrupção no futebol local, descobriu sua autoria e decidiu expô-lo em rede nacional, insinuando que seus aliados deveriam atacar o repórter. Logo depois, em setembro de 2018, Hussein-Suale recorreu ao Comitê para a Proteção de Jornalistas, alertando que havia recebido ameaças de morte. Quatro meses depois, ele seria assassinado.
Sua morte não apenas chocou a opinião púbica do país. Mas reabriu velhas feridas de uma era em que o regime militar promovia intimidações, prisões e torturas de qualquer um que ousasse denunciar o sistema.
Gana passou por uma profunda transformação a partir do início dos anos 90 e se consolidou como uma das democracias mais estáveis do continente africano. No que se refere à liberdade de imprensa, o país viveu uma revolução e, em 2018, terminou como o 23º país no ranking da entidade Repórteres Sem Fronteiras, superando França, Grã-Bretanha, Espanha e outras tradicionais democracias.
Mas o assassinato do jornalista deixou claro: não existem garantias de que, uma vez atingido um estágio de liberdade de expressão e democracia, os riscos não possam ressurgir. Tampouco existem garantias de que liberdade de imprensa seja intocável, principalmente quando ela tenta expandir suas fronteiras.
Ao redor do mundo, os ataques contra jornalistas não fazem distinção de regime político, de ideologia ou de nível de PIB. Os dados comprovam que, por mais que a liberdade de imprensa seja um direito amplamente reconhecido, ela é alvo de ataques constantes. Seja por meio de uma bala na cabeça, uma batida na porta de sua residência para uma “conversa”, um telefonema anônimo ou a suspensão de autorização para importação de tinta e papel para a impressão de um jornal de grande veiculação.
No dia 16 de outubro de 2016, uma explosão de um carro fez a Europa relembrar que o combate à corrupção e o trabalho dos jornalistas continuavam sob ameaça, apesar de todas as garantias constitucionais, dos tribunais, do Estado democrático de direito e dos avanços sociais no continente. Naquele dia, a jornalista investigativa de Malta, Daphne Caruana Galizia, foi alvo de um atentado. Seu trabalho consistia essencialmente em apurar a participação do crime organizado dentro das instituições públicas e a corrupção. Ela também havia sido uma das jornalistas que traçou a relação entre os dados descobertos no Panama Papers, investigação jornalística que resultou no maior vazamento de documentos secretos relacionados a empresas offshores do Panamá.
No dia 25 de fevereiro de 2018, era a vez do jornalista eslovaco Ján Kuciak ser alvo de um atentado. Tibor Gaspar, chefe da polícia local, não escondeu que o assassinato estava ligado ao trabalho de Kuciak para revelar a corrupção em seu país.
A consternação ganhou espaço entre o poder político europeu, cuja imagem que nutria pelo mundo se mostrava diferente da realidade. A falta de avanço nas investigações ainda levou a Comissão Europeia a ter de dar satisfações aos jornalistas e fazer uma declaração que poderia parecer impensável no século XXI: a liberdade de imprensa na Europa precisa ser defendida.
“Queremos saber toda a verdade”, declararam o vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmersmans e outros comissários. “Devemos enviar uma mensagem clara a todos os jornalistas: é seguro trabalhar na Europa. Se os jornalistas são silenciados, também fica muda a democracia. E isso não ocorrerá na Europa”, prometeram.
A realidade pelo mundo, porém, está distante de uma garantia de vida para dezenas de profissionais. De acordo com dados da Transparência Internacional, 368 jornalistas foram mortos entre 2012 e 2018 no exercício de seus trabalhos. Desse total, 20% – 70 profissionais do setor de comunicações foram assassinados enquanto investigavam temas relacionados com a corrupção. Ou seja, um a cada cinco assassinatos de jornalistas tem uma relação direta com a corrupção, superando o número de profissionais mortos em coberturas de conflitos armados.
A incidência revela, de fato, o ambiente em que operam grupos criminosos, políticos corruptos ou empresários dispostos a fraudar o sistema público para garantir privilégios e contratos.
Os dados são corroborados por pesquisas realizadas pela entidade Repórteres sem Fronteira. “Em países onde a corrupção é endêmica, ela é também, de forma frequente, um dos maiores tabus para jornalistas e uma das histórias mais perigosas a serem cobertas”.
“Entretanto, seja nos países ricos ou pobres, os jornalistas estão na linha de frente dos esforços anticorrupção, pagando um preço alto por investigações que ajudam a prevenir a corrupção de minar a democracia e fomentar as violações de direitos humanos”.
Em 2016, num esforço para expor esse perigo, a entidade apresentou uma série de casos de jornalistas assassinados ou ameaçados. Todos foram mortos ou detidos pelo mesmo motivo: trabalhavam em histórias relacionadas com a corrupção em suas regiões.
Marcos Hernandez Bautista foi um deles. Com 38 anos, o jornalista mexicano foi morto, em 2016, no estado de Oaxaca, depois de publicar matérias em que tratava dos negócios escusos de empresários locais.
Na Turquia, mais de uma centena de jornalistas foram processados e presos depois de tratar de casos que poderiam indicar desvios de dinheiro público por parte da gestão do presidente Erdogan.
A ameaça judicial é também um instrumento usado com frequência em outros países. Na Rússia, por exemplo, o jornalista Alexander Sokolov foi mantido preso por 15 meses antes de ser levado a uma corte. Por ter publicado matérias sobre a suspeita de desvios de recursos no valor de mais de 1,2 bilhão de euros nas obras de um centro espacial russo, o repórter foi acusado de “organizar um grupo terrorista”, o que o levaria a ser sentenciado a oito anos de prisão.
O mesmo ocorreu com o jornalista Sergei Reznik, que expôs a corrupção por parte de elites locais na cidade de Rostov-on-Don. Em 2014, ele foi preso.
Um destino mais trágico teve o russo Boris Nemtsov, morto em Moscou em 2015 em um crime até hoje não elucidado. Crítico de Vladimir Putin, Nemtsov havia denunciado o autoritarismo cada vez maior do Kremlin e a corrupção no governo. Com reportagens publicadas em 2014 sobre o desvio de verbas públicas nas obras de Socchi para os Jogos Olímpicos de Inverno, o dissidente havia alertado que temia ser vítima de assassinato.
Foi o que ocorreu na noite de 27 de fevereiro de 2015, quando Nemtsov foi alvo de quatro tiros enquanto caminhava nas proximidades do Kremlin. Sua filha, Zhanna, passou a exigir uma investigação completa do crime, o que lhe valeu ameaças – e a necessidade de deixar a Rússia.
Mas basta percorrer os locais denunciados por Nemtsov para se deparar com números que revelam sérias suspeitas.
Para fazer apenas 49 quilômetros de trajeto em duas pistas para carros e uma linha de trem entre Sochi e as montanhas de Krasnaya Polyana, por exemplo, foram destinados US$ 8 bilhões para as obras inauguradas para o megaevento de 2014. O valor apenas da estrada era superior a tudo o que Brasil gastou para erguer seus estádios para a Copa daquele mesmo ano.
A estrada, apesar da complexidade de seus mais de 60 túneis e pontes, tinha um orçamento inicial de US$ 2,8 bilhões. O contrato não foi sequer aberto para licitação e os trabalhos ficaram a cargo de duas empresas, ambos com ligações a aliados do presidente Vladimir Putin.
Nemtsov havia denunciado que a estrada seria apenas parte de um esquema que passou a ser considerado como um exemplo do que uma cidade-sede não pode fazer como projeto olímpico. A transparência dos gastos da obra nunca foi publicizada.
Sochi, segundo ele, era acima de tudo um projeto pessoal de Vladimir Putin. O presidente russo tinha a cidade como seu destino predileto na Rússia e decidiu que voltaria a dar a ela o mesmo status que tinha durante a era Soviética. Por décadas, a elite do Partido Comunista costumava ser enviada para Sochi como forma de premiação pelos seus atos de colaboração com o regime. Como muitas cidades da ex-URSS, Sochi chegou ao século 21 ultrapassada e parada no tempo. Para repaginá-la, foram destinados US$ 51 bilhões até 2014. Depois disso, mais alguns milhões foram gastos para a Copa do Mundo de 2018.
O estádio que seria usado para sediar cinco jogos da Copa, o Fisht, custou oficialmente US$ 779 milhões e também foi o local de abertura e encerramento da Olimpíada de 2014. Só para retirar o teto que existia para os Jogos de Inverno e adaptá-lo para o uso da FIFA, mais US$ 46 milhões foram gastos.
Ao longo de sua obra, o jornalista viu seu orçamento aumentar em 14 vezes. A construção ficou a cargo da empresa Engeocom, acusada de irregularidades pelo Tribunal de Contas da Rússia. A divisão de investigações da cidade de Sochi também iniciou, em 2012, um inquérito sobre os valores destinados ao estádio. Mas, cinco anos depois, o caso ainda não foi concluído.
Em um outro estudo realizado por Alexey Navalny, também opositor de Putin, revelou que as construtoras que ganharam contratos na cidade pertenciam a grupos aliados ao presidente russo.
No caso da arena de hockey e a pista de bobsled, por exemplo, o valor da obra ficou US$ 260 milhões acima dos preços de mercado. Elas foram realizadas por uma empresa de políticos da Sibéria que jamais tinha feito obras para arenas esportivas. Trata-se da Mostovik, que até 2014 tinha construído somente uma ponte em Vladivostok. Ela, porém, era de propriedade do deputado Oleg Shilov, aliado do Kremlin.
A investigação também mostrou que três amigos de longa data de Putin receberam um total de US$ 15 bilhões em contratos. Um deles era o parceiro de artes marciais de Putin e um dos homens mais ricos da Rússia, Gennady Timchenko. Outro, Arkady Rotenberg, ganhou sozinho US$ 7 bilhões em contratos.
Também foi beneficiado o instrutor de esqui do ex-primeiro-ministro, Dmitry Medvedev. A empresa que recebeu contratos para fazer uma das pistas de esqui foi a Rosengineering, criada por Dmitry Novikov, da federação de esqui e amigo de Medvedev.
Até a Igreja Ortodoxa, aliada a Putin, foi beneficiada em Sochi. Putin colocou seu chefe de gabinete, Vladimir Kozhin, para presidir uma fundação que iria recolher doações para renovar a igreja de Sochi. O local acabou recebendo US$ 15 milhões do orçamento olímpico, sob a justificativa de ser um “centro cultural e histórico” da cidade.
Falar da corrupção em Sochi, porém, se transformou em um tabu. Nos anos que anteciparam os Jogos de 2014, procuradores chegaram a apontar que cerca de US$ 800 milhões poderiam ter sido desviados em propinas nas obras. Nenhum dos casos jamais avançou e a censura imposta pelo governo sobre a imprensa russa também impediu que investigações e a publicação de reportagens fossem realizadas sobre o tema.
Com o material que Boris Nemtsov colheu, ele chegou à conclusão que o dinheiro para transformar Sochi em um centro do esporte e do prestígio de Putin seria suficiente para realizar 3 mil quilômetros de estradas ou construir 800 mil casas para os russos.
Seu trabalho jamais resultou em condenações. Mas as informações ajudaram a moldar uma percepção de que aquele megaevento tinha um propósito que ia muito além da disputa por medalhas.
Para a Transparência Internacional (TI), a luta contra a corrupção vai muito além de adotar regras e pacotes que estipulem normas de combate aos pagamentos ilícitos ou lavagem de dinheiro. Segundo a entidade, está provado que a corrupção sabe, de uma forma bastante inovadora, driblar e encontrar brechas para escapar de um controle público.
Nessa luta, é a pressão da sociedade civil e da imprensa que ajuda a cobrar o devido comportamento por parte de governantes.
Segundo a TI, “Uma imprensa livre a independente serve a uma importante função de investigar e reportar incidentes de corrupção” (…). “As vozes da sociedade civil e dos jornalistas ajudam a colocar uma atenção aos atores podres e podem ajudar a lançar ações por parte da lei e do sistema de cortes”.
A constatação, assim, é de que existem evidências de que países que respeitam a liberdade de imprensa e incentivam o diálogo tem mais sucesso em controlar a corrupção.
Já países que limitam o trabalho dos jornalistas e restringem as liberdades civis, tradicionalmente aparecem em posições inferiores nos rankings de combate à corrupção.
De fato, o cruzamento dos rankings de liberdade de imprensa e de percepção da corrupção sugere que essa relação vai além de uma mera tese. Quanto mais elevado no ranking de liberdade de imprensa é uma sociedade, menor é a percepção de corrupção naquele mesmo país.
Em sua última edição da classificação de percepção de corrupção, a Transparência Internacional trouxe a Dinamarca na primeira posição, seguida pela Nova Zelândia, Finlândia, Cingapura, Suécia, Suíça, Noruega, Holanda, Canadá e Luxemburgo.
Já no ranking de 2019 de liberdade de expressão da entidade Repórteres sem Fronteira, sete deles são exatamente os mesmos: Noruega, Finlândia, Suécia, Holanda, Dinamarca, Suíça e Nova Zelândia. Canadá e Luxemburgo estão ainda entre os 20 mais bem colocados.
Mas a análise daqueles que perdem posições em uma classificação de corrupção também coincide com a queda no ranking de liberdade de expressão.
Um dos casos mais emblemáticos é o da Hungria. Em 2012, o país somou 55 pontos no Índice de Percepção de Corrupção. Em 2018, o país registrava apenas 46 pontos, o colocando na 67ª posição do ranking, superado países como Arábia Saudita, Romênia, Malásia ou Cuba.
Enquanto isso, sua posição no ranking de liberdade de expressão desabava, da 56ª posição em 2013 para 73 em 2019. De acordo com a análise da entidade, a imprensa húngara está cada vez mais nas mãos de oligarcas aliados ao primeiro-ministro Viktor Orbán. Como resultado, o cenário nos últimos anos tem sido radicalmente transformado no que se refere ao acesso à informação.
Alguns dos principais meios de comunicação de oposição fecharam suas portas, enquanto a independência editorial de diversos jornais passou a ser ameaçada pela presença de empresários pró-governamentais em seus conselhos ou mesmo entre seus acionistas.
Orbán ainda criou um consórcio de cerca de 500 jornais privados, redes de TV à cabo, emissoras de rádio e novos websites, assim como praticamente todos os jornais locais espalhados pelo interior da Hungria. O governo, então, declarou o consórcio como sendo de “importância estratégica nacional”, gerando uma concorrência desleal em relação aos demais grupos que ainda tentam sobreviver.
Há, porém, sinais positivos nessa movimentação dentro dos rankings. Uma delas seria a da Costa do Marfim, que passou a ver uma maior participação da sociedade civil nos debates políticos, assim como avanços no que se refere aos direitos humanos básicos.
A pontuação do país no ranking da percepção de corrupção subiu de 27 em 2013 para 36 em 2017.
Ao mesmo tempo, o país subia no ranking da entidade Repórteres Sem Fronteira, passando da 101ª posição em 2014 para 82 em 2018. Segundo a entidade: “Uma nova lei de imprensa que diz que não são admissíveis alegações para a detenção de jornalistas deve pôr fim à detenção provisória de jornalistas, que ainda é comum, com oito jornalistas detidos provisoriamente em 2017”.
Ela, porém, alerta que outras disposições da nova lei de imprensa são menos progressistas:
“Insultar o presidente é um crime e os jornalistas podem ser processados por difamação por relatarem factos verificados se envolverem a privacidade de uma pessoa (…). A prometida abertura dos meios de comunicação social ainda não teve lugar e, apesar dos compromissos assumidos pelo governo, não se registaram progressos significativos na investigação do desaparecimento de Guy-André Kieffer, um jornalista de dupla nacionalidade francês e canadense, em Abidjan, há 15 anos”.
A “coincidência” entre o ranking dos países com o melhor desempenho em liberdade de expressão e o ranking dos países sobre a percepção de corrupção sugere que a proteção de jornalistas e de liberdades civis seja um pré-requisito para uma redução no longo prazo dos níveis de corrupção identificados num país.
2. A IMPRENSA E A JUSTIÇA
Tais denúncias podem forçar mudanças em legislações, reabrir debates em Parlamentos sobre caminhos tomados por uma sociedade ou simplesmente pressionar instituições a repensarem seus papeis.
São centenas os exemplos de reportagens que, ao longo da história, tiveram um impacto real no destino de democracias, desde a queda de presidentes, em instâncias de enorme impacto ou em bairros esquecidos da periferia de grandes cidades.
No Equador, por exemplo, uma reportagem de jornal Hoy mostrou como o presidente Abdalá Bucaram tinha desviado dinheiro recolhido durante uma campanha de Natal para ajudar a população carente. Em meio a protestos, Bucaram seria deposto pelo Congresso por “incapacidade mental”.
Na Venezuela, duas reportagens do jornal El Universal de Caracas precipitaram a queda de Carlos Andrés Pérez. Numa delas, o então presidente era acusado de ter desviado US$ 17 milhões. Outros documentos vazados do Banco Central e do Ministério das Relações Exteriores, indicaram que “Pérez e dois ajudantes lucraram milhões trocando a moeda venezuelana em dólares logo antes da desvalorização”. Depois que os legisladores venezuelanos iniciaram o processo de impeachment, Pérez foi forçado a renunciar.
O Judiciário não está isento da fiscalização da imprensa e um exemplo foi como isso ocorreu em 1981 nos Estados Unidos. Em Detroit, uma investigação conduzida por uma emissora de rádio sobre corrupção e irregularidades levou à renúncia de juízes, bem como uma mudança na forma como os magistrados eram escolhidos.
Num levantamento publicado em 2018, a OCDE constatou que entre 1999, quando entrou em vigor a Convenção Anticorrupção da entidade, e 2017, 2% de todos os casos em que aplicou sanções vieram originalmente de denúncias reveladas pela imprensa. Outros tantos acabaram sendo alvo de processos judiciais em diferentes países, com resultados concretos.
Um deles ocorreu em 2012, quando uma TV sueca e um programa liderado por Nils Hanson, iniciou um amplo e minucioso trabalho de avaliar pagamentos por parte de uma empresa semiestatal de telecomunicações sueco-finlandesa, a Telia Sonera, para Gulnara Karimova, filha do presidente do Uzbequistão.
Na imprensa local, a relação entre a semiestatal e Karimova já era em parte conhecida. Mas os jornalistas decidiram ir além. Em seu relatório anual, a Telia Sonera apontava para uma transferência de fundos para uma companhia com sede em Gibraltar, a Takilant.
Em Gibraltar, os jornalistas tiveram acesso ao registo comercial da entidade e descobriram que um de seus diretores era, na realidade, um assistente pessoal de Karimova. Uma vez publicado o documentário, os procuradores suecos iniciaram uma investigação e ampliaram uma colaboração com a justiça norte-americana. Em setembro de 2017, a procuradoria sueca denunciou três pessoas pertencentes à Telia Sonera por subornos e uma queixa contra a empresa.
Em uma avaliação publicada pela OCDE, o caso é considerado como um exemplo. “A investigação dos jornalistas foi possível graças a dados abertos na Suécia e noutros países, o que permitiu a consulta em linha ou presencial dos registos de empresas e forneceu aos jornalistas os relatórios anuais das empresas”.
De acordo com a entidade, foi o ambiente existente na Suécia que, de fato, abriu caminho para que uma reportagem de tal impacto pudesse ser realizada.
“A Suécia tem regras específicas em matéria de liberdade de imprensa (Lei da Liberdade de Imprensa 1949) e liberdade de expressão noutros meios de comunicação social (Lei Fundamental sobre a Liberdade de Expressão, 1991)” (…). “O objetivo destas normas constitucionais é, nomeadamente, assegurar a livre troca de opiniões, mas é também uma forma de o público exercer controle sobre a administração pública”.
Entre essas leis estão alguns princípios fundamentais, como a proibição absoluta da censura, o fato de o fornecedor da informação ter direito ao anonimato e os jornalistas não poderem revelar a fonte da sua informação. Segundo a OCDE (2018): “As autoridades e outros organismos públicos não podem investigar quem forneceu a informação, se o fornecedor tiver optado por ser anónimo, e não podem tomar quaisquer medidas de repreensão, tais como medidas de investigação contra o fornecedor”.
Isso, porém, não significa que a liberdade de expressão seja absoluta. “A responsabilidade pelo conteúdo de uma declaração publicada pode ser posta em causa por certos crimes enumerados na Constituição sueca. Estes incluem certos crimes graves contra a segurança do reino, a agitação contra grupos étnicos, a ameaça ilegal e a difamação”.
Assim como o caso sueco, são diversos os casos em que democracias e o combate à corrupção acabam sendo auxiliados pelo trabalho da imprensa.
Nos últimos anos, o esporte também passou a ser foco dessa atenção. Em 2017, por exemplo, a polícia espanhola prendeu o ex-presidente do Barcelona e aliado do brasileiro Ricardo Teixeira, Sandro Rossell. O centro da investigação, portanto, era o contrato que Rosell manteve com a CBF para a realização de partidas amistosas, revelado pelo autor desse capítulo em 2013, além de negócios envolvendo a empresa Nike e lavagem de dinheiro.
A matéria havia chamado a atenção do Departamento de Justiça nos Estados Unidos que, em uma carta rogatória para a Espanha, solicitava o congelamento de contas relacionadas com a denúncia e pedia a colaboração de Madri.
Os espanhóis passaram a abrir sua própria linha de investigação de que os dois suspeitos haviam lucrado US$ 15 milhões com a venda de direitos de TV para os jogos do Brasil. Os investigadores consideravam que se tratava de uma “organização criminosa” que desviava dinheiro de amistosos do Brasil e fazia sua lavagem em paraísos fiscais.
A suspeita também era de que a Nike teria pago uma propina de US$ 40 milhões em uma conta na Suíça para fechar um contrato com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para patrocinar a seleção brasileira. Segundo o levantamento, o acordo avaliado em US$ 140 milhões rendeu em pagamentos paralelos e depositados no paraíso fiscal alpino. Do total da suposta propina, uma parcela foi para Teixeira e outra para o empresário J. Hawilla, que teria intermediado o contrato.
Num primeiro momento, a Justiça bloqueou cerca de 10 milhões de euros em contas, além de cerca de 50 imóveis, avaliados em mais de 25 milhões de euros.
Na base da operação estava, no fundo, um trabalho de investigação da imprensa. Em 2013, fora revelado que Rosell mantinha contratos com a CBF e que parte da renda dos amistosos jamais chegava ao Brasil. Eles eram transferidos para empresas com sede nos Estados Unidos, registrada em nome de Sandro Rosell. A prática, segundo documentos consultados e fontes escutadas pelo autor, teria marcado a gestão de Teixeira na CBF a partir de 2006.
Nos últimos anos, a realização de amistosos tem sido a principal fonte de entrada de recursos de federações de futebol. No caso do Brasil, o fato de ter sido campeão em 2002, vice em 1998 e único time pentacampeão do mundo permitiu que a CBF e seus agentes aumentassem o valor do cachê para atuar pelo mundo. Do Gabão à Hong Kong, passando pela Estônia ou Zimbábue, a seleção percorreu o mundo cobrando pelo menos US$ 1 milhão cada vez que entrava em campo. O detentor do direito de organizar os jogos era, desde 2006, a ISE, empresa com sede nas Ilhas Cayman.
Mas nem todo o dinheiro que saia das federações estrangeiras, direitos de imagem ou governos de outros países eram enviados ao Brasil. O destino eram contas nos EUA.
Um pré-contrato obtido pelo autor desse capítulo mostrava que a ISE fechou um entendimento para negociar 24 jogos amistosos com a empresa Uptrend Development LLC, com sede em Nova Jersey, nos EUA. Em nome da empresa nos Estados Unidos, a assinatura é de Alexandre Feliu, o nome oficial de Sandro Rosell.
Uma investigação aprofundada revelou que a empresa sequer tinha uma sede. O endereço onde a empresa americana estava registrada ficava na pequena cidade de Cherry Hill, localizada no Estado de Nova Jersey. No número 105 da Church Road.
Funciona um empreendimento que aluga salas para que companhias façam reuniões e oferece serviços que possibilitam de existirem apenas virtualmente. Uma mesma secretária fica responsável pegar recados de todas as razões sociais ali locadas.
O esquema funcionava da seguinte forma: a partir de cada jogo, eram repassados para a ISE como lucros da partida cerca de US$ 1,6 milhão. Desse total, US$ 1,1 milhão seguiam de volta para a CBF como pagamento pelo cachê. Mas o restante – cerca de US$ 500 mil –não era contabilizado para a entidade. Pelo contrato, US$ 450 mil seriam encaminhados para contas nos EUA, direcionado a uma empresa de propriedade de Rosell.
No total, o contrato aponta que, por 24 jogos, o valor previsto para o pagamento seria de 8,3 milhões de euros para a empresa nos EUA. O dinheiro era enviado por meio de contas em Andorra.
Com base na informação revelada em 2013, os investigadores espanhóis conseguiram ampliar a apuração e chegaram aos valores das comissões para cada uma das partidas sob suspeita.
No dia 26 de março de 2008, por exemplo, o Brasil enfrentaria a Suécia. Enquanto os jogadores suavam a camisa, os cartolas levavam mais 242 mil euros. Em junho, mais dois amistosos também entraram na lista de pagamentos. No dia 1º daquele mês, Brasil enfrentaria o Canadá e, no dia 7, a Venezuela. No total, os dois jogos renderiam 484 mil euros para a conta secreta.
Em julho, já na Ásia para a Olimpíada de Pequim, mais dois jogos com países sem tradição futebolística também trariam benefícios econômicos: Brasil x Singapura e Brasil x Vietnã. A seleção venceu ambos. Mas a conta dos cartolas foi ampliada com mais 484 mil euros.
Em 2009, mais quatro jogos também geraram pagamentos para bancos em Andorra, por parte da empresa que os organizava. Antes, em 2007, oito partidas também renderam milhões de reais aos cartolas. As transferências ocorriam para a conta numerada AD14 0001 0000 4068 1110, aberta no dia 17 de novembro de 2006.
No dia 30 de maio de 2007, mais 1 milhão de euros entraria na conta dos cartolas. Desta vez, o motivo do depósito dos sauditas teria sido a intermediação de Rosell para que a ISE adquirisse os direitos a partidas que estavam sob o controle de outra empresa.
Havia provas, portanto, que a seleção havia enriquecido os dirigentes. Entretanto, em abril de 2019, a Justiça da Espanha optou por absolver Rosell de crimes de lavagem de dinheiro. A Audiência Nacional estimou que não existiam provas suficientes para o condenar e que, portanto, vingaria o princípio “in dubio pro reo”.
Para a Justiça, não houve uma prova de que a CBF tenha sido prejudicada por conta do dinheiro pago. Considerou-se que tais valores poderiam ser honorários de fato pagos a Rosell por conta de sua intermediação para a realização dos jogos da seleção.
De fato, uma das provas da defesa foi uma carta assinada pela própria CBF em que a entidade brasileira insistia que não havia sido prejudicada. “A CBF nega ter padecido”, indicou a sentença final. “Ela vai além e mantém que, no longo prazo, foi beneficiada pela conclusão do contrato”, constatou o Tribunal.
Teixeira não foi julgado, já que seu caso, ainda em 2017, foi transferido para que o Ministério Público brasileiro pudesse acusá-lo. Mas outro argumento considerado foi o fato de que a CBF é uma entidade privada.
Teixeira, portanto, não poderia ser considerado como um funcionário público e, pelas leis no Brasil, não se aplicariam punições por corrupção entre particulares.
Mesmo sem a condenação, a sentença deixou claro que os pagamentos ocorreram e que a seleção brasileira enriqueceu os dirigentes graças a seus jogos amistosos, um fator que não teria sido de conhecimento público se não fosse por conta de um trabalho da imprensa. Os procuradores espanhóis recorreram da decisão pela absolvição e o processo está em curso.
No esporte, uma outra investigação conduzida por Hajo Seppelt, repórter da TV ARD da Alemanha em 2014, revelou o esquema de corrupção e de doping com participação do Estado russo, levando a Agência Mundial Antidoping (WADA) a abrir investigações. O resultado: mais de cem atletas russos não puderam competir nas Olimpíadas do Rio em 2016 e uma tensão até mesmo geopolítica foi aberta.
O trabalho da imprensa obrigou a WADA a realizar seu próprio inquérito e constatou que o governo da Rússia promoveu uma indústria para manipular resultados no atletismo, subornando dirigentes, comprando resultados e mesmo destruindo mais de 1,4 mil amostras de sangue de atletas antes que fossem examinadas.
Para os investigadores, o uso de substâncias proibidas era “consistente e sistemático”. Os russos teriam pago milhões de dólares para evitar que seus atletas fossem banidos por doping e que teriam construído até mesmo um laboratório paralelo para onde as amostras seriam enviadas. Apenas aquelas que estivessem limpas seriam repassadas para os laboratórios oficiais e com controle internacional.
As descobertas criaram uma das maiores crises já vividas pelo esporte e colocou uma pressão inédita sobre o COI para que suspendesse a Rússia dos Jogos Olímpicos.
Desde a eclosão da crise, dois ex-dirigentes dos laboratórios russos morreram. Já Grigory Rodchenkov, o ex-diretor do laboratório antidoping do país, foi obrigado a fugir para os EUA, onde ele faz parte de um programa de proteção a testemunhas.
Uma atleta que serviu como whitleblower, Yuliya Stepanova, também passou a viver sob proteção fora da Rússia. Ainda assim, ela teve sua casa invadida em 2016 e a Agência Mundial Antidoping confirmou que hackers entraram em suas contas de dados pessoais mantidos pela entidade.
A própria segurança do jornalista que revelou o esquema foi colocada em questão. Para viajar ao Rio de Janeiro, ele acabou sendo acompanhado por seis membros do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), depois que passou a ser alvo de assédios da imprensa russa e de ameaças.
De acordo com Seppelt, em um dos casos, uma equipe da televisão estatal russa entrou em sua casa para uma entrevista e, no meio dela, passou a acusá-lo de ser um espião de serviços secretos ocidentais, filmando seu apartamento. O repórter foi obrigado a chamar a polícia. Em pleno Congresso do COI em 2016 no Rio, dois incidentes foram registrados pelo repórter e presenciados pela imprensa internacional.
Em 2018, os serviços de inteligência da Alemanha recomendaram ao repórter que não fosse cobrir a Copa do Mundo, na Rússia. Segundo as autoridades alemãs, não haveria como garantir que sua segurança fosse preservada durante o evento.
Meses antes, seu visto havia sido negado para ir para a Copa. Autoridades alemãs, entre elas o ministro das Relações Exteriores, Heiko Maas, pediram publicamente para que o governo da Rússia reconsiderasse a decisão. No entanto, houve a insistência que ele deveria ser interrogado sobre o seu trabalho se fosse de fato viajar para o país.
3. COOPERAÇÃO
Nos últimos anos, um trabalho de investigação realizado por um consórcio de jornalistas serviu como “divisor de águas” no papel da imprensa na luta contra a corrupção.
O International Consortium of Investigative Journalists, liderado pelo jornal alemão Suddeutsche Zeitung e com a colaboração de mais de cem meios de comunicação no mundo, passou mais de um ano avaliando 11 milhões de documentos que haviam sido vazados.
A operação foi batizada de Panama Papers e revelou, em 2016, como líderes políticos, empresários, artistas, esportistas, narcotraficantes e instituições se aproveitavam de brechas em paraísos fiscais para evadir bilhões de dólares em impostos.
A empresa que mantinha os documentos, a Mossack Fonseca, havia se transformado num dos centros de criação de empresas de fachada para permitir que esquemas fiscais sofisticados fossem estabelecidos. Ao analisar 2,6 terabites de informações, os jornalistas de 80 países diferentes encontraram um total de 214 mil empresas de fachada criadas com o objetivo de esconder das autoridades as fortunas – legalmente adquiridas ou não da elite mundial. Ainda que o uso de estruturas offshore seja legal, o que a investigação mostrou é que sua existência contribuiu de forma decisiva para a evasão de bilhões de dólares em impostos. Além disso, as estruturas foram usadas para esconder relações financeiras entre grupos criminosos e empresas ou políticos.
Autoridades em todo o mundo passaram a avaliar o conteúdo das informações, abrindo dezenas de investigações e tentando entender a dimensão das revelações. Em novembro de 2016, por exemplo, a Europol revelou que havia encontrado mais de 3,4 mil dados no trabalho do Panama Papers que coincidiam com as atividades de organizações criminosas e terroristas. Para a instituição europeia, aquele cruzamento de dados era um sinal claro de que paraísos fiscais estavam cumprindo um papel potencialmente criminoso ao aceitar tais recursos.
Numa reunião em um comitê do Parlamento Europeu, o chefe de Inteligência da Europol, Simon Riondet, admitiu que “o ponto central é que se poderia fazer uma relação entre as empresas que apareciam no Panama Papers não apenas com crimes econômicos, mas também com o terrorismo e grupos criminosos russos”.
Em fevereiro de 2017, depois de meses de pressão internacional, as autoridades do Panamá prenderam os fundadores da Mossack Fonseca, acusando-os de lavagem de dinheiro. Tanto Ramón Fonseca como Jürgen Mossack eram personalidades presentes no sistema político do Panamá. Fonseca serviu como conselheiro do ex-presidente panamenho, Juan Varela, enquanto Mossack chegou a fazer parte do Conselho de Relações Exteriores do país entre 2009 e 2014.
Num comunicado, a procuradora-geral do Panamá, Kenia Porcell, indicou ainda em 2017 que existiam indícios de que o escritório fosse, no fundo, uma potencial “organização criminosa”.
“A informação identifica o escritório panamenho, presumivelmente, como uma organização criminosa dedicada a ocultar ativos (dinheiro) de origens suspeitas, criando estruturas corporativas e financeiras diretamente associadas ao escritório de advocacia relacionado”.
Atendendo a um pedido de cooperação por parte do Brasil, a procuradoria também indicou que supostamente “os serviços oferecidos pelo escritório de advocacia panamenho deram instruções ao encarregado no país ao sul (Brasil) para ocultar documentos, eliminar evidências de pessoas envolvidas na atividade ilícita anterior, relacionada ao caso Lava Jato. Em palavras simples: O dinheiro do suborno circula através de diferentes sociedades para retornar lavado ou lavado ao Panamá”.
Em abril de 2017, Kenia Porcell ainda seria chamada para um encontro em Haia, na Holanda, com as agências de 15 países europeus, justamente para explorar formas de ampliar a colaboração diante das revelações da imprensa. Na reunião estavam representantes da Bélgica, Bulgária, Alemanha, Grécia, Espanha, França, Reino Unido e outros, num sinal da dimensão que havia tomado o caso.
Nos meses que se seguiram, o que se viu foi uma onda de demissões, prisões e ações por parte de autoridades diante das revelações da imprensa. O primeiro-ministro da Islândia foi obrigado a renunciar, enquanto dezenas de políticos europeus, americanos e de outros continentes passaram a ser oficialmente investigados.
Os bancos também tiveram de agir, abrindo auditorias internas em relação às contas encontradas. Só o Royal Bank of Canada foi obriga do a encerrar contas de mais de 40 clientes. Em 2018, a Justiça da Alemanha ordenou uma operação de busca no dia 29 de novembro, em seis escritórios do Deutsche Bank, incluindo a sede do grupo em Frankfurt. A ação fazia parte de uma investigação sobre lavagem de dinheiro desencadeada justamente pelas revelações dos Panama Papers. O maior banco alemão era suspeito de “ajudar os clientes a criar empresas em paraísos fiscais”, explica o procurador de Frankfurt num comunicado.
Três anos depois da eclosão das revelações do grupo de jornalistas, o impacto político e financeiro das informações publicadas demonstra na prática o papel que a imprensa pode ter na luta contra a corrupção. Pelo mundo, governos conseguiram recuperar mais de US$ 1,2 bilhão a partir de ações contra a evasão de divisas promovida pelos suspeitos.
Só o Reino Unido recuperou 252 milhões de dólares, contra 92 milhões de dólares na Austrália e 18 milhões de dólares na Bélgica. As autoridades fiscais francesas confirmaram que quase 136 milhões de dólares já foram recuperados e mais 500 inspeções contra empresas e indivíduos foram realizados.
O Canadá revelou que deve recuperar mais de US $ 11 milhões em impostos federais e multas de 116 auditorias relacionadas a 234 contribuintes ligados à investigação.
Não seria por acaso que, em abril de 2017, o consórcio dos jornalistas que atuou no Panama Papers ganharia o prêmio Pulitzer por seu trabalho de investigação.
Não é, portanto, um exagero falar em divisor de águas ao tratar do impacto desse trabalho, especialmente diante da proliferação de diversas novas linhas de investigação que se abriram.
Na África, por exemplo, um trabalho realizado pela entidade Global Witness, a partir daqueles dados revelou uma nova dimensão da evasão de recursos do continente mais pobre do planeta. Seria a estrutura offshore que teria permitido que recursos milionários fossem retirados do Congo.
“Enquanto a grande maioria da população do Congo sofre com a falta de serviços básicos, o Estado vendeu valiosos ativos minerários a preços suspeitosamente baixos, perdendo o tesouro congolês centenas de milhões de dólares em receitas cruciais no processo. O dinheiro foi para um punhado de empresas anônimas, cujos verdadeiros proprietários estão escondidos sob camadas de empresas de fachada, localizadas num paraíso fiscal offshore nos territórios britânicos ultramarinos. O sigilo do mundo dos negócios offshore que facilitou estes negócios permite que políticos corruptos e homens e mulheres de negócios lavem dinheiro, desviem impostos e façam negócios suspeitos, mantendo as suas identidades secretas”.
De acordo com a entidade, contratos de mineração suspeitos foram celebrados com empresas offshore anônimas que custaram ao Congo US$ 1,3 bilhão em potenciais receitas.
Segundo eles, a exploração dos recursos naturais do Congo atingiu um pico em torno das eleições presidenciais do Congo em 2011 e o trabalho da imprensa era o de evitar que, nas eleições seguintes, o mesmo fenômeno voltasse a ocorrer.
4. CONCLUSÕES
Tanto os exemplos concretos como as hipóteses de uma relação estreita entre a liberdade de expressão e o combate à corrupção revelam que a imprensa tem seu papel na garantia de uma gestão pública transparente e na própria sobrevivência das democracias.
O monitoramento da esfera pública também inclui a vigilância em relação às garantias para que jornalistas possam atuar e, de forma profissional, denunciar quando for necessário ou simplesmente chamar a atenção de uma sociedade para uma realidade.
Ao longo dos últimos anos, tal papel da imprensa passou a ser reconhecido em instrumentos internacionais, convenções e mesmo na avaliação de entidades. Na Convenção da ONU Anticorrupção, de 2003, o artigo 13 traz de forma explícita tal dimensão. No texto, ela pede que seus estados membros fortaleçam a participação da sociedade civil na luta contra a corrupção. Para isso, pede que os governos adotem medidas para “respeitar, promover e proteger a liberdade de procurar, receber, publicar e divulgar informações relativas à corrupção”. Isso, portanto, dentro das limitações da lei de respeitar os direitos e a reputação de terceiros e proteger a segurança nacional, a ordem pública ou a saúde e a moral públicas.
Já no Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO), do Conselho da Europa, a liberdade de imprensa passou a ser formalmente considerada como um indicador do cumprimento das regras estabelecidas para combater a corrupção. Na resolução 97, por exemplo, o Conselho da Europa inclui explicitamente o reforço da liberdade dos meios de comunicação entre os vinte “Princípios Orientadores da Luta contra a Corrupção”.
Na OCDE, o grupo que reúne os 43 países que fazem parte da Convenção Anticorrupção da entidade também passou a monitorar as denúncias da imprensa de forma regular e formal. Documentos são preparados pelo Secretariado da OCDE com base em fontes públicas e principalmente em reportagens da mídia.
A constatação de todos esses grupos e iniciativas é de que o papel da imprensa na denúncia apenas pode existir e ser protegido se houver um arcabouço legal que garanta a liberdade, pluralidade e independência da imprensa. Também passou a ser considerado o grau de liberdade que estados concedem ao acesso à informação, assim como a maneira pela qual existe uma proteção de fontes e de lançadores de alertas (whistleblowers).
Para a OCDE, a corrupção é um crime complexo, “tornado possível pelas inconsistências e lacunas nos arcabouços legais, e uma cooperação insuficiente entre diferentes jurisdições”. Nesse contexto, o jornalismo pode ser amplamente útil como fonte de informação.
Nos últimos anos, se as novas tecnologias deram às organizações criminosas novos instrumentos para cometer seus delitos e dificultar o acesso aos dados por meio de comunicações sigilosas, essa mesma revolução abriu um canal inédito para que a imprensa tenha acesso a informações e possa colaborar, ultrapassando fronteiras nacionais.
O próprio Banco Mundial, ainda no final do século passado, já havia chegado à conclusão de que teria de contar com a imprensa como arma contra a corrupção. Num discurso em 8 de novembro de 1999, o então presidente do banco, James Wolfensohn, alertou: “Uma imprensa livre não é um luxo. Uma imprensa livre está no centro absoluto do desenvolvimento equitativo porque se a população mais pobre não tiver direito à expressão, se não houver holofotes sobre corrupção e práticas injustas, não se pode construir o consensus público necessário para provocar a mudança”.
A democracia morre no escuro e em plena luz do dia. Ela morre e pode ser assassinada. Num beco de uma rua, na rachadura de uma barragem, num barulho de uma serra numa floresta, na falta de um leito e no medo de andar de mãos dadas. Mas também num envelope com dinheiro. É a missão social da imprensa, portanto, permitir sua sobrevivência.