INTRODUÇÃO
Um tema que suscitou intensas polêmicas desde a promulgação da atual Constituição, em 05 de outubro de 1988, foi saber se o sigilo bancário é constitucionalmente protegido e, particularmente, se ele pode ser oposto aos Fiscos federal, estaduais, distrital e municipais.
A questão é de enorme repercussão prática, pois, ao conhecer a movimentação bancária de determinada pessoa, física ou jurídica, a Administração Tributária pode perceber se determinados fatos geradores de obrigações tributárias tiveram sua existência oculta do seu conhecimento.
Naturalmente, isso não é verdade para todos os impostos. Por exemplo, não parece haver como considerar que a movimentação bancária poderia ser considerada indício de existência de sonegação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), da competência dos Municípios, pois o fato gerador desse imposto é o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município (art. 32 do Código Tributário Nacional) e não haveria como ser feita uma relação direta entre os recursos financeiros que alguém possui em instituição financeira com o domínio ou a posse de bem imóvel.
Por outro lado, conhecer a movimentação bancária do contribuinte pode representar sério indício da existência de fatos geradores do imposto de renda omitidos da Receita Federal. Se a movimentação bancária não pode ser explicada – a partir de recursos existentes anteriormente, dos rendimentos declarados, de doações, de empréstimos etc. – é intuitivo que eles terão origem em rendimentos não declarados.
Por isso mesmo, o Fisco, em especial a Receita Federal, sempre teve a pretensão de poder exigir das instituições financeiras que lhe fosse exibida a movimentação bancária de contribuintes. Por outro lado, muitas empresas e pessoas físicas sempre a isso se opuseram, embora normalmente não explicitando que estariam buscando evitar que não gostariam de ver facilitado o combate à sonegação.
O SIGILO BANCÁRIO PERANTE O FISCO NA LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA
A legislação infraconstitucional desde há muito prevê o acesso das autoridades fiscais às informações bancárias dos contribuintes, ainda que não em caráter irrestrito. A Lei 4.595/1964, que modernizou o Sistema Financeiro Nacional e foi o primeiro texto legal brasileiro a tratar expressamente do sigilo bancário, já fazia isso. De fato, em seu art. 38, atualmente revogado pela Lei Complementar 105/2001, a Lei 4.595/1964 previu a existência do sigilo bancário, mas em seu § 5º já autorizava o “exame de documentos, livros e registros de contas de depósitos” pelos agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados quando houvesse processo instaurado e os mesmos fossem considerados indispensáveis pela autoridade competente.
O Código Tributário Nacional, de 1966, em seu art. 197, dispõe que “mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros: […] II – os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras”. Todavia, como seu parágrafo único prevê que “a obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão”, o dispositivo não seria fundamento para a requisição de informações protegidas pelo sigilo bancário.
Já na atual ordem constitucional, o acesso do fisco aos dados bancários dos contribuintes foi previsto em uma das várias medidas provisórias editadas por Fernando Collor de Mello na data em que tomou posse no cargo de Presidente da República. Mais exatamente, ele foi previsto no art. 8º da Medida Provisória 165, de 15 de março de 1990, que dispunha sobre a identificação dos contribuintes para fins fiscais, que veio a ser convertida na Lei 8.021/1990. O art. 8º da Lei 8.021/1990 previu que, iniciado o procedimento fiscal, a autoridade fiscal poderia solicitar informações sobre operações realizadas pelo contribuinte em instituições financeiras, inclusive extratos de contas bancárias, não se aplicando, nesta hipótese, o sigilo bancário. Previu-se, ainda, que as informações deveriam ser prestadas no prazo máximo de 10 dias contados da solicitação, pena de multa diária elevada.
Todavia, mesmo antes da Constituição vigente, o Fisco sempre encontrou resistência quando manifestou sua pretensão de obter extratos bancários de contribuintes, seja deles mesmos, seja das próprias instituições financeiras. Alegava-se que o sigilo bancário tinha estatura constitucional e que, portanto, eram inconstitucionais as leis que pretendessem não poder ser ele oposto ao fisco.
O mesmo aconteceu após o advento da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, que veio para dar tratamento específico ao sigilo das operações de instituições financeiras, ou seja, o que se conhece ordinariamente simplesmente por sigilo bancário.
A nova lei complementar trouxe 2 artigos importantes para disciplinar o sigilo bancário perante o fisco. O art. 6º não trouxe novidade, pois essencialmente repetiu o art. 38 da vetusta Lei 4.595/1964, permitindo a requisição de informações bancárias quando existente procedimento fiscal instaurado. Nem mesmo o fato de a norma agora constar de lei formalmente complementar seria fato especialmente relevante, pois o entendimento é de que, à semelhança do Código Tributário Nacional, a Lei 4.595/1964 teria sido recepcionada como lei complementar.
Por outro lado, o art. 5º da LC 105/2001 trouxe importante novidade, pois previu a informação periódica à administração tributária da União – e somente dela – sobre as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços, embora a restringindo a “informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados” (§ 2º).
Identificados indícios de ilícitos fiscais a partir dessas informações, autorizou-se a requisição de informações adicionais e documentos, bem como a realização de fiscalização para apuração dos fatos (§ 4º).
Esse art. 5º da LC nº 105/2001, com se vê, representou ferramenta poderosíssima colocada à disposição da Receita Federal, pois permitiu o exame da movimentação bancária dos contribuintes não apenas de forma isolada, mas também massificada.
Como seria de se esperar, a nova lei complementar foi fortemente atacada, inclusive através de diversas ações diretas de inconstitucionalidade, ao argumento de que violaria o sigilo bancário constitucionalmente protegido.
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO SIGILO BANCÁRIO
A Constituição da República não se refere especificamente ao sigilo bancário, razão pela qual há aqueles que entendem que ele não tem proteção dessa estatura.
Nesse sentido, por exemplo, o voto do Min. Francisco Resek no MS nº 21.729, impetrado pelo Banco do Brasil contra ato do Procurador-Geral da República que lhe requisitou informações, em que afirma que “a questão jurídica trazida à corte neste mandado de segurança não tem estatura constitucional. Tudo quanto se estampa na própria Carta de 1988 são normas que abrem espaço ao tratamento de determinados temas pela legislação complementar. É neste terreno, pois, e não naquele da Constituição da República, que se consagra o instituto do sigilo bancário. […] Tenho dificuldade extrema em construir, sobre o artigo 59, sobre o rol constitucional de direitos, a mística do sigilo bancário somente contornável nos termos de outra regra da própria Carta. […] O inciso X do rol de direitos fala assim numa intimidade onde a meu ver seria extraordinário agasalhar a contabilidade, mesmo a das pessoas naturais, e por melhor razão a das empresas”.
Na mesma direção o voto do Min. Teori Zavascki no RE 601.314, em que consigna que “no que se refere à questão da privacidade dos dados bancários, a matéria não pode ser focada com base no art. 5º da Constituição. Como eu disse, há um perfil eminentemente infraconstitucional”.
Todavia, a imensa maioria parece entender que o sigilo bancário está albergado pelos incisos X e/ou XII do art. 5º da Constituição:
“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[…]
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”
Imperioso registrar que o inciso XII do art. 5º da Constituição é especialmente polêmico. Há quem entenda que ele estabelece o chamado “sigilo de dados”, enquanto outros pensam que ele estabelece apenas o sigilo da comunicação de dados, tendo a palavra “comunicação” sido omitida apenas para evitar sua excessiva repetição. Aponta-se que, além dessa interpretação ser mais consentânea com o restante do dispositivo, que se refere a diversas formas de comunicação (por carta, telégrafo e telefone), a existência de um sigilo de dados tornaria confidencial toda e qualquer informação, pois dados nada mais são que informações registradas de alguma forma.
Nesse sentido, por exemplo, o voto do Min. Francisco Resek no já citado MS 21.729:
“Do inciso XII, por seu turno, é de ciência corrente que ele se refere ao terreno das comunicações: a correspondência comum, as mensagens telegráficas, a comunicação de dados, e a comunicação telefônica. Sobre o disparate que resultaria do entendimento de que, fora do domínio das comunicações, os dados em geral – e a seu reboque o cadastro bancário – são invioláveis, não há o que dizer. O funcionamento mesmo do Estado e do setor privado enfrentaria um bloqueio. A imprensa, destacadamente, perderia sua razão de existir.
A mais alentada e notória obra doutrinária de análise da Constituição brasileira de 1988 deixa claro o significado restrito dos ‘dados’ a que se refere o inciso XII, e ainda mais o restringe ao associá-lo tão-só a certa espécie de alta tecnologia na comunicação interbancária de informações contábeis. Essa obra traz a marca de Celso Bastos e Ives Gandra da Silva Martins, juristas de primeira grandeza, insuspeitos, ademais, de qualquer vocação pelo patrocínio do abuso de autoridade, como de qualquer prevenção contra os direitos individuais, ou contra o setor privado da economia (v. Bastos & Martins, Comentários à Constituição do Brasil, S. Paulo, Saraiva, 1989, vol. 2, p. 73).”
Esse entendimento no sentido da inexistência de um “sigilo de dados” parece mais correto, apesar das respeitabilíssimas opiniões em sentido diverso. De fato, se os dados – informações – em geral fossem constitucionalmente proibidos, teríamos situações absurdas como, por exemplo, ao requerer uma singela carteira de identidade o cidadão se recusar a informar os nomes de seus pais, pois esses são dados e a Constituição estabelece o sigilo de dados.
FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO ACESSO DO ESTADO AOS DADOS DOS CONTRIBUINTES
O dispositivo constitucional considerado o principal fundamento explícito para permitir o acesso do Estado às informações dos contribuintes é o § 1º do art. 145 da Constituição:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
[…]
- 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
Com base nesse dispositivo, argumenta-se que, se a Administração tributária tem a faculdade de identificar os rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes, deve ter acesso aos dados bancários.
A corrente contrária ao acesso, por outro lado, argumenta que a Constituição foi clara em incluir a cláusula “respeitados os direitos individuais”, dentre os quais está o sigilo bancário.
EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF QUANTO AO TEMA
A jurisprudência do STF com relação à possibilidade do fisco obter informações protegidas pelo sigilo bancário oscilou ao longo dos anos, até pacificar-se, em 24/02/2016, com o julgamento em regime de repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 601.314, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, sob a relatoria do Min. Dias Toffoli.
A primeira observação relevante é que o STF nunca negou a possibilidade da quebra do sigilo bancário por ordem judicial. Mesmo aqueles ministros que vislumbram a existência de um sigilo de dados estabelecido pelo inciso XII do art. 5º da Constituição, em regra, a admitem, ao fundamento de que não existem direitos absolutos. A exceção seria o Min. Marco Aurélio, que entendendo existir o sigilo de dados e atentando à literalidade do texto do inciso XII – que excetua das inviolabilidades nele previstas apenas o sigilo das comunicações telefônicas –, considera que o sigilo bancário só poderia ser quebrado para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Nesse sentido, confira-se a ementa do RE 389.808 elaborada pelo eminente Ministro:
“SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. […]” (Destaquei).
Praticamente pacífico que o sigilo bancário poderia ser quebrado mediante ordem judicial, a grande discussão que se colocou ao lon go dos anos foi a existência ou não de cláusula de reserva de jurisdição: saber se o sigilo poderia ser quebrado apenas pelo Estado-Juiz ou também diretamente pela Administração, como previsto na legislação infraconstitucional.
A discussão colocou-se não apenas quanto ao Fisco, objeto direto desta resenha, mas também a outros entes, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público.
Quanto a esse último, é de se registrar o julgamento do Mandado de Segurança 21.729, ocorrido em 2005, no qual, por maioria, o STF resolveu que, tratando-se de apuração da destinação de verbas públicas, o Ministério Público pode requisitar informações diretamente das instituições financeiras. O acórdão, de que ficou redator o Min. Néri da Silveira, tem a seguinte ementa:
“Mandado de Segurança. Sigilo bancário. Instituição financeira executora de política creditícia e financeira do Governo Federal. Legitimidade do Ministério Público para requisitar informações e documentos destinados a instruir procedimentos administrativos de sua competência. 2. Solicitação de informações, pelo Ministério Público Federal ao Banco do Brasil S/A, sobre concessão de empréstimos, subsidiados pelo Tesouro Nacional, com base em plano de governo, a empresas do setor sucroalcooleiro. 3. Alegação do Banco impetrante de não poder informar os beneficiários dos aludidos empréstimos, por estarem protegidos pelo sigilo bancário, previsto no art. 38 da Lei nº 4.595/1964, e, ainda, ao entendimento de que dirigente do Banco do Brasil S/A não é autoridade, para efeito do art. 8º, da LC nº 75/1993. 4. O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar nº 75/1993. 5. Não cabe ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre nomes de beneficiários de empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo erário federal, sob invocação do sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e documentos para instruir procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio público. Princípio da publicidade, ut art. 37 da Constituição. 6. No caso concreto, os empréstimos concedidos eram verdadeiros financiamentos públicos, porquanto o Banco do Brasil os realizou na condição de executor da política creditícia e financeira do Governo Federal, que deliberou sobre sua concessão e ainda se comprometeu a proceder à equalização da taxa de juros, sob a forma de subvenção econômica ao setor produtivo, de acordo com a Lei nº 8.427/1992. 7. Mandado de segurança indeferido.”
O mesmo entendimento foi adotado quanto ao Tribunal de Contas da União no julgamento, na 1ª Turma do STF, do MS 33.340, da relatoria do Min. Luiz Fux.
Embora não caiba exame detalhado da matéria, que o objeto direto do exame proposto, vale registrar que o Supremo Tribunal também já decidiu ser possível o Ministério Público requisitar informações não apenas sobre as operações com as verbas públicas enquanto tinham essa natureza, podendo fazê-lo, também, com as transações entre particulares que seriam oriundas de desvio dessas. Nesse sentido, por exemplo, o RHC 133.118, Rel. Min. Dias Toffoli:
“Recurso ordinário em habeas corpus. Ação penal. Associação criminosa, fraude a licitação, lavagem de dinheiro e peculato (arts. 288 e 313-A, CP; art. 90 da Lei nº 8.666/93; art. 1º da Lei nº 9.613/98 e art. 1º, I e II, do DL nº 201/67). Trancamento. Descabimento. Sigilo bancário. Inexistência. Conta corrente de titularidade da municipalidade. Operações financeiras que envolvem recursos públicos. Requisição de dados bancários diretamente pelo Ministério Público. Admissibilidade. Precedentes. Extensão aos registros de operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. Princípio da publicidade (art. 37, caput, CF). Prova lícita. Recurso não provido. […] 5. O poder do Ministério Público de requisitar informações bancárias de conta corrente de titularidade da prefeitura municipal compreende, por extensão, o acesso aos registros das operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. 6. De nada adiantaria permitir ao Ministério Público requisitar diretamente os registros das operações feitas na conta bancária da municipalidade e negar-lhe o principal: o acesso ao real destino dos recursos públicos, a partir do exame de operações bancárias sucessivas (v.g., desconto de cheque emitido pela Municipalidade na boca do caixa, seguido de transferência a particular do valor sacado). 7. Entendimento em sentido diverso implicaria o esvaziamento da própria finalidade do princípio da publicidade, que é permitir o controle da atuação do administrador público e do emprego de verbas públicas. 8. Inexistência de prova ilícita capaz de conduzir ao trancamento da ação penal. 9. Recurso não provido.
Ingressando mais diretamente na questão da relação entre o sigilo bancário e o fisco, o exame da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ao longo das décadas seria por demais extenso, pelo que justificável o exame apenas de julgamentos efetuados após a promulgação da Lei Complementar nº 105, concluídos nesta década.
AÇÃO CAUTELAR 33
Um primeiro julgado relevante é a Ação Cautelar 33, ajuizada por empresa com o fito de emprestar efeito suspensivo ao RE 389.808, pelo qual contestado acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que considerou valido o acesso da autoridade fiscal à sua movimentação bancária, com base nas Leis 8.021/1990, 9.311/1996, 10.174/2001 e LC 105/2001.
O relator, Min. Marco Aurélio, deferiu a liminar pleiteada e levou-a ao plenário, iniciando julgamento que, iniciado em 2003, só terminou sete anos depois, em virtude de sucessivos pedidos de vista. O acórdão produzido recebeu ementa que não revela a riqueza das discussões travadas, uma vez que dá a entender que o exame se centrou em questões processuais, o que não corresponde à verdade.
O julgamento foi iniciado em 24/03/2009, ocasião em que o Min. Marco Aurélio expôs que a regra é de que o sigilo só pode ser afastado por decisão judicial, havendo exceção apenas para requisição do Ministério Público quando envolvidos recursos públicos.
Seguiu-se pedido de vista do Min. Joaquim Barbosa, sendo o julgamento retomado em 03/12/2003. O voto centrou-se em questões processuais – o que explica a ementa produzida, já que ele restou redator para o acórdão – considerando inexistentes seja o fumus boni iuris, seja o periculum in mora. Considerou o Min. Joaquim Barbosa que, inexistente qualquer decisão sobre as ADI 2.386, 2.389, 2.397 e 2.406, que contestavam a LC 105, não seria possível falar em verossimilhança do alegado. Seu voto foi acompanhado pelo Min. Carlos Ayres Britto.
Apresentado novo pedido de vista, o julgamento foi retomado em fevereiro de 2014, quando o Min. Cezar Peluso acompanhou o relator,mreportando-se a precedentes da Corte – MS 21.729, MS 23.851, Pet 2790 AgR e RE 215.301 – em que “assentou-se que a proteção aos dados bancários configura manifestação o direito à intimidade e ao sigilo de dados, previsto nos incs. X e XII do art. 5º da Constituição Federal, só podendo cair à força de ordem judicial ou decisão de Comissão Parlamentar de Inquérito, ambas com suficiente fundamentação”.
Em novo voto-vista, o Min. Gilmar Mendes trouxe a baila o art. 145,
- 1º, da Constituição. À luz desse dispositivo considerou o Min. Gilmar Mendes que “a alegada incompatibilidade entre o art. 6º da LC 105/2001 e o Decreto nº 3.374/2001 com a Carta Magna não são patentes, muito menos evidentes”, concluindo que “prima facie, não há vedação para que a lei disponha sobre o acesso da administração tributária a essas informações protegidas dos contribuintes”.
Negado o referendo pelo Min. Gilmar Mendes, a Min. Carmen Lúcia votou na mesma direção. Todavia, o Min. Ricardo Lewandowski acompanhou o Min. Marco Aurélio, não sem lembrar que o Judiciário estaria à disposição, com seus 16.000 magistrados, para, “se as circunstâncias e o caso assim autorizarem, determinar a quebra do sigilo”.
Na mesma ocasião, em debates orais, o Min. Cezar Peluso recordou que, no RE 418.416, Rel. Sepúlveda Pertence, e no MS 22.801, o Tribunal estabeleceu distinção entre dados e comunicação de dados, considerando que o inciso XII do art. 5º refere-se apenas aos segundos. Disse o Min. Peluso: “se os dados como tais […] forem invioláveis, não há nenhum meio possível, por exemplo, de fiscalização tributária, porque os dados são objeto dos registros, isto é, se o Fisco não tem direito de proceder a fiscalização in loco e ter acesso a dados, a fiscalização é simplesmente inviável. O que a Constituição protege […] é o processo de comunicação. Esse é que não pode ser interrompido, porque aí há inviolabilidade de comunicação. Mas o acesso aos dados, findo o processo de comunicação, nem sempre é proibido”.
Em seguida, o Min. Dias Toffoli apresentou voto curto, mas que já apresentava a idéia central que viria a prevalecer na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Considerou o Min. Toffoli que a disponibilização dos dados ao Fisco não significava quebra de sigilo, pois as informações seriam conhecidas por esse com o dever de manter o segredo, da mesma maneira que as instituições financeiras conhecem os dados de seus clientes e tem o dever de mantê-los confidenciais.
Disse ele, negando referendo à liminar: “não se trata de quebra de sigilo, trata-se, na verdade, de uma transferência de dados sigilosos de um determinado portador desses dados, que tem o dever de sigilo, para um outro, que manterá a obrigação desse sigilo. A eventual divulgação desses dados dará azo a que incida o tipo penal e permitirá, inclusive, a responsabilização civil e administrativa do infrator”.
Em mais um voto-vista, em 24/11/2010, a Min. Ellen Gracie comungou da tese da transferência e não quebra do sigilo. Considerou a Min. Ellen Gracie que “a inviolabilidade da vida privada e o sigilo de dados devem ser preservados, porque constitucionalmente assegurados, mas não como empecilho a uma tributação capaz de concretizar os princípios da pessoalidade e da capacidade contributiva, tampouco como escudo para o descumprimento do dever, também, fundamental e constitucional, de pagar impostos”.
O Min. Celso de Mello, por sua vez, em douto voto, considerou que todas as pessoas – inclusive as jurídicas – têm direito a uma intimidade financeira e que a quebra do sigilo bancário – sujeita à reserva de jurisdição – só pode ser decretada se essa medida se qualificar como providência essencial e indispensável à fiscalização e desde que não exista meio mais gravoso para a consecução desse objetivo.
Em conclusão, restou não referendada a medida liminar deferida pelo Min. Marco Aurélio, com a aparente sinalização de que o Supremo Tribunal Federal admitiria a constitucionalidade da LC 105/2001.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 389.808
Concluído o julgamento da AC 33 em 24.11.2010 e não tendo sido referenda a liminar para emprestar efeito suspensivo ao RE 389.808, o Min. Marco Aurélio priorizou o julgamento do próprio recurso extraordinário, levando-o já no mês seguinte. No julgamento desse, ao contrário do que parecia sinalizado pelo julgamento da cautelar, o resultado do julgamento foi de que “conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte”.
Um dos fatores para a alteração da conclusão esperada foi o fato do Min. Gilmar Mendes ter revisto seu posicionamento para acompanhar o Min. Marco Aurélio no sentido da existência de reserva de jurisdição para quebra do sigilo bancário, embora ressalvando que discordava quanto à necessidade de haja uma investigação de índole criminal.
Todavia, para o resultado foi essencial a circunstância da ausência eventual do Min. Joaquim Barbosa, cuja posição conhecida era a favor da corrente minoritária. Tanto era assim que a Min. Ellen Gracie chegou a pedir vista afirmando textualmente que “eu peço vista destes autos apenas para permitir a presença do Colega ao julgamento. Para que o Tribunal não tenha resultados diferentes conforme sua composição eventual”.
A Min. Ellen Gracie terminou por retirar o seu pedido de vista, diante de alegações de perecimento do direito do contribuinte se deferida a vista, mas consignando que “a questão está para ser decidida com um quórum que me parece inadequado”.
Ao final, o RE 389.808 foi provido para conceder a segurança, mas não se pode dizer que tenha sido firmada posição da Suprema Corte, uma vez que o julgamento se deu por 5 a 4, com a Corte com um cargo não preenchido e ausente um Ministro que, tudo indicava, teria aderido à corrente vencida.
Registre-se que ainda não houve o trânsito em julgado do acórdão, pois foram opostos embargos de declaração, que, em setembro de 2018, ainda não haviam sido julgados.
RE 601.314 E ADI 2.390, 2.386, 2.397 E 2.859
Posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal só veio a surgir em fevereiro de 2016, quando foram julgados, em conjunto, o Recurso Extraordinário 601.314 – em regime de repercussão geral – e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. O primeiro, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, e as demais, do Min. Dias Toffoli.
O julgamento foi bastante exauriente, tendo se dado em 3 sessões, sendo a primeira dedicada às sustentações orais e as demais aos vo tos dos Ministros. Em 16/02/2018, o contribuinte que interpôs o RE 601.314 e a Confederação Nacional da Indústria – autora da ADI 2.397 – defenderam que a LC 105/2001 contraria os arts. 5º, X e XII, da Constituição, violando os direitos à intimidade e ao sigilo de dados, estabelecendo um estado de fiscalização permanente. Por sua vez, as representantes da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional defenderam a tese lançada pelo Min. Dias Toffoli na AC 33, ou seja, inexistir quebra de sigilo bancário, mas transferência deste ao Fisco, de maneira a permitir que esse possa averiguar corretamente o cumprimento das obrigações tributárias.
Manifestaram-se, ainda, como amicus curiae, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Banco Central do Brasil, respectivamente, contra e a favor da constitucionalidade da LC 105. Como custos legis, o Procurador Geral da República opinou pela constitucionalidade, lembrando estar a norma de acordo com a prática de países democráticos.
O julgamento propriamente dito ocorreu nas sessões de 14 e 24/02/2018, com a conclusão pela constitucionalidade da lei complementar por um placar de 9 x 2. Os relatores, Ministros Dias Toffoli e Edson Fachin, deram pela constitucionalidade da transferência de dados bancários ao Fisco, no que foram acompanhados pelos Ministros Luis Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Carmen Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Restaram vencidos apenas os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio.
A margem favorável à Fazenda pode ser considerada algo surpreendente, tendo sido alcançada não apenas em função da mudança da composição do STF em relação ao julgamento do RE 389.808, como pelo fato de que os Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski reformularam seus entendimentos.
Por razões de espaço, impossível o exame da rica argumentação exposta desenvolvida, tendo os acórdãos proferidos quase duas centenas de páginas, ainda assim porque o Ministro Luiz Fux limitou-se a reportar ao voto que proferiu, ainda enquanto no STJ, como relator do Recurso Especial 1.134.665, julgado como representativo de controvérsia.
As ideias centrais, como seria de se esperar, constam das ementas produzidas:
- o sigilo bancário é uma das expressões do direito de personalidade;
- o fornecimento das informações sobre operações financeiras encontra amparo no art. 145, § 1º, da Constituição;
- o fornecimento de informações ao Fisco previsto nos 5º e 6º da Lei Complementar 105/2001 não configura quebra de sigilo bancário, mas um translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal, permanecendo resguardadas a intimidade e a vida privada do correntista;
- correlatos aos inúmeros direitos previstos na Constituição são os deveres igualmente estabelecidos, dentre os quais está o dever fundamento de pagar tributos, essenciais para o financiamento das ações estatais em prol do cidadão;
- necessários mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal, sendo o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/ 2001 extremamente importante para tanto;
- o Brasil se comprometeu na esfera internacional a cumprir os padrões internacionais de transparência e de troca de informações bancárias, estabelecidos com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias, assim como combater práticas criminosas;
- fixou-se a tese de que “o 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”.
Foi ressaltado que, desde a edição da LC 105/2001, a União estabeleceu, através do Decreto 3.724/2001, normas para resguardar garantias processuais e o sigilo dos dados bancários do contribuinte, mas o mesmo não poderia ser dito dos Estados e Municípios, pelo que o STF estabeleceu que estes somente poderão obter as informações de que trata o art. 6º da LC105/2001 – o art. 5º só é aplicável à União – quando a matéria estiver devidamente regulamentada por eles, em condições análogas às do citado decreto.
OPINIÃO SOBRE A CONCLUSÃO DO STF
Sendo o tema altamente controverso, natural que a conclusão alcançada pelo Supremo Tribunal suscite opiniões completamente opostas e nada há de anormal nisso. As decisões judiciais devem ser necessariamente obedecidas, mas podem ou não ser apreciadas.
Na própria Suprema Corte, uma opinião bastante negativa sobre o resultado do julgamento foi dado pelo eminente Min. Marco Aurélio que afirmou, em seu voto, quando já claro qual seria o resultado final, que, “em termos de pronunciamentos do Supremo, a semana é de tristeza maior”.
Não obstante a respeitabilidade dessa opinião e de outras na mesma direção, parece-me que a conclusão da Suprema Corte sobre o tema foi, não apenas inteiramente correta, como necessária para que a tributação seja – de fato – imposta de forma isonômica.
Na lição de Klaus Tipke:
“não é suficiente que as leis tributárias cuidem de uma repartição isonômica da carga tributária. Que ‘todos são iguais perante a lei’ significa também que as leis devem ser aplicadas isonomicamente. Para tanto é necessário que os dispositivos procedimentais possibilitem uma aplicação isonômica, especialmente uma verificação isonômica dos fatos, e que os fiscais da Administração Fazendária sejam suficientes para assegurar essa aplicação isonômica.”
É ainda Tipke que, lembrando a lição do filósofo do Estado Otfried Höffe de que “somente é racional para um indivíduo ser honesto, caso ele não precise ter medo de ser o único honesto e, portanto, de se apresentar como o bobo”, observa que “cabe, pois, à administração tributária despertar, na medida possível, a impressão de que a lei tributária se faz perfeitamente; de que a administração tributária alcança todos; e de que aplica sobre todos aqueles que não pagam os impostos devidos, todas as suas penalidades tributárias justas”.
Para esse efeito de buscar a aplicação isonômica das leis tributárias, com verificação isonômica dos fatos, parece-me indispensável que o Fisco tenha acesso à movimentação financeira dos contribuintes. Por essa razão, andou muito bem o Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a constitucionalidade dos arts. 5º e 6º da Lei Complementar 105/2001.
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