A pandemia provocada pelo novo coronavírus demandou uma ação rápida das autoridades públicas, a fim de tentar conter a rápida propagação desse agente patológico. Inicialmente, o objetivo alardeado era tão somente diminuir a velocidade da contaminação, ou seja, “achatar a curva”, evitando-se que uma multidão de contaminados colapsasse os sistemas de saúde. Passados meses desde o início da pandemia e após diversos “adiamentos” de pico, de modo geral as autoridades públicas continuam entoando o mantra de que o isolamento ou distanciamento social é a única alternativa para combater o vírus e já não se fala em “achatamento da curva”, mas em evitar a qualquer custo a contaminação.
As diversas proibições estabelecidas ofenderam direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, mormente por terem sido estipuladas em decretos e portarias de autoridades executivas. Dentre as restrições mais emblemáticas está impedir as pessoas de participarem de eventos ou encontros que propiciem “aglomerações”, inclusive no interior das suas residências. Para além das sanções administrativas, a violação dessa restrição tem ensejado a atuação das polícias por suposta infração ao art. 268 do Código Penal.
Todavia, uma breve reflexão sobre os direitos e garantias estampadas na Constituição de 1988 leva à conclusão de que a proibição das “aglomerações” é inarredavelmente inconstitucional e ilegal, assim como a pretensão de criminalizar a conduta de quem viola tal restrição.
1. Inconstitucionalidade da proibição de “aglomerações”
Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados e municípios poderiam adotar medidas sanitárias para conter a propagação da praga originária da China, cada ente federado impôs uma série de medidas restritivas. Importante salientar que o STF não deu uma carta branca para estados e municípios agirem ao arrepio da Constituição. Apenas assegurou que esses entes federados poderiam adotar medidas de forma concorrente com a União, por se tratar de matéria afeta à saúde pública. Por óbvio, qualquer medida imposta pelos entes federados, inclusive a União, precisa respeitar os direitos e as garantias do cidadão, o que lamentavelmente não aconteceu.
Em Santa Catarina, por exemplo, o Governador editou o Decreto n. 525/2020, o qual “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” e prevê, entre outras medidas de autoridade sanitária (Capítulo III, Seção I), as seguintes:
Art. 7º Ficam suspensas, em todo o território catarinense, sob regime de quarentena, nos termos do inciso II do art. 2º da Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020:
I – […]
II – pelo período de 30 (trinta) dias:
a) os eventos e as reuniões de qualquer natureza, de caráter público ou privado, incluídas excursões, cursos presenciais, missas e cultos religiosos;
b) a concentração e a permanência de pessoas em espaços públicos de uso coletivo, como parques, praças e praias;
[…]
A Constituição Federal, por sua vez, assegura, entre os direitos fundamentais, o de reunir-se pacificamente em locais abertos ao público, independentemente de autorização (art. 5º, XVI). Esse direito, associado à liberdade de expressão, integra o conjunto de pilares fundamentais e garantidores do próprio Estado Democrático de Direito, como ensina LENZA, citando António Francisco de Sousa:
Conforme bem anotou António Francisco de SousaLENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. Editora Saraiva, 2019, p. 1225, “o tema da liberdade de reunião e de manifestação é, sem dúvida, um dos temas centrais do Estado de direito democrático, pois é através do exercício desta liberdade que os cidadãos podem exprimir livremente a sua opinião, criticar o poder, fazer exigências, enfim, erguer a voz contra a injustiça e a opressão. Sem liberdade de reunião e de manifestação não há verdadeira democracia…
Em complemento, LENZALENZA, ob.cit., p. 1226 lembra os ensinamentos de José Afonso da Silva:
…a liberdade de reunião caracteriza-se como verdadeira “liberdade-condição”, “porque, sendo um direito em si, constitui também uma condição para o exercício de outras liberdades: de manifestação do pensamento, de expressão de convicção filosófica, religiosa, científica e política e de locomoção (liberdade de ir, vir e ficar)”.
Do mesmo modo, NOVELINONOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional - Volume Único. 9.ed. Grupo GEN, 2014, item 23.5.7 explica que o direito de reunião é “eminentemente instrumental”, pois “visa assegurar a livre expressão das ideias”.
Como se vê, o direito de reunir-se pacificamente é um meio de assegurar a própria liberdade de expressão. E o exercício dessa liberdade não ocorre apenas naqueles eventos que reúnem multidões nas ruas, como comícios ou passeatas, mas também naqueles eventos ou encontros mais reservados no banco da praça, na barraca da praia, na mesa do bar ou, ainda, em volta da churrasqueira improvisada na “laje”. Sempre que houver duas ou mais pessoas juntas, haverá oportunidade de debater, fazer críticas, disseminar ideias, enfim manifestar o pensamento e exercer a democracia. É assim no almoço de família do domingo, quando os parentes por certo falam de futebol, de viagens e de fofocas, mas também debatem política, fazem críticas ao prefeito, discutem os problemas do bairro. Da mesma forma, os colegas de trabalho que se juntam no bar no happy hour aproveitam a ocasião não só para falar mal do chefe e reclamar do salário, mas também para criticar o Presidente da República ou as decisões do Supremo Tribunal Federal.
Daí porque esse direito de reunir-se não protege apenas as “aglomerações” em locais abertos ao público, como praias, praças e parques, mas tambémLENZA, ob.cit., p. 1225 os encontros em ambientes restritos, como por exemplo as associações e, até mesmo residências, que são o asilo inviolável do indivíduo (art. 5º, XI, da Constituição).
Por se tratar de um direito garantidor da própria democracia, são limitadíssimas as hipóteses em que o governante pode restringi-lo. Na verdade, a mesma Constituição assegurou que esse direito somente pode ser restringido ou suspenso na vigência do estado de defesa ou do estado de sítio, ambos estados excepcionais que somente podem ser decretado pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, e, no caso do estado de sítio, dependente de autorização do Congresso Nacional (art. 136, caput, e § 1º, I, “a”, e art. 139, IV).
Ao autorizar a suspensão desse direito apenas nessas duas hipóteses excepcionalíssimas, o Constituinte deixou evidente o seu apreço por essa liberdade e a importância da sua preservação. Pelo que se sabe, até o presente momento, nem um nem outro estado de exceção foi decretado pelo Presidente da República. Portanto, salta aos olhos que qualquer pretensão de proibir as pessoas de se reunirem pacificamente é flagrantemente inconstitucional, a exemplo do disposto no art. 7º, II, “a” e “b” do Decreto n. 525/2020 do Governador de Santa Catarina.
Por ser uma restrição inconstitucional, a norma é vazia e não pode ensejar a imposição de sanções aos cidadãos que a ignoram, muito menos de ordem criminal. Além de violar a Constituição, esse tipo de restrição, veiculada por decretos de estados e municípios, é também ilegal porque impõe uma proibição que nem implicitamente foi prevista na Lei Federal n. 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
2. Ilegalidade da proibição de “aglomeração” em face da Lei n. 13.979/2020
A Lei n. 13.979/2020 permitiu que as “autoridades” adotassem, entre outras medidas, o “isolamento” e a “quarentena” (art. 3º, I e II), os quais foram definidos nos seguintes termos:
Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e
II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.
É clarividente que as medidas de restrição têm como destinatárias as pessoas doentes, contaminadas ou suspeitas de estarem contaminadas. E nem poderia ser diferente! Trata-se de um princípio elementar de controle epidemiológico de doenças que remonta à antiguidade: isola-se e trata-se as pessoas doentes e não as pessoas sadias.
Nem se diga que a expressão “restrição de atividades”, no inciso II, traduz uma autorização geral e irrestrita para se estabelecer restrições sem fim. Nada mais enganoso. Ora, o dispositivo deve ser interpretado no seu todo. Claramente, a restrição de atividades está ligada aos vocábulos “pessoas suspeitas de contaminação” colocado logo na sequência. Ou seja, a quarentena é definida como restrição de atividades de pessoas suspeitas de contaminação ou, de novo, a separação dessas pessoas suspeitas de contaminação das pessoas não contaminadas.
No contexto epidemiológico, está claro que a quarenta deve restringir as atividades das pessoas contaminadas, a fim de, por exemplo, impedi-las de saírem na rua para trabalhar ou frequentar a escola, pois isso representaria um risco para as pessoas sadias que com ela trabalham ou estudam. Não se trata, portanto, de impor restrições a atividades em geral. Tal leitura não faz nenhum sentido! Como ensina o saudoso jurista MAXIMILIANOMAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 136, “deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”. A interpretação isolada da expressão é absurda porque resultaria em um caminho sem volta para o arbítrio e a satisfação dos caprichos dos governantes, o que deve-se repelir com veemência.
E mais: a lei federal incumbiu ao Ministro de Estado da Saúde dispor sobre as condições e prazos aplicáveis às medidas de isolamento e quarentena previstas no art. 3º, incisos I e II, da norma legal. No exercício dessa competência, o Ministro da Saúde expediu a Portaria n. 356/2020, publicada no DOU em 12-3-2020, estipulando o seguinte:
Art. 3º A medida de isolamento objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local.
[…]
Art. 4º A medida de quarentena tem como objetivo garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado.
Novamente, a portaria estabeleceu o óbvio: o isolamento e a quarentena visam isolar as pessoas doentes ou suspeitas de serem portadoras do vírus. Se o objetivo da medida é impedir a propagação da doença, por que razão vai se isolar quem não é portador do vírus? Simplesmente, não faz sentido.
Recorde-se que a lei federal prescreve que as medidas restritivas somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas (art. 3º, § 1º) e, no caso, não há nenhuma evidência científica de que isolar ou restringir atividades de pessoas não portadoras do vírus impede a propagação da doença. E nem poderia haver tal evidência, porque é impossível um sujeito transmitir um vírus (ou qualquer outro microrganismo) do qual não é portador. Não é necessário ser um prêmio nobel da ciência para constatar essa obviedade.
Portanto, qualquer norma estadual ou municipal que imponha isolamento ou quarentena para pessoas que não sejam portadoras do vírus é, além de inconstitucional, também flagrantemente ilegal.
Não bastasse isso, o regulamento, entendido como complemento de uma norma penal em branco, também está eivado de inconstitucionalidade por violar o cânone da legalidade penal.
3. Inconstitucionalidade do complemento da norma penal em branco
Como é cediço, um dos princípios mais destacados do direito penal é a legalidade, frise-se legalidade estrita, resumido no brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege, o qual está positivado no art. 5º, XXXIX, da Constituição da República:
Art. 5º. […]
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal
O princípio impõe que o tipo penal e a respectiva sanção sejam previstos em lei em sentido estrito, ou seja, ato emanado do Poder Legislativo (no caso do Brasil, exclusivamente o Congresso Nacional), de acordo com as regras estipuladas para a elaboração e aprovação das leis.
O princípio da legalidade transborda-se em outros princípios igualmente relevantes, dentre os quais cabe aqui destacar, pelos seus reflexos no caso em comento, o chamado princípio da taxatividade ou da determinação, assim descrito por CUNHA CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1º a 120). 5. ed. rev.ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 92:
O princípio da taxatividade ou da determinação é dirigido mais diretamente à pessoa do legislador, exigindo dos tipos penais clareza, não devendo deixar margens a dúvidas, de modo a permitir à população em geral o pleno entendimento do tipo criado.
Segundo afirma Luiz Luisi:
“Sem esse corolário o princípio da legalidade não alcançaria seu objetivo, pois de nada vale a anterioridade da lei, se esta não estiver dotada da clareza e da certeza necessárias, e indispensáveis para evitar fôrmas diferenciadas, e, pois, arbitrárias na sua aplicação, ou seja, para reduzir o coeficiente de variabilidade subjetiva na aplicação da lei.”
[…]
Cesare Beccaria alerta quanto à necessidade de edição de leis certas. Assevera o Marquês:
“Ponde o texto sagrado das leis nas mãos do povo e, quantos mais homens o lerem, menos delitos haverá; pois não é possível duvidar que, no espírito do que pensa cometer um crime, o conhecimento e a certeza das penas coloquem um freio à eloquência das paixões.”
Trata-se, portanto, de princípio garantidor do próprio Estado Democrático do Direito, na medida em que impõe limites ao subjetivismo que é fonte de todo o arbítrio no governo dos homens. A observância da taxatividade ou determinação das leis penais revela-se ainda mais necessária em tempos nos quais governantes não medem esforços para tolher as liberdades individuais dos cidadãos. Tipos vagos dão margem ao arbítrio, como alertou Guilherme de Souza NucciNUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 3.ed. rev.ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 72:
…as condutas típicas, merecedoras de punição, devem ser suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar dúvidas por parte do destinatário da norma.
A construção de tipos penais incriminadores dúbios e repletos de termos valorativos pode dar ensejo ao abuso do Estado na invasão da intimidade e da esfera de liberdade dos indivíduos. Aliás, não fossem os tipos taxativos – limitativos, restritivos, precisos – e de nada adiantaria adotar o princípio da legalidade ou da reserva legal.
No presente caso, o tipo penal envolvido é o art. 268 do Código Penal, o qual estabelece o seguinte:
Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
Como se vê, trata-se da chamada norma penal em branco em sentido estrito ou heterogênea, ou seja, demanda um complemento que tem “natureza jurídica diversaMASSON, Cleber. Código penal comentado. 2.ed. rev.ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, Método, 2014, p. 13 e emana de órgão distinto daquele que elaborou a lei penal incriminadora”. No caso, a lei refere à determinação do poder público, que “pode ser qualquer autoridadeMASSON, ob.cit., p. 953 (federal, estadual, distrital ou municipal) competente para o ato, a qual deve constar do rol de suas atribuições legais”.
Já se disse que a proibição das pessoas de se reunirem, em espaços públicos ou privados, é inconstitucional, por agredir frontalmente a cláusula pétrea que assegura o direito de reunião, e ilegal, por estabelecer uma medida de restrição que não foi autorizada pela Lei n. 13.979/2020. Ao estabelecer uma restrição que não era prevista na lei, parece pouco mais que evidente que a autoridade também extrapolou a sua competência, ou seja, agiu para além das suas atribuições legais. Nesse sentido, essa restrição não pode ser considerada uma determinação do poder público válida como complemento da norma penal em branco.
Mas não é só: o complemento da norma penal, uma vez que integra a tipicidade do delito, deve também observar o princípio da legalidade e da taxatividade. No caso, o complemento é demasiadamente genérico.
O decreto catarinense prevê simplesmente a suspensão de eventos e reuniões de qualquer natureza, assim como a concentração e a permanência de pessoas em espaços públicos de uso coletivo, como parques, praças e praias. Já a Portaria n. 348/2020, do Secretário de Estado da Saúde de Santa Catarina foi mais longe, proibindo “aglomeração de pessoas em qualquer ambiente, seja público ou privado, interno ou externo, para a realização de atividades de qualquer natureza”, inclusive a “realização de festas em residências com pessoas que não as residentes do domicílio, com intuito de evitar aglomerações e manter o isolamento social” (art. 1º, caput, e § 2º).
O que seria uma aglomeração de pessoas em qualquer ambiente? Se dois amigos se encontrarem fortuitamente na rua e pararem para conversar, estariam se “aglomerando”? E se um grupo de amigos combinar uma viagem turística e, ao chegarem no destino, resolverem todos saírem juntos para caminhar ao ar livre para conhecer a cidade, isso seria uma indevida aglomeração? Se o cidadão resolver combinar com os amigos de fazer exercícios em uma academia em um mesmo horário, não há dúvidas de que isso seria permitido, de acordo com as normas vigentes. Mas e se esse cidadão possuir uma academia própria em casa e convidar esses mesmos amigos para praticarem musculação na sua casa, seria isso uma aglomeração vedada?
Do mesmo modo, o que seria considerado uma “festa em residência”? Certamente, celebrar um casamento com centenas de amigos seria uma aglomeração, de acordo com a portaria. Agora, se o sujeito fizer um almoço em casa e convidar a família do vizinho, seria considerado uma festa, ainda que a única celebração fosse a amizade entre os vizinhos? E se esse almoço em casa for para celebrar um aniversário, faria alguma diferença? Se for aniversário, mas ninguém cantar “parabéns” e não houver bolo nem vela, ainda assim é festa? E se esse cidadão decidir celebrar o aniversário com os mesmos amigos e familiares em uma pizzaria, com direito a “parabéns” e tudo mais, aí seria festa? Faz sentido proibir o cidadão de celebrar seu aniversário em casa, um ambiente mais restrito, e permitir que esse mesmo cidadão congregue com os seus amigos em um pizzaria? E se o cidadão for promovido no emprego e resolver convidar os seus colegas mais próximos para um happy hour em comemoração, isso seria considerado uma festa em local público? E se o sujeito convidar dois ou três amigos para assistirem ao jogo do Brasileirão na sua casa, seria isso uma festividade? E se, ao invés de um par de amigos, for uma dezena, aí sim seria festa? Qual é, afinal, o número de pessoas reunidas que caracteriza uma festa ou um evento?
Como se observa, as hipóteses podem se multiplicar até o infinito e todas podem muito bem se encaixar na norma, pois o significado de “aglomeração” ou “festa em residência” é tão subjetivo quando gostar do cantor Frank Sinatra ou da cantora Anita, sendo um verdadeiro convite ao arbítrio deixar ao alvedrio da autoridade pública definir essas expressões. Os casos de uma mulher presa por tomar chimarrão na praça e outra por estar de biquíni na praia, ou o cidadão preso por ter aberto o seu comércio, ou a bailarina agredida na sua residência por estar com amigos, fatos esses públicos e notórios, são exemplos desse arbítrio.
Alguém dirá que é uma questão de bom senso. O problema é que “bom senso” cada um tem o seu. E a norma penal não pode depender do bom senso, afinal o senso da pessoa incriminada não vale nem mais nem menos que o senso do delegado, do promotor ou do juiz.
Para quem ainda não se convenceu do barbarismo representado pela criminalização da conduta de violar certas restrições impostas pelas autoridades públicas sob o pretexto de “proteger” as pessoas de um vírus, ainda há mais um argumento: a absoluta ausência de potencial consciência da ilicitude da conduta.
4. Ausência da potencial consciência da ilicitude da conduta
O art. 21 do Código Penal estabelece uma causa especial de isenção ou redução de pena chamado de “erro sobre a ilicitude do fato”, assim disciplinado:
Art. 21 – O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Trata-se de norma que desculpa o agente não por ignorar a existência de uma lei, mas por desconhecer o caráter ilícito de determinado fato. Não conhecer a lei e não conhecer a ilicitude do fato são situações distintas, como ensina MASSON:
Com efeito, para possibilitar a convivência de todos em sociedade, com obediência ao ordenamento jurídico, impõe-se uma ficção: a presunção legal absoluta acerca do conhecimento da lei. Considera-se ser a lei de conhecimento geral com a sua publicação no Diário Oficial. Mas a ciência da existência da lei é diferente do conhecimento do seu conteúdo. Aquela se obtém com a publicação da norma escrita; este, inerente ao conteúdo do lícito ou ilícito da lei, somente se adquire com a vida em sociedade. E é justamente nesse ponto que entra em cena o instituto do erro de proibição.[10]
Importante salientar que não se pode exigir do leigo a mesma compreensão que um jurista possui acerca das normas proibitivas. Ao avaliar o erro de proibição, deve-se levar em conta a “consciência profana do injusto”, como destaca GRECOGRECO, Rogério. Código penal: comentado. 8ed. Niterói, RJ: Impetus, 2014, p. 75, citando Cezar Roberto Bittencourt:
De acordo com as lições de Cezar Roberto Bittencourt, “com a evolução do estudo da culpabilidade, não se exige mais a consciência da ilicitude, mas sim a potencial consciência. Não mais se admitem presunções irracionais, iníquas e absurdas. Não se trata de uma consciência técnico-jurídica, formal, mas da chamada consciência profana do injusto, constituída do conhecimento da antissociabilidade, da imoralidade ou da lesividade de sua conduta. E, segundo os penalistas, essa consciência provém das normas de cultura, dos princípios morais e éticos, enfim, dos conhecimentos adquiridos na vida em sociedade. São conhecimentos que, no dizer de Binding, vêm naturalmente com o ar que a gente respira.”
Ora, ninguém ignora que foram estabelecidas restrições pelo poder público para supostamente combater a disseminação do coronavírus. Essa informação genérica está estampada nos jornais televisivos e impressos e é tema de conversa em qualquer boteco. Agora, saber que existem as medidas restritivas é uma coisa; outra coisa é conhecer o teor dessas restrições e a extensão de sua aplicação (onde é aplicada, a quem é dirigida, qual o período de vigência, quais sanções estão previstas, etc.).
Desde o início da pandemia, foram editados dezenas de decretos, portarias, instruções e notas, emanados de dezenas de autoridades, desde o presidente da república, passando por governadores e prefeitos, até secretários de saúde e diretores de órgãos públicos. Só de prefeitos e governadores o Brasil tem mais de cinco mil. Se cada um editar um decreto (e cada um editou uma miríade de regulamentos), o pandemônio está feito. Isso para não falar das normas e recomendações propagadas por organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde.
Não bastasse a profusão de fontes normativas, essas normas foram revisadas, alteradas, revogadas e restabelecidas quase que diuturnamente desde o começo da pandemia. No princípio, as pessoas até tentaram acompanhar a evolução das medidas de restrição que estavam sendo adotadas. O autor, inclusive, participou de grupos de discussão que reuniam autoridades locais, como o prefeito, secretários, advogados, coordenadores da vigilância sanitária e defesa civil, médicos, enfermeiros, policiais militares e civis, entre outros. Nem mesmo essas autoridades, as quais estavam diretamente envolvidas na tomada de decisão e aplicação das medidas restritivas, eram capazes de compreender o sentido e o alcance de grande parte das restrições que estavam sendo impostas e revistas dia-a-dia. Cada dúvida que surgia ensejava múltiplas opiniões sugerindo interpretações e explicações diferentes para cada medida, algumas diametralmente opostas.
Numa certa ocasião, o autor perguntou à Secretária Municipal de Saúde quais eram as medidas de restrição e de isolamento vigentes no município em determinada data. A informação foi consolidadaA resposta da Secretária ilustra bem a inflação de regulamentos sobre o tema. Diz ela: “posso fazer buscas e lhe remeter sim. São vários decretos do governo estadual e municipal vigentes”. Sem grifos no original. em uma tabela com nada menos do que 11 páginas contendo cerca de 60 distintas espécies de atividades, comércios e espaços públicos e privados com restrições variadas previstas em pelo menos 40 regulamentos Os regulamentos listados foram os seguintes: Decretos Estaduais n. 62, 63, 79, 95, 562, 630, 724, 785; Portarias SES/SC n. 191, 192, 214, 216, 223, 230, 231, 238, 244, 254, 256, 257, 258, 272, 275, 346, 347,349, 352, 391, 424, 468, 550; Portaria SIE/SC n. 529; Portaria Conjunta SES/SED n. 447; Decretos Municipais n. 95, 139, 150, 160; Provimento CGJ/TJSC n. 24; Nota 1074/Scmdo/9º BPM; e Nota técnica DIVS 11. diferentes, entre decretos, estaduais e municipais, portarias, provimento e notas de secretarias e outros órgãos públicos, sem contar a lei e os regulamentos federais. Detalhe: esses eram os regulamentos vigentes na data apontada e para aquele município. Ou seja, com certeza há mais regulamentos editados antes dessa data (já revogados) e, desde então, os regulamentos continuam sendo expedidos sem cessar, conforme oscilam as estatísticas da pandemia. E os municípios vizinhos tinham cada qual a sua própria regulamentação.
A inflação de normas foi tão absurda que o governo federal organizou um sítioDisponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Portaria/quadro_portaria.htm. Sem grifos no original. Acesso em 8-9-2020 na internet exclusivamente para compilar as dezenas, quiçá centenas, de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, resoluções e outros atos normativos relacionados à pandemia, cujo alerta no topo da página de abertura é emblemático: “estamos em atualização diária dos atos normativos sobre o COVID-19”.
Não surpreende que nem mesmo a secretária sabia ao certo as medidas restritivas vigentes no seu próprio município, precisando de dois dias para fazer o levantamento preciso dessas informações. Se nem a secretária de saúde, uma das pessoas mais bem informada sobre o tema, domina o conteúdo das restrições, como exigir que os demais cidadãos tenham a potencial consciência de todas essas restrições? Como é que o cidadão comum poderia imaginar que fazer um churrasco ou celebrar um aniversário na sua própria residência com um punhado de amigos seria considerado um crime? Em outras palavras: como exigir do cidadão comum a potencial consciência da ilicitude da sua conduta ou a “consciência profana do injusto”?
Claro que a maioria das pessoas conhece a obrigatoriedade de usar máscaras e higienizar as mãos, porque essas medidas foram impostas e mantidas desde o início da pandemia e, por isso, rapidamente assimiladas pela população de um modo geral. Agora, outras medidas de restrição não puderam ser bem compreendidas, especialmente por conta das seguidas alterações e, ainda mais, pela profusão de informações conflitantes publicadas oficialmente ou nos noticiários e em sites especializados, entre outras fontes.
A multiplicidade de fontes normativas, a abundância de regulamentos e a alteração quase que diária das restrições vigentes tornou praticamente impossível saber com exatidão tudo que estava permitido ou proibido fazer ou deixar de fazer em determinado momento e em determinada localidade desde o início da pandemia.
Nesse contexto, não há como se considerar culpável o cidadão que, por uma razão ou outra, descumpriu uma medida de restrição imposta pelo poder público. Trata-se evidentemente de um erro inevitável sobre o caráter ilícito do fato.
5. Conclusão
As medidas de isolamento e quarentena para evitar ou reduzir a propagação de doenças não são uma novidade no curso da história. Há mais de dois mil anos, desde a época do Jesus Cristo, impõe-se o “distanciamento social” a pessoas portadores de doenças contagiosas para evitar a disseminação de pragas e pestes. Nesse sentido, é ilustrativo o épico filme americano Ben-Hur (1959), quando o protagonista (Charlton Heston) dirige-se ao “Vale dos Leprosos” para encontrar a sua mãe e a sua irmã, as quais lá se encontravam junto com outros doentes, todos isolados da população sadia para evitar a propagação de uma doença grave e sem cura na época.
O novo na atualidade é a imposição de isolamento para as pessoas saudáveis! Por certo, essa inversão da lógica não chega a surpreender em um país onde as pessoas de bem ficam encarceradas em suas casas porque os bandidos estão soltos nas ruas.
O medo causado pela rápida propagação do coronavírus parece ter causado uma paralisia cerebral em algumas pessoas, que simplesmente abdicaram das suas faculdades mentais e não mais conseguem perceber as arbitrariedades que estão sendo cometidas por agentes estatais desde o início da pandemia sob o pretexto de “proteger” as pessoas. A título de exemplo, cite-se a quebra ilegal do sigilo de comunicações das pessoas para rastrear os sinais de localização de seus celulares. Sem nenhuma cerimônia, sem fundamento constitucional ou legal e, por óbvio, sem decisão judicial, a polícia de muitos estados, inclusive de Santa Catarina, monitorou (e talvez ainda esteja monitorando) os passos dos cidadãos para saber quem está em casa e quem está na rua. Algo inimaginável se se pensar que, neste país, para colocar uma tornozeleira eletrônica em um bandido com essa mesma finalidade é quase necessário pedir licença ao criminoso. Mais um sinal da inversão de valores que se observa na atualidade…
Não bastou atropelarem os direitos e as liberdades fundamentais do indivíduo. Querem também tachar de “criminosos” os cidadãos pelo simples fato de se “aglomerarem” com os seus familiares em suas residências para um almoço de confraternização dominical, como se isso fosse o mais hediondo de todos os crimes.
Em uma República na qual a Suprema Corte manda soltar um sem número de bandidos condenados a pretexto de protegê-los de uma gripe, é, no mínimo, inusitado querer enquadrar no Código Penal o cidadão que descumpre medidas de restrição sanitária. Mas a inversão de valores no seio das instituições públicas é tamanha que não chega a surpreender o desejo de se rotular como criminosa a vovó que tem a audácia de visitar os seus netos em tempos de pandemia, enquanto homicidas, assaltantes, estupradores e traficantes de drogas são considerados inocentes vítimas da sociedade.
Lamentavelmente, os cidadãos de modo geral aceitaram bovinamente as restrições que lhe foram empurradas goela abaixo, sem crítica, sem discussão, sem ponderação. Agora, esses mesmos cidadãos, justos, honestos, trabalhadores, estão sendo importunados pela polícia (que, diga-se de passagem, apenas cumpre as ordens emanadas do seu governador) e constrangidos perante um juízo criminal por terem desafiado uma proibição não apenas absurda e teratológica, mas fundamentalmente inconstitucional, ilegal e, para a imensa maioria dos indivíduos, desconhecida.