O Município de Valinhos, São Paulo, editou lei, de iniciativa parlamentar (Lei n. 5.849/2019), segundo a qual seria vedada a nomeação, pela Administração Pública Direta e Indireta do ente público, de pessoas condenadas por incidirem nas disposições da Lei Federal n. 11.340 de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
Questionada a constitucionalidade da norma perante o TJSP, o Tribunal considerou que a lei era formalmente inconstitucional, por violar o princípio da separação de funções estatais (art. 5º, CE/SP e art. 2º CRFB), pois a iniciativa legislativa para tratar de matéria relativa ao regime jurídico dos servidores seria de competência reservada ao Chefe do Poder Executivo.
Interposto recurso extraordinário em face do acórdão (RE 1.308.883/SP), o Ministro Edson Fachin proveu, monocraticamente, o RE para assentar que é constitucional a lei do município de Valinhos, São Paulo, que impede a administração pública de nomear pessoas condenadas pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) para cargos públicos.
Para o Min. Fachin, ao vedar a nomeação de agentes públicos, no âmbito da Administração Direta e Indireta do município, condenados nos termos da Lei federal nº 11.340/2006, a norma impugnada impôs regra geral de moralidade administrativa, visando dar concretude aos princípios elencados no caput do art. 37 da Constituição Federal, cuja aplicação independem de lei em sentido estrito e não se submetem a uma interpretação restritiva – ver página 03 de sua decisão.
Assim, por envolver a concretização de princípios de relevo constitucional, a iniciativa de leis com essa conotação ou natureza não seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mas de qualquer dos Poderes.
Como dito, o TJSP havia considerado a lei inconstitucional em virtude de vício de iniciativa. Para a Corte Bandeirante, a competência para a iniciativa de lei sobre regime jurídico dos servidores seria do chefe do Poder Executivo.
Conforme prevê o art. 48 da Lei Orgânica do Município de Valinhos, compete, exclusivamente, ao Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre: I – criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração; II – criação, estruturação e atribuições das Secretarias Municipais e órgãos da administração pública; III – servidores públicos do Município, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; IV – abertura de créditos adicionais.
Tal dispositivo guarda similitude com o art. 61, § 1º da Constituição Federal (que, por sua vez, utiliza o termo privativamente) e o art. 24, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo (que utiliza o vocábulo exclusivamente)
A cláusula da reserva de iniciativa, inserta no § 1º do artigo 61 da Constituição Federal de 1988, é corolário do princípio da separação dos Poderes. Por isso mesmo, de compulsória observância pelos Estados, inclusive no exercício do poder reformador que lhes assiste – ver CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 1227-1228.
É pacífico o entendimento de que as regras básicas do processo legislativo da União são de observância obrigatória pelos Estados, “por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes” – ver ADI 2420/ES, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2005, DJ 08-04-2005 e ADI 774/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/1998, DJ 26/02/1999.
De acordo com o Min. Edson Fachin, todavia, “a regra relativa a iniciativa legislativa aplica-se apenas aos casos em que a obrigação imposta por lei não deriva automaticamente da própria Constituição.” Para ele, “tal interpretação deve ainda ser corroborada pelo disposto no art. 5º, § 1º, da CRFB, segundo o qual os direitos e garantias previstos na Constituição têm aplicação imediata.”
Assim, “tratando-se o diploma impugnado na origem de matéria decorrente diretamente do texto constitucional, não subsiste o vício de iniciativa legislativa sustentado pelo Tribunal a quo” (página 4 da sua decisão).
Consigne-se que o Supremo, em geral, costuma conferir interpretação bastante restritiva quando analisa a iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo – CF, art. 61, § 1º. Para a Corte, não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, editar lei que verse sobre regime jurídico, da remuneração e dos critérios de provimento de cargo público – ver, por exemplo: ADI 243/RJ, Rel. Octavio Gallotti, Rel. p/ Acórdão Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 01/02/2001, DJ 29/11/2002 e ADI 2834/ES, Rel. Min Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2014, DJe 09/10/2014.
No RE 570.392/RS, Rel. Ministra Cármen Lúcia, julgado em 11/12/2014, DJe 18/02/2015, todavia, o Plenário do Tribunal deu um significativo passo para quebrantar sua posição tradicional acerca do tema. Entendeu-se que não seria privativa a iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo de lei cujo o conteúdo normativo concretizasse, por exemplo, princípios do art. 37, caput, da Constituição da República (no caso analisado, considerou-se que não são de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executiva leis que tratem dos casos de vedação ao nepotismo para ingresso no serviço público).
Assim, se o conteúdo da lei der concretude a princípios constitucionais, segundo o RE 570.392/RS (Tema 29) e a decisão proferida pelo Min. Edson Fachin no RE 1.308.883/SP (julgado em 07/04/2021, DJe 13/04/2021), é possível que qualquer dos poderes tenha a iniciativa legislativa e a norma criada não padecerá de vício.
De fato, se os princípios constitucionais prescindem de lei para serem observados, não há vício de iniciativa legislativa em leis editadas com o objetivo de dar eficácia específica a eles. Para essas decisões, a regra relativa a iniciativa legislativa é aplicável tão somente aos casos em que a obrigação imposta por lei não decorra automaticamente da própria Constituição.
Precisamos ver, contudo, se a decisão será confirmada e como o Supremo lidará com o tema no futuro. A Corte poderá fazer uma leitura mais tímida, aplicando restritivamente o art. 61, § 1º, CR/88 (como fez em diversos de casos) ou realizar intepretação mais alargada e considerar constitucionais, leis, oriundas de “outros poderes”, mas de cujo conteúdo se possa extrair dever imposto diretamente pela Constituição e, nessa última situação, considerar as legislações compatíveis com a Carta de 88.
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