Matar animais sem motivação alguma, em ato de simples crueldade, configura crime previsto no artigo 32 da Lei Ambiental (Lei 9.605/98).
Acaso esses animais sejam cães ou gatos, a pena é qualificada nos termos do § 1º. – A do mesmo dispositivo supra mencionado.
Em ocorrendo a morte do animal, em qualquer caso, inclusive na qualificadora, a pena é aumentada de um sexto a um terço, de acordo com o § 2º. do artigo 32 da Lei Ambiental. [1]
Em texto anterior, ao qual remetemos o leitor, já se criticou amplamente o fato de que a legislação eleja somente duas espécies de animais (cães e gatos) para a conferência de especiais proteções, violando frontalmente o Princípio da Isonomia. [2]
Agora vem a lume a Lei 14.228/21 que veda a eliminação da vida de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, salvo em casos justificados de eutanásia (artigo 2º.). Novamente prossegue o legislador com sua preocupação seletiva com “cães e gatos”. É claro que não se está propondo impedir a eliminação de pragas (v.g. ratos, pulgas, carrapatos etc.), mas nada justifica o tratamento especial para “cães e gatos”, enquanto outros animais que não são em regra vetores de contaminação (v.g. cavalos, cabras, galos de rinha apreendidos etc.) são deixados de lado. O erro inicial da Lei 14.064/20 se repete na Lei 14.228/21.
Observe-se que certamente a atual legislação (Lei 14.228/21) tem como origem jurisprudencial o julgamento da ADPF n. 640/19-DF, STF, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Em seu bojo é alegado o descumprimento de preceitos fundamentais com a prática do abate de animais saudáveis apreendidos, tendo em vista que a legislação e regulamentos aplicáveis à espécie não prevê esse tipo de “solução” (inteligência dos artigos 32 c/c 25, §§ 1º. e 2º., da Lei 9.605/98 e artigos 101 a 103 e seus parágrafos do Decreto 6.514/08). Realmente não há base legal ou regulamentar no Brasil para o abate indiscriminado de animais apreendidos ou recolhidos. Dessa forma é apontada violação à legalidade (artigo 5º., II, CF) e à especial proteção garantida à fauna em geral, especialmente no que tange à sua submissão a crueldade (artigo 225, § 1º., VII, CF). O Ministro Gilmar Mendes então defere o pedido, proibindo o sacrifício injustificado de animais apreendidos, seja mediante decisões administrativas ou judiciais. O interessante é que a ADPF640/19 – DF não se limita a “cães e gatos”, mas faz referência a animais em geral, sendo mais um elemento importante a indicar que leis como a sob comento e a antecedente Lei 14.064/20 representam casos de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva quando, indevidamente, reduzem seu alcance apenas a “cães e gatos”. [3]
De qualquer forma, não resta dúvida de que o abate de cães e gatos apreendidos fora dos casos excepcionados pela Lei 14.228/21 constituirá crime de “Maus – Tratos contra Animais” qualificado e majorado de acordo com o artigo 32, § 1º.-A e § 2º., da Lei 9.605/98. Aliás, isto é estabelecido expressamente pelo artigo 4º. da Lei 14.228/21.
Não obstante, também configura o crime majorado nos termos do artigo 32, § 2º., da Lei Ambiental, o abate de outros animais sem justificativa plausível, tendo em vista, não o conteúdo da Lei 14.228/21, que se reduz a “cães e gatos”, não sendo possível analogia “in mallam partem”, mas sim o constante da decisão proferida nos autos da ADPF 640/19 – DF, que abarca qualquer animal. Observe-se, porém, que o abate irregular de animais que não sejam “cães ou gatos”, não se tipificará na figura qualificada do artigo 32, § 1º. – A, da Lei 9.605/98, mas tão somente no artigo 32, “caput”, sendo a pena majorada devido à morte do animal (§ 2º.).
Entretanto, os critérios delineados na Lei 14.228/21, os quais servem para avaliar se o abate é excepcionalmente justificável ou não, podem certamente ser utilizados tanto para cães e gatos como para outros animais apreendidos. Apenas, devido à legalidade, não se pode fundamentar a infração com relação a outros animais na vedação que se refere a cães e gatos, sendo necessário apelar para o fundamento da ADPF 640/19 – DF. Também pela mesma razão não é possível aplicar a qualificadora reservada somente a cães e gatos, conforme § 1º. – A do artigo 32 da Lei 9.605/97.
Dessa forma, o abate de animais apreendidos em geral, para não configurar figura criminosa respectiva somente se poderá dar em casos especiais nos quais seja permitida e mesmo adequada a prática de “eutanásia” (artigo 1º., da Lei 14.228/21). Essa prática excepcional somente ocorrerá, nos termos do artigo 2º., da lei em comento “nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais” (v.g. toxoplasmose irreversível, câncer irreversível, raiva ou hidrofobia) e mesmo assim procurando utilizar na execução do ato meios indolores e o mais brandos possíveis. [4] Este último cuidado é fundamental e se encontra nas Diretrizes da Prática de Eutanásia do CONCEA (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal):
Esta diretriz objetiva estabelecer procedimentos que evoquem o mínimo de dor ou sofrimento com a realidade da maioria dos estabelecimentos em que a eutanásia é realizada. Deve-se consultar profissional(is) com experiência na área e grupos taxonômicos envolvidos para assegurar a adequação da técnica, ou no caso de instalações animais, de acordo com a Resolução Normativa no 6, de 10 de julho de 2012, os procedimentos de eutanásia devem ser supervisionados, mesmo que não de forma presencial, pelo Responsável Técnico pela instalação animal, que deve ter o título de Médico Veterinário com registro ativo no Conselho Regional de Medicina Veterinária, da Unidade Federativa em que o estabelecimento esteja localizado. [5]
Portanto, reforça-se o disposto no artigo 2º., § 1º., da Lei 14.228/21 que exige um “responsável técnico”, que necessariamente será um veterinário, para justificar mediante laudo e eventuais exames laboratoriais a prática excepcional da eutanásia.
A Lei 14.228/21 permite a eutanásia animal em todos os casos previstos em seu artigo 2º., mas conforme o disposto no artigo 2º.§ 2º., em não se tratando o motivo para a eutanásia de “doença infectocontagiosa incurável”, abre-se a alternativa de disponibilizar o animal para resgate por entidade protetiva. Entende-se então que é possível optar pela eutanásia, mas apenas quando não houver entidade disposta a receber o animal para tratamento. O único caso em que essa possibilidade de resgate do animal é vedada e somente é apontada a solução da eutanásia são as doenças infecciosas incuráveis, tendo em vista o risco para a saúde pública humana e animal. Assim sendo, entende-se que em havendo entidade disposta a ficar com o animal e não se tratando de doença infectocontagiosa incurável, a prática da eliminação do animal configurará crime conforme acima já exposto, variando da forma qualificada com aumento de pena no caso de cães e gatos até a forma simples com aumento de pena no caso de outros animais. A faculdade de praticar a eutanásia nos casos em que há alternativa de resgate por entidades, parece ser condicionada a não existência ou não disposição dessas entidades protetivas em receber os animais. Sugere-se, portanto, que instituições responsáveis pela apreensão, em havendo entidades protetivas, sempre as notifiquem por escrito com prazo razoável para a retirada do animal, antes de proceder à eutanásia, mesmo nos casos em que esta é alternativamente permitida pela lei. Essa documentação deve ser registrada e arquivada para eventuais fiscalizações e comprovação de legalidade dos procedimentos levados a termo no local. Note-se que inclusive o § 2º. do artigo 2º., prevê que as entidades de proteção animal terão acesso irrestrito à documentação que comprove a legalidade da eutanásia nos casos do artigo 2º., “caput” do mesmo diploma. Significa dizer que tais entidades protetoras farão uma espécie de “controle externo” e certamente poderão e deverão denunciar práticas irregulares e criminosas para responsabilizações de direito. É claro que em não havendo entidade de proteção disponível, a eutanásia será a solução para todos os casos previstos no artigo 2º. da legislação enfocada. Pode-se dizer que a eutanásia é a “prima ratio” no caso de doenças infectocontagiosas incuráveis e é a “ultima ratio” nos demais casos previstos no dispositivo citado. E mais, nos casos que envolvam animais saudáveis, não há hipótese nenhuma de eliminação.
A Lei 14.228/21 entra em vigor após uma “vacatio legis” de 120 dias, nos termos de seu artigo 5º. Não obstante, entende-se que desde o julgamento da ADPF 640/19 – DF, a prática de eliminação da vida de animais apreendidos está vedada e, salvo em casos de justificável eutanásia, pode configurar crime de maus – tratos, variando a tipificação no caso de “cães e gatos” e outros animais. O que a Lei 14.228/21 faz, e se pode afirmar que já o faz mesmo antes de sua entrada em vigor, é apresentar um referencial para quais seriam os casos de eutanásia justificada, bem como os procedimentos a serem adotados. Afirma-se que mesmo antes de sua entrada oficial em vigor já é um marco norteador porque podem perfeitamente os administradores dos órgãos afetados utilizar seus critérios e adotar suas cautelas desde logo, embora ainda sem força coativa legal.
Por derradeiro é preciso alertar para o fato de que, indiretamente, a Lei 14.228/21 significa um incremento da responsabilidade da sociedade civil, no caso das entidades de proteção, a fim de que realmente não se reduzam à fiscalização, denúncia e crítica dos órgãos públicos, mas atuem para realmente acolher esses animais. Um enorme desafio, um ingente teste agora se aplica à sociedade civil, especialmente às entidades protetoras: enfrentar o problema na prática atuando no cuidado dos animais, assumindo sua responsabilidade social, pois, caso contrário, essa legislação transformará a maior parte dos municípios em um caos de zoonoses e outros problemas (até mesmo acidentes automobilísticos) com animais soltos pelas ruas sem qualquer controle, isso porque certamente os entes estatais não darão conta, sozinhos, de manter milhares de animais saudáveis ou com doenças que não permitem eutanásia em seus abrigos com alto custo veterinário, de alimentação, medicamentos, estrutura e pessoal. Veremos como se comportará a sociedade civil diante desse desafio e dessa responsabilidade.
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos, CABETTE, Bianca Cristine Pires dos Santos. Crime de Maus – Tratos a Animais Qualificado (Lei 14.064/20) – Primeiros Apontamentos. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/10/06/crime-de-maus-tratos-animais-qualificado-lei-14-06420-primeiros-apontamentos/, acesso em 28.10.2021.
EUTANÁSIA é opção para cães que sofrem com doença irreversível. Disponível em https://www.agrolink.com.br/saudeanimal/noticia/eutanasia-e-opcao-para-caes-que-sofrem-com-doenca-irreversivel_127839.html , acesso em 28.10.2021.
DIRETRIZ da prática de Eutanásia do CONCEA. Disponível em https://www.ufmg.br/bioetica/ceua/wp-content/uploads/2016/06/eutanasia_concea.pdf , acesso em 28.10.2021.
STF, ADPF 640/DF, Rel. Ministro Gilmar Mendes. 18.12.2019. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&documento=&s1=640&numProcesso=640 , acesso em 28.10.2021.
NOTAS
[1] Confira-se sobre esta e outras questões a respeito do artigo 32 da Lei 9.605/98, nosso artigo anterior que comenta as alterações promovidas pela Lei 14.064/20: CABETTE, Eduardo Luiz Santos, CABETTE, Bianca Cristine Pires dos Santos. Crime de Maus – Tratos a Animais Qualificado (Lei 14.064/20) – Primeiros Apontamentos. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/10/06/crime-de-maus-tratos-animais-qualificado-lei-14-06420-primeiros-apontamentos/, acesso em 28.10.2021.
[2] Op. Cit.
[3] STF, ADPF 640/DF, Rel. Ministro Gilmar Mendes. 18.12.2019. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&documento=&s1=640&numProcesso=640 , acesso em 28.10.2021.
[4] EUTANÁSIA é opção para cães que sofrem com doença irreversível. Disponível em https://www.agrolink.com.br/saudeanimal/noticia/eutanasia-e-opcao-para-caes-que-sofrem-com-doenca-irreversivel_127839.html , acesso em 28.10.2021.
[5] DIRETRIZ da prática de Eutanásia do CONCEA. Disponível em https://www.ufmg.br/bioetica/ceua/wp-content/uploads/2016/06/eutanasia_concea.pdf , acesso em 28.10.2021.