Nada se poupe então: que as suas malvadezas
Sirvam de exemplo em tudo às nossas más proezas
Sagrado, nada há: tudo neste universo
Deve ao jugo vergar do nosso vivo acesso.
Marquês de Sade, Poema “A Verdade”. [1]
Está disponível no catálogo do Netflix um filme nacional intitulado “O Céu de Suely”. [2] Trata-se de um drama produzido em 2006 em que se narra a estória de uma mulher que tem um filho com um rapaz e, quando retorna para sua cidade interiorana, à espera do companheiro, este simplesmente desaparece e a deixa sozinha com a obrigação de sustento próprio e da criança. Inobstante o apoio de sua avó e de uma tia, a personagem sente que não será capaz de dar um futuro decente para o filho em termos financeiros. Por essa razão, observando a atividade de prostituição de uma amiga em pontos de caminhoneiros, tem a ideia de fazer uma rifa para obter dinheiro, cujo ganhador teria direito a uma noite de sexo consigo. Ela diz à sua tia e amiga: “Eu vou me rifar”.
Quando se assiste ao filme percebe-se claramente que a obra não glamouriza a prostituição ou, mais especificamente, a conduta da personagem que cria uma forma de prostituição diferenciada. Suely se apresenta fragilizada e não tem qualquer orgulho de sua conduta, apenas age sem maiores considerações, tendo em mira seus objetivos imediatos. Ela não se defende quando sua avó descobre os atos e a admoesta fortemente. No final, quando vai “pagar” a noite de sexo ao ganhador da rifa, mostra-se claramente constrangida, sem espontaneidade, humilhada pelos pedidos de dança e outras instruções do ganhador. Pode-se dizer que o filme retrata a prostituição como uma realidade, mas sua mensagem é visivelmente descritiva da degradação a que essa conduta leva as pessoas.
O “Céu de Suely” é uma ilusão diabólica que a enreda em um “sonho” de prosperidade e a precipita num verdadeiro “Inferno” físico, afetivo, psicológico e moral.
No Brasil a prática da prostituição própria não é crime, é crime no Brasil apenas a exploração da prostituição alheia, o que não afasta a imoralidade do ato de entregar-se à prostituição. A prostituição não é punida em ordens jurídicas como a brasileira pelo simples motivo de que é necessário distinguir vícios de crimes, sob pena de tornar a aparato repressivo estatal inviável. [3] Como bem observa Spooner:
“Um governo que punisse imparcialmente todos os vícios é, segundo toda a evidência, de tal maneira impossível que nunca se viu, nem verá, uma pessoa tão estúpida que o propusesse”. [4]
Confesso que quando fui assistir ao filme estava condicionado por um preconceito, no sentido mesmo do termo como um “pré – conceito”. Pensava que iria se tratar de uma produção voltada para alguma espécie de defesa ou até incentivo à prostituição como caminho de libertação e emancipação feminina. Mesmo assim assisti, porque tencionava escrever a respeito da obra cinematográfica e seria extrema leviandade elaborar um texto sobre um filme que nem se assistiu, baseado apenas em uma divulgação do canal com breve sinopse.
Mas, preciso defender-me. O que criou o meu “pré – conceito” foi algo heterônomo, uma informação com a qual me deparei. A apresentação da película é assim levada a efeito pelo canal:
“Para conseguir dinheiro, uma mãe decide rifar o próprio corpo para uma noite de paixão, chocando a cidadezinha onde vive com seu empoderamento feminino” (grifo meu). [5]
Ora, a verdade é que a sinopse não corresponde ao conteúdo da obra. A prostituição é apresentada como fato, mas não é incentivada e muito menos exposta na qualidade de algo que conceda algum “poder” à mulher. Parece que há uma tendência a forçar a apresentação da marginalidade e da imoralidade como padrão de comportamento desejável e digno, talvez como única forma de enfrentamento de quaisquer dificuldades ou único caminho de contestação ou reação àquilo que se entenda por injustiça.
Infelizmente não somente o mundo acadêmico, mas também o artístico, abrangendo produtores, divulgadores e afins, encontra-se contaminado pela tentação de dar protagonismo a tudo que se refira ao chamado “lumpenproletariat”. Muitas vezes as pessoas nem sequer têm consciência da origem de suas ideias que se transformam em atos. Esse intento de protagonismo do marginal advém da revisão procedida por Marcuse quanto à identidade do “agente histórico de transformação”. Não são mais os trabalhadores, o proletariado que compõem a classe revolucionária. Estes foram, segundo Marcuse, cooptados pelo Capitalismo e se encontram, por assim dizer, acomodados. Um novo “sujeito” intocado pela hegemonia capitalista são aqueles “excluídos, marginalizados, explorados e perseguidos, desempregados e não empregáveis”, componentes da mais abertamente criminal e violenta parcela da sociedade. A oposição social do “lumpenproletariat” é, segundo Marcuse, sempre e invariavelmente revolucionária, ainda que não conscientemente. Trata-se de uma força elementar que viola as regras do jogo, e, fazendo isso, revela que se trata de um jogo manipulado. [6] Por isso, uma parcela ideologizada dos mais variados campos de atuação humana, incluindo o ramo artístico, insiste em glamourizar a marginalidade, chegando, como neste caso, até mesmo a fazer uma apresentação de uma obra que, na verdade, não condiz com seu real conteúdo.
O afã de propagar a marginalidade como modelo é tão imperioso que faz com que os próprios propagadores atuem de forma marginal, violando a lei. A sinopse do filme não é uma publicidade que obedeça aos ditames e exigências do artigo 31 e do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), na medida em que não fornece informações corretas sobre o produto ofertado ao público. Pode haver até mesmo, em tese, configuração de crimes previstos nos artigos 66 e 67 do mesmo diploma com relação à pessoa física responsável pela divulgação da sinopse enganosa. E como a divulgação é realizada de forma difusa atingindo de fato pessoas indeterminadas, cabe ao Ministério Público tomar providências não somente quanto à responsabilização criminal (titular da ação penal – artigo 129, I, CF), mas também quanto à correção da divulgação do filme, a fim de que cesse o engodo publicitário (inteligência dos artigos 81, Parágrafo Único, I; 82, I e 83 CDC).
Ademais, não se trata somente de uma questão de natureza jurídica. Pretender afirmar que uma prática de prostituição pode ser elemento de “empoderamento feminino” ou de qualquer pessoa (homem ou mulher) é algo extremamente problemático e contraproducente sob o aspecto moral, além de falso. Não se trata de “empoderamento”, mas da mais intensa degradação dos seres humanos em suas relações mútuas.
Moncada afirma que
a ideia de personalidade reclama a de outras personalidades (…). O Eu pressupõe e reclama o Outro; o ego, o alter. Ninguém pode sentir-se plenamente eu, pessoa, senão em frente de outros eus, outras pessoas ou personalidades. (…) trata-se (…) dum singular que não pode jamais pensar-se sem o seu plural. [7]
Ora, a relação das pessoas envolvidas no ato de prostituição degrada quem se prostitui porque tal pessoa se permite ser usada como um objeto, anulando sua vontade e sua liberdade com referência a um ato de extrema intimidade a troco de compensação financeira. Mas, também o cliente é degradado, porque se submete a comprar sexo, atenção e afeto (ainda que falso). A prostituição é uma forma degradante de relação entre o Eu e o Outro numa via de mão dupla. Ninguém nessa relação tem poder nem liberdade verdadeira. Tudo consiste em um jogo de simulação e aviltamento.
Não basta o simples encontro do Eu com o Tu para fundar uma relação de “dever – ser” moralmente aceitável. Esse encontro precisa se constituir de um olhar respeitoso entre o Eu e o Tu, em que o primeiro se reconhece como pessoa dotada de ineludível dignidade ética e enxerga no segundo um ser igualmente dotado da mesma dignidade. Claramente nada disso pode acontecer no ato de prostituição.
O homem se converte em bárbaro no exato momento em que se torna incapaz de reconhecer sua própria humanidade e passa também a se recusar a reconhecer a humanidade dos outros. Isso porque a humanidade que se reconhece nos outros só é possível graças a um prévio reconhecimento que se tem da própria humanidade. [8]
Quando se pretende defender um ato de prostituição como algo que dá “poder” e “libertação” a alguém (mulher ou homem) é preciso admitir o desrespeito próprio e para com as outras pessoas como um modelo aceitável e até desejável. Isso não é “empoderamento”, é embrutecimento puro e simples. Nas palavras de Vasconcelos:
“Quem quiser desenvolver-se e realizar-se com desrespeito pelo outro, seu semelhante, pelos outros que são sua comunidade, e pelas leis morais (…) será um bruto”. [9]
A chamada do filme divulgado pelo Netflix, para além de enganosa, é uma ode à estética da feiura, daquilo que popularmente se diz: “acha que é bonito ser feio”. Engloba em si os quatro traços da barbárie expostos por Mattéi:
1.o desconhecimento da beleza de uma obra, isto é, a ignorância; 2. a denegação do que é elevado, ou a recusa da excelência (…), quer dizer, a pretensão; 3. a incapacidade de realizar um gesto criador, ou seja, a impotência; 4. a vontade confusa de destruição, quer dizer, a regressão. [10]
É a força do negativo que abre as portas para o niilismo a tomar conta de tudo. É o exato contrário do desiderato do progresso da excelência, que objetiva retirar do homem o que ele tem ou pode ofertar de melhor. O desinteresse pela excelência ou até mesmo o gosto pelo vício, a zombaria, a negação e o desprezo das virtudes é a marca registrada desse intento de glorificação da marginalidade e da imoralidade. Voltando a Mattéi:
Privado do sentido da altura, o ser humano desmorona sobre si mesmo, se cobre de areia e se decompõe, como se lhe tivessem tirado a coluna vertebral para reduzi-lo ao estado de sujeito rastejante e nauseabundo, (…). Ou de um verdadeiro verme. [11]
Essa verdadeira tara pela marginalidade acaba colonizando o próprio movimento feminista de tal maneira que é capaz de prejudicar os interesses das mulheres, aviltando sua condição humana, sob o pretexto do tão propalado “empoderamento”. [12]
Torna-se quase inviável não perder o senso da beleza, da bondade, da justiça e da verdade nesse ambiente de distorções. Com o tempo, se nada é feito, passamos a sofrer daquilo que os gregos chamavam de “Apeirokalia”, que significa falta de experiência nas coisas belas. E esse fenômeno provoca um aleijão de alma, tornando o homem incapaz de adquirir sabedoria. Pode-se chegar ao ponto de que o perigo não seja tanto que não se saiba as respostas certas ou se elas existem realmente. O perigo pode vir a ser que nem sequer sejam lembradas as perguntas relevantes.
É preciso retomar o caminho das virtudes e abrir bem os olhos para as armadilhas da desconstrução que se quer impor a todo custo. Não é preciso melhorar o mundo, é preciso salvar o mundo e salvar os homens de si mesmos. Doutra forma, nos restarão apenas os versos melancólicos de T. S. Eliot:
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um gemido. [13]
REFERÊNCIAS
ALDAMA, Frederick Luis. Why The Humanities Matter. Austin: University of Texas Press, 2008.
DE KONINCK, Thomas. Archéologie de la notion de dignité humaine. In: DE KONINCK, Thomas, LA ROCHELLE, Gilbert (orgs.). La dignité humaine. Philosophie, droit politique, économie, medicine. Paris : Les Presses universitaires de France, 2005.
ELIOT, T. S. Os Homens Ocos. Disponível em https://singularidadepoetica.art/2017/04/04/t-s-eliot-os-homens-ocos/ , acesso em 25.07.2022.
MATTÉI, Jean – François. A Barbárie Interior – Ensaio sobre o i –mundo moderno. Trad. Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Unesp, 2002.
MONCADA, Luís Cabral. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1974.
O CÉU de Suely. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/70073047 , acesso em 25.07.2022.
SADE, Marquês. A Verdade. Disponível em https://confrariadaalfarroba.wordpress.com/2014/08/04/a-verdade-marques-de-sade/ , acesso em 25.07.2022.
SOMMERS, Christina Hoff. Who Stole Feminism? New York: Simon & Schuster, 1994.
SPOONER, Lysander. Vícios não são Crime. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Aquariana, 2003.
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direitos de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006.
[1] SADE, Marquês. A Verdade. Disponível em https://confrariadaalfarroba.wordpress.com/2014/08/04/a-verdade-marques-de-sade/ , acesso em 25.07.2022.
[2] O CÉU de Suely. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/70073047 , acesso em 25.07.2022.
[3] Cf. SPOONER, Lysander. Vícios não são Crime. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Aquariana, 2003, p. 20.
[4] Op. Cit., p. 21.
[5] O CÉU de Suely. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/70073047 , acesso em 25.07.2022.
[6] ALDAMA, Frederick Luis. Why The Humanities Matter. Austin: University of Texas Press, 2008, p. 181.
[7] MONCADA, Luís Cabral. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 39.
[8] DE KONINCK, Thomas. Archéologie de la notion de dignité humaine. In: DE KONINCK, Thomas, LA ROCHELLE, Gilbert (orgs.). La dignité humaine. Philosophie, droit politique, économie, medicine. Paris : Les Presses universitaires de France, 2005, p. 36. “Quand je reconnais l’humanité d’autrui, je le fais grâce à une connaissance antérieure de cette humanité qui ne peut être au bout du compte que celle que j’ai de ma propre humanité”. Tradução livre: “Quando reconheço a humanidade dos outros, faço-o graças a um conhecimento prévio dessa humanidade que só pode ser, em última análise, o que tenho de minha própria humanidade”.
[9] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direitos de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 75.
[10] MATTÉI, Jean – François. A Barbárie Interior – Ensaio sobre o i –mundo moderno. Trad. Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Unesp, 2002, p. 21.
[11] Op. Cit., p. 246.
[12] Para uma noção de como o movimento feminista tem sido desviado de pautas legítimas e colonizado pelo politicamente correto: SOMMERS, Christina Hoff. Who Stole Feminism? New York: Simon & Schuster, 1994, “passim”.
[13] ELIOT, T. S. Os Homens Ocos. Disponível em https://singularidadepoetica.art/2017/04/04/t-s-eliot-os-homens-ocos/ , acesso em 25.07.2022. Nessa tradução o autor usa ao final a palavra “suspiro”. Tomei a liberdade de empregar a palavra “gemido”, presente em outras versões, pois considero a expressão mais forte e adequada.