INTRODUÇÃO
Em sua clássica obra, Magalhães Noronha já alertava que o mundo moderno oferece clima propício à fraude, pela multiplicidade de relações jurídicas que a expansão econômica e o desenvolvimento das atividades humanas impõem. Ora, esse retrato desenhado por Noronha na segunda metade do século passado não pode ser mais atual para justificar a criminalização da fraude com a utilização de ativos financeiros.
O interesse pelo mercado de ativos virtuais é crescente. A negociação das denominadas “criptomoedas”, talvez a espécie mais conhecida dos ativos virtuais, atrai cada vez mais a atenção das pessoas, inclusive daquelas não acostumadas aos riscos do mercado financeiro. A extraordinária valorização revelada por essa espécie de ativo em poucos anos é amplamente utilizada para chamar a atenção de quem procura alternativas aos investimentos considerados tradicionais. Infelizmente, o aumento no volume de negócios abre espaço para os mais diversos esquemas fraudulentos, que, no plano virtual, parecem estar sendo especialmente bem-sucedidos devido sobretudo ao pouco conhecimento a respeito de certas modalidades de negócio financeiro.
Em virtude disso, são corriqueiras as notícias de vultosos prejuízos patrimoniais causados por grupos criminosos que, por meio de operações fraudulentas, captam recursos de milhares de pessoas que não conseguem mais recuperar o investimento. A inserção do art. 171-A no Código Penal tem o propósito de lidar especificamente com essa espécie de fraude. Não obstante, a incriminação abrange outras espécies de ativos financeiros.
A fraude com a utilização de ativos financeiros é um crime nominalmente patrimonial. Contudo, devido ao número imenso de potenciais vítimas dos esquemas fraudulentos que se busca inibir, não é exagero dizer que a tutela recai paralelamente no sistema financeiro nacional, o que influencia na competência para o processo e julgamento, como veremos à frente.
CONDUTA TÍPICA
A conduta típica consiste em organizar (arranjar, planejar, formar), gerir (administrar, controlar, gerenciar), ofertar (oferecer, conceder, proporcionar), distribuir (lançar, difundir, disseminar) carteiras ou intermediar (mediar, intervir em) operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, desde que apto a ludibriar alguém, pois, caso contrário, o crime é impossível (art. 17 do CP).
A nosso ver, em qualquer das modalidades de ativos, os núcleos típicos pressupõem uma espécie de atividade dedicada à gestão financeira do patrimônio alheio, ainda que não haja uma pessoa jurídica constituída formalmente. Se, por exemplo, alguém pratica fraudes em negociações diretas de ativos virtuais sem que esteja presente essa característica de gestão, comete estelionato (art. 171 do CP), não o crime do art. 171-A, porque transaciona um ativo, não organiza, gere, oferta ou distribui carteiras (uma carteira de investimentos é composta por um conjunto de ativos que devem ser geridos para proporcionar o melhor rendimento); nem intermedeia operações, mas as promove por si mesmo.
Em suma, para tipificar o crime do art. 171-A do CP, devemos promover um diálogo entre o novo tipo e o art. 1º da Lei 7.492/86, também alterado pela Lei 14.478/22. Pressupõe o sujeito ativo agindo por meio de empresa que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia, ou, mesmo atuando como pessoa natural, exerça a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração dos ativos.
O art. 171-A se apresenta como norma penal em branco, que deve ser complementada pelos conceitos legais de ativos virtuais e de valores mobiliários.
a) Ativos virtuais
A definição de ativos virtuais nos é dada pela própria Lei 14.478/22:
“Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento (…).”
A denominação “ativo virtual” é um gênero ao qual se atrelam algumas espécies. As criptomoedas, como Bitcoin, Ethereum, XRP, entre outras, são exemplos comuns de ativos virtuais.
A própria Lei 14.478/22 elenca também o que não pode ser considerado ativo virtual:
a) moeda nacional e moedas estrangeiras.
b) moeda eletrônica, que não se confunde com a criptomoeda. A moeda eletrônica é definida na Lei 12.865/13 como recurso armazenado em dispositivo ou sistema eletrônico que permite ao usuário final efetuar transação de pagamento (art. 6º, inc. VI). A criptomoeda, como vimos, é descentralizada, emitida e negociada em rede própria. A moeda eletrônica representa recursos em reais mantidos digitalmente. Nesse caso, há supervisão do Banco Central, que deve autorizar a operação do emissor.
c) instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade. Milhas aéreas e bônus em cartões de crédito, portanto, não são ativos virtuais.
d) representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.
b) Valores mobiliários
O mercado de valores mobiliários é disciplinado na Lei 6.385/76.[1] De acordo com o art. 2º, inserem-se nessa categoria:
a) ações, debêntures e bônus de subscrição;
b) cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos na alínea anterior;
c) certificados de depósito de valores mobiliários;
d) cédulas de debêntures;
e) cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
f) notas comerciais (espécie de título de crédito não conversível em ações, de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, emitido exclusivamente sob a forma escritural por meio de instituições autorizadas a prestar o serviço de escrituração pela Comissão de Valores Mobiliários – art. 45 da Lei 14.195/21);
g) contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
h) outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
i) quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
Também são considerados valores mobiliários os certificados de recebíveis imobiliários (CRI) quando ofertados publicamente ou admitidos à negociação em mercado regulamentado de valores mobiliários (art. 20, § 1º, da Lei 14.430/22).
Não são considerados valores mobiliários, por outro lado, os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal e os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures, inseridas entre os incisos do art. 2º da Lei 6.385/76.
c) Ativos financeiros
O crime também pode ocorrer quando a conduta recai em “quaisquer outros ativos financeiros”. O legislador insere um elemento normativo que encerra o tipo penal de forma genérica, permitindo ao intérprete encontrar outros ativos que geram um retorno para o investidor, seja uma pessoa física ou uma empresa. Trata-se de algo abrangente em que se inserem moedas, depósitos bancários, títulos públicos, dentre outros que não se incluam nas definições específicas já mencionadas.
Títulos de crédito são abrangidos pelo tipo penal apenas quando tratados como ativos financeiros ou valores mobiliários. Um exemplo é a já citada nota comercial. Também são exemplos o Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e o Warrant Agropecuário (WA), negociados nos mercados de bolsa e de balcão como ativos financeiros (art. 16 da Lei 11.076/04). Certificados de depósito bancário (CDB), letras de crédito do agronegócio (LCA), letras de crédito imobiliário (LCI) também são títulos de crédito considerados ativos financeiros.
Aplicando-se o mesmo raciocínio que prevalece no crime de estelionato, a fraude bilateral (má-fé do agente e da vítima) não exclui o crime. O tipo não faz qualquer referência à boa-fé da vítima (esta não aparece como elementar do tipo). Se o ofendido se deixou enganar pelo engodo de outrem, ainda que movido por ganância, nem por isso se apaga a conduta criminosa.
É possível que a fraude tipificada no art. 171-A ocorra no mesmo contexto de crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/86):
Nesses casos, é preciso analisar se entre as condutas existe a relação entre crime-meio e crime-fim. Se a infração contra o sistema financeiro nacional é apenas um meio para o cometimento do crime patrimonial, é possível cogitar a consunção. Se, no entanto, as condutas contra o sistema financeiro constituem uma verdadeira operação contínua paralela à prática de fraudes, impõe-se o concurso de crimes. Seguramente, a complexidade e a sofisticação da maior parte dos esquemas fraudulentos que passam pelas condutas tipificadas na Lei 7.492/86 dificilmente permitem a simples absorção de um crime por outro.
Há uma observação importante a respeito do art. 4º da Lei 7.492/86. Se, como vimos anteriormente, as condutas do art. 171-A pressupõem uma espécie de atividade dedicada à gestão financeira, somos obrigados a concluir que esse crime é especial em relação à gestão fraudulenta tipificada no art. 4º da Lei 7.492/86. De fato, essa característica “profissional” e a possibilidade de que a fraude do art. 171-A atinja quaisquer ativos financeiros provocam um conflito com o tipo penal da gestão fraudulenta de instituição financeira, que incide apenas em situações que não envolvam fraudes com ativos financeiros. O gestor que dissimula os resultados de uma instituição financeira para encobrir prejuízos pratica a gestão fraudulenta da Lei 7.492/86; o que induz alguém em erro ofertando ardilosamente ativos financeiros pratica o crime do art. 171-A. Conclui-se, a propósito, que é possível o concurso entre os dois crimes.
A fraude com a utilização de ativos financeiros também pode se assemelhar ao disposto no art. 2º, inc. IX, da Lei 1.521/51:
“IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (“bola de neve”, “cadeias”, “pichardismo” e quaisquer outros equivalentes)”
O que basicamente diferencia ambos os crimes é a abrangência da conduta. Crime patrimonial, a fraude com a utilização de ativos financeiros deve ter como alvos pessoas determinadas, ao passo que a conduta do crime contra a economia popular tem uma característica difusa, com potencial para atingir número indeterminado de indivíduos.
Outra questão de relevante interesse prático é a competência para julgamento. Em diversos conflitos de competência envolvendo fraudes com criptomoedas, o STJ tem decidido que se a conduta fraudulenta envolve exclusivamente ativos que não são regulamentados e fiscalizados por órgãos da União como o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários, a competência é da Justiça Estadual. Mas se a fraude inclui outros ativos sobre os quais haja interesse da União, a Justiça Federal é competente para julgá-la (CC 187.976 / RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 10/08/2022).
A partir da edição da Lei 14.478/22, a tendência deve ser a fixação da competência na Justiça Federal. Isso porque as características desse crime (atividade dedicada à gestão financeira) impõem que o sujeito ativo ao menos se organize na forma de uma instituição financeira, ainda que informalmente. Não obstante a fraude com a utilização de ativos tenha sido inserida entre os crimes patrimoniais, a constituição do tipo penal nos leva a concluir que o patrimônio é tutelado juntamente com o sistema financeiro, que sem dúvida é vulnerável a atos fraudulentos cometidos na gestão de carteiras e na intermediação de operações de quaisquer ativos financeiros.[2] É patente o interesse da União nesses casos, inclusive no tocante aos ativos virtuais, tanto que a Lei 14.478/22 dispõe que as prestadoras de serviços desses ativos somente poderão operar mediante prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública federal. Ainda que não seja possível sustentar a existência de um efetivo controle de ativos como as criptomoedas, quando se trata de entidades ou indivíduos que lidam com a gestão de patrimônio o interesse federal é tão presente quanto na operação de instituições financeiras tradicionais.
VOLUNTARIEDADE
É o dolo, consistente na vontade consciente de praticar uma das condutas típicas. Além disso, há um elemento subjetivo específico: a finalidade de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio. Nota-se que a conduta distintiva do estelionato se transforma, na fraude com ativos financeiros, em finalidade especial.
Não se admite a forma culposa.
CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
O crime se consuma no momento em que o agente organiza, gere, oferta, distribui carteiras ou intermedeia operações envolvendo ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros.
O crime é formal. Diferentemente do que ocorre no estelionato, crime de duplo resultado que se consuma após a efetiva obtenção de vantagem indevida correspondente a um prejuízo para a vítima, a fraude com ativos financeiros dispensa a vantagem e a correlata lesão patrimonial. Isso porque, como já adiantamos no item anterior, neste crime a obtenção da vantagem é um elemento que anima o agente, não uma parte da conduta. Basta a operação fraudulenta para que o crime se consume, independentemente da obtenção de lucro e da provocação de prejuízos.
A tentativa é teoricamente possível, mas, a depender da extensão conferida à conduta de organizar operações fraudulentas, pode ser difícil na prática. Isso porque organizar a operação pode consistir, por exemplo, em coordená-la já em andamento, como também em planejar seu início mediante a elaboração de prospectos, anúncios, contratos ou páginas na internet. Esses atos, que ordinariamente seriam tidos como preparatórios, podem se tornar executórios e levar diretamente à consumação. Nesse contexto, a fraude com a utilização de ativos financeiros se tornaria um crime de atentado.
[1]. O art. 1º, parágrafo único, da Lei 14.478/22 dispõe que essa lei não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385/76. Essa ressalva é feita para evitar conflitos entre as regulamentações dos mercados de ativos virtuais e de valores mobiliários. Para a complementação do tipo penal, no entanto, é indispensável invocar as disposições da Lei 6.385/76, que trata extensamente sobre o tema e elenca diversos valores mobiliários sujeitos ao seu regime. Afastar essa lei da complementação do tipo reduziria injustificavelmente sua eficácia.
[2]. Não podemos esquecer que a Constituição Federal, no art. 109, inc. VI, dispõe que compete aos juízes federais processar e julgar “os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira”.