Revogação do Estatuto do Torcedor e a continuidade típico-normativa
A Lei n. 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte) transportou todos os tipos penais previstos no antigo Estatuto do Torcedor para seu bojo. Contudo, o novel diploma adicionou outros verbos nucleares e condutas ilícitas ao conjunto anteriormente firmado.
Por exemplo, no tocante aos “crimes contra a paz do esporte”, o art. 201 replicou a estrutura tipológica do art. 41-B do revogado Estatuto do Torcedor, mas também promoveu o alargamento da incidência penal para outros contextos de invasão ilícita, a exemplo do local restrito aos árbitros e seus auxiliares (como o VAR), nos respectivos eventos esportivos.
Também foi acrescido uma nova figura equiparada no inciso III, do art. 201 do novo diploma, qual seja, “participar de briga de torcida”.
No tocante aos Crimes Contra Incerteza do Resultado Esportivo (arts. 198 a 200) houve a continuidade normativo-típica, sendo reproduzidos os preceitos primários e secundários já descritos no antigo Estatuto do Torcedor. Da mesma forma ocorreu com os Crimes na Relação de Consumo em Eventos Esportivos (arts. 166 e 167).
Exceções ao espectro da nova Lei
Existem claras exceções à incidência da Lei n. 14.597/2023, principalmente diante do conceito de “exporte”. É que, de acordo com o artigo inaugural do novo diploma, estão abrangidos no seu aspecto as atividades esportivas de natureza predominantemente física.
A nosso ver, portanto, ficam excluídos o poker, o xadrez, os torneios de jogos eletrônicos etc.. Veja parágrafo 1º do artigo 1º da Lei n. 14.597/2023:
Art. 1,º. § 1º Entende-se por esporte toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo a prática de atividades recreativas, a promoção da saúde, o alto rendimento esportivo ou o entretenimento.
Dos bens jurídicos protegidos pela Lei Geral do Esporte
O principal bem jurídico protegido na presente lei é a autonomia esportiva, do qual derivam todos os demais interesses tutelados (ordem econômica esportiva e a integridade esportiva e a cultura da paz no esporte, por exemplo).
Afinal, a autonomia da organização esportiva só é alcançada quando se evitam danosas interferências externas (inclusive aquelas de natureza econômica). Referidas interferências, verdadeiras “ervas daninhas”, colocam em perigo a lisura das competições, a necessária incerteza dos resultados, a integridade do esporte e a harmonia sistêmica. E essa inteligência deriva da leitura atenta do artigo 26 do diploma em comento, o qual menciona que:
a autonomia é atributo da organização esportiva em todo o mundo, na forma disposta na Carta Olímpica, e limita a atuação do Estado, conforme reconhecido pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e inscrito na Constituição Federal, e visa a assegurar que não haja interferência externa indevida que ameace a garantia da incerteza do resultado esportivo, a integridade do esporte e a harmonia do sistema transnacional denominado Lex Sportiva.
Outros dispositivos da Lei, a exemplo do artigo 58, reforçam essa interpretação. O caráter derivativo da ordem econômica esportiva, comosubprincípio da autonomia, é presumido pela obrigação dos gestores da área do esporte na manutenção da integridade da prática e das competições esportivas, os quais já haviam sido mencionados como vetores da dita autonomia no art. 26. Vejamos:
Art. 58. Para a promoção e a manutenção da higidez da ordem econômica esportiva, os gestores da área do esporte submetem-se a regras de gestão corporativa, de conformidade legal e regulatória, de transparência e de manutenção da integridade da prática e das competições esportivas.
A autonomia esportiva como bem jurídico transnacional
Definida a autonomia da organização esportiva como o principal bem jurídico da Lei Geral do Esporte, cabe-nos avançar um pouco mais nessa especificação.
É que acreditamos, inclusive, ser ele um bem jurídico de tutela internacional, ou seja, os que são de interesse de uma coletividade internacional.
O fato de o princípio da autonomia esportiva não estar inserido tecnicamente em um tratado ou convenção, não desnatura a sua essência como movimento síncrono e organizado pela comunidade internacional no sentido de estabelecerem um conjunto homogêneo de regras e padrões protetivos à prática esportiva.
Sem isso, dificilmente teríamos olimpíadas e torneios internacionais. Outrossim, o esporte seria campo fértil para que governos totalitários, utilizando-se das competições (por meio de normas internas coercitivas), tentarem impor desejos e caprichos que vão além do amor à prática esportiva.
Daí porque, ainda que a Resolução A/69/L.5 da AGNU (autonomia esportiva) não tenha sido formalmente ratificada pelo Brasil, foi ela pela ONU aprovada e, por isso, merece acatamento. Até porque o Brasil internalizou ao menos trecho substantivo de tal princípio do artigo 217 da Constituição Federal.
Por isso é que, a nosso ver, pouco importa se tal princípio se faz presente expressamente em tratado, resolução ou convenção. O referido bem jurídico é transnacional.
O conceito e a essência do princípio da autonomia esportiva
Não se compreenda o princípio da autonomia esportiva como uma tentativa de impor regras internacionais aos países. Na verdade, é o oposto. Trata-se de um mandamento para que as corporações internas, públicas ou privadas, não interfiram, por meio de investidas políticas, mercadológicas ou econômicas, no esporte. É o saudável laissez-faire esportivo.
Ou seja, o mandamento é para que haja a proteção da atividade esportiva em face das ingerências que possam afetar um padrão compatível entre todos os países. Por isso, difícil compreender que isso poderia ser interpretado como uma invasão à capacidade de cada território se autogerir.
E o STF – na ADI 2937-2003 – já teve a oportunidade de analisar o revogado Estatuto do Torcedor e se manifestar se ele ofendia a tal pilar de autonomia esportiva. E decidiu o Colendo tribunal que o Estatuto do Torcedor era norma de caráter geral, que impunha limitações válidas à autonomia relativa das entidades de desporto, sem lesionar direitos e garantias individuais.
Mais recentemente, o Poder Executivo, ao se defrontar com a lei em apreço, vetou alguns dos dispositivos sob o argumento de que não podia sofrer limitações em sua capacidade de disciplinar práticas esportivas. Essa é, certamente, uma contradição. É quase o mesmo que promover limitações à liberdade de imprensa por meio de uma lei, mas nela conter dispositivos exaltando conceitos programáticos de garantia da liberdade de fala de manifestação de tais profissionais. Uma leitura superficial da mensagem de veto n. 273, de 14/06/2023, permite alcançar facilmente tal conclusão contraditória[1].
Da natureza da ação penal
No Estatuto do Torcedor, todas as ações penais dos crimes que lá estavam eram de natureza pública incondicionada. Na Lei Geral do Esporte, a regra está mantida, mas admite exceções. Vejamos o que anuncia seu art. 172.
Art. 172. Nos crimes previstos nesta Seção, somente se procede mediante representação da organização esportiva titular dos direitos violados, com exceção do crime previsto no art. 169 desta Lei, em que a ação é pública incondicionada.
Numa leitura afoita pode parecer que o artigo 172 da Lei Geral do Esporte prevê a ação penal pública condicionada como regra. Contudo, sua aplicação só se dá em face dos crimes elencados na seção III (Dos Crimes contra a Propriedade Intelectual das Organizações Esportivas). Os demais crimes elencados nas outras seções sujeitam-se à ação penal é pública incondicionada (Crime de Corrupção Privada no Esporte, os Crimes na Relação de Consumo em Eventos Esportivos, os Crimes contra a Incerteza do Resultado Esportivo e os Crimes contra a Paz no Esporte).
Se a intenção era exigir representação nos crimes de menor potencial ofensivo previstos na Lei, chama a atenção a falta de coerência. É que o crime do art. 201 é também crime de menor potencial ofensivo (a exemplo dos artigos 168, 170 e 171), mas é perseguido mediante ação penal pública incondicionada.
Existem outras contradições na Lei acerca da natureza das respectivas ações penais. Por exemplo, ao mesmo tempo que o legislador menciona que os crimes contra a ordem econômica esportiva são de relevante interesse social, conferem a quase todos os crimes cravados com tal rótulo, a ação penal pública condicionada (artigos 168, 170 e 171). Vejamos:
Art. 57. A ordem econômica esportiva visa a assegurar as relações sociais oriundas de atividades esportivas, e cabe ao poder público zelar pela sua higidez, em razão do relevante interesse social.
Do concurso de infrações penais
Nos crimes contra a ordem econômico esportiva percebe-se que a condição de procedibilidade deve ser apresentada pela organização esportiva titular dos direitos violados.
Art. 172. Nos crimes previstos nesta Seção, somente se procede mediante representação da organização esportiva titular dos direitos violados, com exceção do crime previsto no art. 169 desta Lei, em que a ação é pública incondicionada.
E o legislador decidiu fazê-lo mesmo sabendo que algumas dessas práticas criminosas podem afetar consumidores; a exemplo da venda de ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete (artigo 166), e do marketing de emboscada por intrusão (art. 171) e da emboscada por associação (art. 170), todos têm por finalidade a obtenção de vantagem econômica.
Entender essa lógica é importante pois, a nosso ver, esse é um franco indicativo de que há que se aplicar o concurso formal ou material para cada uma das infrações penais perpetradas em desfavor dos outros bens jurídicos afetados (patrimônio, integridade física etc.).
Nessa esteira, o art. 201 do referido diploma comporta semelhante interpretação. Tendo em vista a especificidade do bem jurídico protegido pelo presente tipo penal (a paz esportiva), é razoável a possibilidade do concurso formal ou material de crimes, caso os agentes – no contexto da promoção do tumulto, da prática ou incitação da violência – venham a consumar outros crimes contra as pessoas afetadas pela conduta em comento, como lesão corporal, homicídio, injúria racial, etc..
Do racismo esportivo e da violência contra a mulher
Por fim, o § 7° do artigo 201 traz mais uma nova causa de aumento de pena (ao dispor que as penas se aplicam em dobro), quando se tratar de casos de racismo no esporte brasileiro ou de infrações cometidas contra as mulheres. No tocante as situações de racismo essa causa de aumento de pena terá incidência sem prejuízo da incidência dos crimes específicos descritos na Lei 7.716/89.
Art. 201. § 7º As penalidades previstas neste artigo serão aplicadas em dobro quando se tratar de casos de racismo no esporte brasileiro ou de infrações cometidas contra as mulheres.
Note que, nesse caso, não se trata de crime de injúria racista. Se esta ocorrer em eventos esportivos, há que se incidir os preceitos da Lei n. 14.532/2023, que trata da injúria racista recreativa, em concurso com o artigo 201. Neste caso, parece óbvio que a referida causa de aumento de pena não deve incidir sob pena de se conferir hiperbólico desvalor da conduta em face da mesma circunstância.
No que tange às “infrações cometidas contra as mulheres”, pensamos se referir a situações alheias à Lei Maria da Penha. Aqui, como seria necessária interpretação extensiva, não há como se aplicar tal majorante no caso de travestis, transexuais e demais variações de gênero, por falta de tipicidade.
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-0273-23.htm