Sumário • 1. O reconhecimento da pessoa com deficiência pelo viés dos direitos humanos; 2. Os direitos humanos e o princípio do “pro homine”; 3. Da exepcionalidade da curatela; Conclusão; Bibliografia.
1. O RECONHECIMENTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA PELO VIÉS
DOS DIREITOS HUMANOS
Como é cediço, a construção histórica dos direitos humanos não é linear, uma vez que, reflete a história de lutas pela promoção, proteção e efetivação da dignidade da pessoa humana. Na verdade, nascem do jusnaturalismo e estão intrinsecamente relacionados a condição de pessoa humana. Ademais, os direitos humanos estão em constante criação e crescimento, sempre visando assegurar de forma mais plena e efetiva a dignidade da pessoa humana.
Por esse motivo Hannah Arendt afirmava que os “direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução.”. No mais, como afirma Joaquín Herrera Flores os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana.
A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de diversos instrumentos internacionais de proteção. Ademais, a Declaração Universal de 1948 conferiu lastro axiológico e carga valorativa aos direitos humanos.
A Organização dos Estados Americanos, ao seu tempo, aprovou a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, na Colômbia em 1948. Trata-se do primeiro documento internacional de direitos humanos de caráter geral. Posteriormente, em 1961 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos começou a realizar visitas in loco a fim de observar a situação geral dos Direitos da Pessoa Humana em um Estado-Parte.
Em 1969 foi aprovada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que entrou em vigor em 1978. Por fim, vieram os Tratados específicos de Direitos Humanos, em especial a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência (1999).
Importante destacar que os Direitos Humanos devem ser aplicados a todos, sem qualquer distinção, eis que o único atributo necessário é ser pessoa. Destarte, a diferença e as particularidades de cada ser humano na perspectiva individual e personalíssima devem ser respeitadas, eis que as pessoas não são todas iguais, seja em igualdade de condições ou como seres humanos propriamente ditos.
A proteção das pessoas com deficiência reflete a denominada especificação do sujeito de Direitos, em que segundo Norberto Bobbio “o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade”.
Deste modo, impor um modelo padrão, ou excluir parcela da sociedade do acesso aos direitos mais básicos, em razão da deficiência, contraria toda a máxima dos Direitos Humanos que busca um modelo de justiça mais igualitário, inclusivo e atento à dignidade de todos.
Os Instrumentos internacionais de proteção da pessoa com deficiência estabelecem parâmetros mínimos de proteção a serem seguidos pelos Estados-partes. Isto porque, conforme preceitua Flavia Piovesan “ não se trará apenas de proteger os direitos de uma pessoa enquanto tal, por sua dignidade inerente, mas de garantir um tratamento diferenciado e especial a todo um grupo de pessoas em iguais condições, próprias e especificas, que leve em consideração suas peculiaridades e suas necessidades essenciais”.
A análise dos parâmetros de proteção deve ter uma visão ampliativa e maximizada de Direitos, a fim de promover, proteger e efetivar na integralidade os direitos das pessoas com deficiência.
Na perspectiva onusiana, vale destacar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (“CDPD”) e seu protocolo facultativo que foram incorporados ao ordenamento nacional pelo rito do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição da República, passando a compor, assim, o bloco de constitucionalidade. No artigo 4.b e 4.c, a CDPD impõe ao Estado brasileiro as obrigações gerais de: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção; b) Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência. ”
Destaca-se o artigo 126 da referida Convenção que apresenta um novo paradigma instituído no ordenamento jurídico da presunção de capacidade jurídica de todas as pessoas com deficiência. Isto é, a Convenção reconhece que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Ademais, ressalta que os Estados devem assegurar salvaguardas apropriadas para prevenir abusos e assegurar que o exercício da capacidade legal das pessoas respeito os direitos, a vontade e as preferências da pessoa.
Em relação ao artigo 12 necessária a análise da Observação Geral nº 1 do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, legítimo intérprete da Convenção que o criou, a quem o Brasil está submetido, que determina que as práticas de substituição da vontade que permitem tratamentos forçados sejam abolidas (item 7).
Isto porque, a negação do direito de escolha priva a pessoa com deficiência de direitos fundamentais o que evidencia o caráter discriminatório que é vedado pela sistemática dos direitos humanos.
Em relação ao sistema interamericano, vale destacar que a única menção nos documentos gerais de Direitos Humanos é a do Protocolo de San Salvador, eis que a Convenção Americana de Direitos Humanos não trata especificamente das pessoas com deficiência.
O Protocolo, ao seu tempo, assegura um artigo específico, de modo que no artigo 18 assegura a necessidade do Estado adotar medidas para assegurar acesso aos direitos humanos.
A Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a pessoa com deficiência adotada em Guatemala no ano de 1999, apesar de reafirmar que as pessoas com deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que outras pessoas, inclusive o direito de não ser submetida a discriminação com base na deficiência, prevê um conceito de deficiência limitado, eis que restringe a deficiência a uma restrição física, mental ou sensorial. E é certo que esse rol deve ser extensivo.
Sidney Madruga afirma que “a deficiência, do ponto de vista social, implica admitir que o ‘problema não está no indivíduo e sim no próprio comportamento estigmatizante em relação àqueles taxados de ‘diferentes’ e, por este motivo, inferiorizados e discriminados. Significa que o ‘problema’ tem raízes sociais, econômicas, culturais e históricas, e sua resolução passa por uma sociedade acessível a todos os seus membros, sem distinção. Significa dizer que a deficiência é uma questão de direitos humanos”.
Ademais, necessário se recordar do Caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil, primeiro caso que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e primeiro caso de pessoa com deficiência perante a corte.
Neste julgamento, no voto emitido pelo juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, foi reconhecida a proteção especial que requerem as pessoas vulneráveis, particularmente as pessoas com deficiência mental., in verbis: “As obrigações de proteção, – ainda mais em uma situação de alta vulnerabilidade da vítima como a presente, – revestem-se de caráter erga omnes (par. 85), abarcando também as relações interindividuais, tendo presente o dever do Estado de prevenção e de devida diligência, sobretudo em relação a pessoas que se encontram sobre seus cuidados. A saúde pública é um bem público, não uma mercadoria. Em meus numerosos escritos e Votos no seio desta Corte, venho expressando há tantos anos meu entendimento no sentido de que todas as obrigações convencionais de proteção se revestem de um caráter erga omnes. É-me particularmente difícil escapar da impressão que me assalta no sentido de que em todo esse tempo talvez tenha eu escrito e continue escrevendo para os pássaros”.
Nesta mesma linha, o Juiz Sérgio Garcia Ramirez: “2. Os direitos e as garantias universais, que têm caráter básico e foram pensados para a generalidade das pessoas, devem ser complementados, afinados, precisados com direitos e garantias que operam junto a indivíduos pertencentes a grupos, setores ou comunidades específicos, isto é, que adquirem sentido para a particularidade de algumas ou muitas pessoas, mas não todas. Isto permite ver, por detrás do desenho genérico do ser humano, membro de uma sociedade uniforme – que pode alçar-se na abstração a partir de sujeitos homogêneos –, o caso ou os casos de seres humanos de carne e osso, com perfil característico e exigências diferenciadas. 3. Certamente é tarefa do Estado – e isto se acha em sua origem e justificação – preservar os direitos de todas as pessoas sujeitas a sua jurisdição, conceito de amplo alcance, que naturalmente transcende as conotações territoriais, observando para isso as condutas ativas ou omissivas que melhor correspondam a essa tutela para favorecer o gozo e exercício dos direitos. Nesse sentido, o Estado deve evitar escrupulosamente a desigualdade e a discriminação e proporcionar o amparo universal das pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, sem mirar para condições individuais ou de grupo que possam subtrai-las da proteção geral ou impor-lhes – de jure ou de facto – ônus adicionais ou desproteções específicas”.
Deste modo, hoje, baseado na concepção contemporânea de Direitos Humanos, podemos afirmar sob a ótica da visão humanista que o conceito de deficiência esta dissociado do modelo médico, em que o diagnóstico de uma doença acarreta automaticamente na incapacidade daquela pessoa e, consequentemente, na indispensabilidade da interdição. Ademais, necessário que as particularidades individuais sejam consideradas, em especial diante da heterogeneidade das pessoas.
Observa-se, ademais, que a dignidade da pessoa humana é reconhecida como fundamento da República Federativa do Brasil, (artigo1º, III, CF/88), de modo que se faz necessário a proteção, promoção e efetivação dos direitos da pessoa com deficiência, sem distinção de qualquer natureza.
Partindo-se, portanto, dessa visão humanista, a deficiência não pode ser justificada apenas pelas limitações pessoais decorrentes de uma patologia, uma vez que essa visão reducionista é discriminatória e atenta contra o objetivo constitucional da construção de uma sociedade mais justa e solidária.
A busca por diagnósticos exclusivamente médicos não são suficientes para individualizar as diversas possibilidade de desempenho de cada pessoa, uma vez que limitam as pessoas em razão de um diagnóstico médico indicado pela Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)10, afastando-as da análise plena da pessoa humana. Isto é, não se atentam a independência ou autonomia individual, rotulando-as em razão da deficiência.
Por conta disso, imperioso a adoção de outros critérios (sociais, comportamentais, psicológicos, assistenciais, etc.) para aferição da incapacidade, especialmente levando-se em consideração aspectos da vida diária da pessoa, tais como (im) possibilidade de realização das atividades do cotidiano, se são necessários auxílios de terceiros, se há capacidade de autocuidado, ou ainda se há acesso a bens ou valores.
Assim, sob a ótica internacional dos Direitos Humanos, pode-se afirmar que o novo modelo de pessoa com deficiência é o social e não médico, coadunando-se com o preâmbulo da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência que reconhece que é a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.
2. OS DIREITOS HUMANOS E O PRINCÍPIO DO “PRO HOMINE”
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção desses direitos. A Declaração de 1948, em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional, formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos. O Sistema Global de Proteção, também denominado Sistema Onu, assim como o Sistema Interamericano são complementares.
No mais, a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948 quando, em seu § 5º, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados”.
Do ponto de vista interno, sabe-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (ou Lei Brasileira de inclusão da Pessoa com Deficiência), Lei Federal nº 13.146/2015, tem como base axiológica a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York) e o seu Protocolo Facultativo.
A Convenção de Nova York, assinada nos Estados Unidos, em 30 de março de 2007, foi aprovada e promulgada pelo procedimento previsto no artigo 5º, § 3º da CF/88, passando a compor o bloco de constitucionalidade.
Como consequência, a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é parte formal da Constituição brasileira, já que aprovada mediante a o procedimento previsto no artigo 5º, § 3º, da Lei Maior, consistindo, ao lado de seu Protocolo Facultativo, nos únicos instrumentos até hoje aprovados com utilização dessa cláusula de abertura formal da Constituição Federal.
Deste modo, o ordenamento jurídico brasileiro deverá se submeter aos direitos, princípios e regras previstos, tanto no Estatuto da Pessoa com Deficiência como na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, esta última com equivalência de emenda à Constituição, sob pena de violar o direito das pessoas com deficiência, pelo viés dos Direitos Humanos.
Destarte na ótica do Direitos Humanos, a norma mais benéfica e protetiva em favor da pessoa humana é que prevalece. Isto é, em eventual conflito aparente de normas, deverá ser aplicada aquela que melhor proteja o ser humano, independentemente do diploma legal em que ela esteja inserida (ex: Constituição Federal, Lei, Tratado Internacional, etc.) eis que a primazia é a pessoa humana: pro homin1.
Isto porque, a máxima efetividade e a consagração da dignidade da pessoa humana são os alicerces do Direito Internacional dos Direitos Humanos. De modo que diante de omissão ou atuação insuficiente, o Estado poderá ser compelido a dar integral cumprimento aos direitos consagrados nos Diplomas Internacionais.
Na lição de André de Carvalho Ramos: “O critério da máxima efetividade exige que a interpretação de determinado direito conduza ao maior proveito do seu titular, com o menor sacrifício imposto aos titulares dos demais direitos em colisão. A máxima efetividade dos direitos humanos conduz à aplicabilidade integral destes direitos, uma vez que todos seus comandos são vinculantes. Também implica a aplicabilidade direta, pela qual os direitos humanos previstos na Constituição e nos tratados podem incidir diretamente nos casos concretos Finalmente, a máxima efetividade conduz à aplicabilidade imediata, que prevê que os direitos humanos incidem nos casos concretos, sem qualquer lapso temporal. Já o critério da interpretação pro homine exige que a interpretação dos direitos humanos seja sempre aquela mais favorável ao indivíduo. Grosso modo, a interpretação pro homine implica reconhecer a superioridade das normas de direitos humanos, e, em sua interpretação ao caso concreto, na exigência da adoção da interpretação que dê posição mais favorável ao indivíduo. […] Na mesma linha do critério pro homine, há o uso do princípio da prevalência ou primazia da norma mais favorável ao indivíduo, que defende a escolha, no caso de conflito de normas (quer nacionais ou internacionais) daquela que seja mais benéfica ao indivíduo. Por esse critério, não importa a origem (pode ser uma norma internacional ou nacional), mas sim o resultado: o benefício ao indivíduo. Assim, seria novamente cumprido o ideal pro homine das normas de direitos humanos”
Ademais, quando se fala em direitos Humanos é vedada a regressividade dos direitos ou a “proibição do retrocesso”, de forma que as garantias alcançadas não podem retroagir em caráter desfavorável à pessoa humana. Logo, na promoção, proteção e efetivação de direitos, deve se buscar sempre a melhor eficácia possível e não a interpretação que reduza ou minimize a efetivação de direitos.
Assim, devemos interpretar os parâmetros internacionais como base mínima de proteção, promoção e efetivação de direitos. De modo que se a Convenção Interamericana apresenta um conceito de deficiência menos ampliativo que a Convenção de Nova York, devemos aplicar a Convenção de Nova York.
Nota-se que no artigo 12.5 a Convenção assegura que os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, bem como que assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens.
Isto porque, a presunção de capacidade das pessoas deve incluir as pessoas com deficiência, sob risco de ser prática discriminatória que atenta contra a Convenção e a sistemática dos Direitos Humanos.
3. DA EXEPCIONALIDADE DA CURATELA
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, criado com o advento da Lei Brasileira de inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei Federal nº 13.146/2015, tem como base axiológica a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York) e o Protocolo Facultativo.
Observa-se, logo, nos primeiros artigos (capítulo II, artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência) que a deficiência não afeta a os aspectos existenciais da vida da pessoa, tais como direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à saúde, à educação, ao trabalho, de modo que poderá casar-se, constituir união ao estável, exercer o direito à família e a guarda, bem como diversos outros direitos. Tal previsão legal assegura uma importante distinção legal, qual seja, que o Estatuto dissociou a pessoa com deficiência da incapacidade absoluta, ou seja, poderão existir pessoas com deficiência com curatela e pessoas sem curatela, ainda que com deficiência.
Logo, não é o fato da pessoa apresentar um impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, possa obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, que ela deverá ser automaticamente considerada incapaz.
Sobre o tema, a lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald nos esclarece que, a partir de agora, a incapacidade deve ser vista como a limitação ao livre exercício da plena aptidão para praticar atos jurídicos, como a impossibilidade de externar uma vontade de jeito esclarecido e autônomo, não necessariamente decorrente de uma deficiência. E concluem: Não se pode, contudo, estabelecer uma correlação implicacional entre incapacidade jurídica e deficiência (física ou psíquica), como outrora se pretendeu. Efetivamente, uma pessoa com deficiência não é, por esse simples fato, incapaz juridicamente de manifestar suas vontades. E, na mesma ordem de ideias, nem todo incapaz é uma pessoa com deficiência, podendo sua limitação decorrer de outro motivo. (…) Com efeito, o conceito de deficiência (relembre-se: centrado na existência de uma menos valia de longo prazo, física, psíquica ou sensorial, independentemente de sua gradação) não tangencia, sequer longinquamente, uma incapacidade para a vida civil.
A curatela passou a ser medida extraordinária, que somente deve ser determinada quando estritamente necessária (§§ 1º e 3º do art. 84 da referida lei), bem como não deve mais abranger todos os atos da vida civil, mas apenas os atos de natureza negocial e patrimonial (art. 85, do mesmo diploma).
Os artigos 84 e 85 de referido diploma legal ressaltam a natureza excepcionalíssima da curatela das pessoas com deficiência, a qual “afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”.
Nota-se que o § 3ºdo artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, aduz que: “A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível”.
Deste modo, atentando-se a sistema internacional dos direitos Humanos, em especial a Convenção de Nova York, observa-se que a interdição é medida extrema, de modo que não é possível automaticamente condicioná-la ara requerimento e obtenção de benefício previdenciário.
É esta, inclusive, a posição legal do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que prevê no artigo 110-A, da Lei 8.213/91 a inexigibilidade do termo de curatela para a obtenção dos benefícios previdenciários, in verbis: “No ato de requerimento de benefícios operacionalizados pelo INSS, não será exigida apresentação de termo de curatela de titular ou de beneficiário com deficiência, observados os procedimentos a serem estabelecidos em regulamento”.
Portanto, podemos sustentar que com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, qual seja a Lei nº 13.146/2015, pessoas com deficiência mental ou intelectual não podem ser automaticamente consideradas absolutamente incapazes, corroborando com a sistemática internacional dos direitos humanos das pessoas com deficiência.
Isto porque, percebe-se nitidamente que o objetivo da Convenção de Nova York é garantir igualdade de condições, mas entendendo que cada pessoa tem suas habilidades e possibilidades que devem ser respeitadas. Tal previsão também é respeitada pelo Protocolo de San Salvador.
Notório ainda constatar que no dia 3 de Dezembro de 2018, a Organização das Nações Unidas – ONU apresentou o primeiro relatório sobre o desenvolvimento organizado por e para as pessoas com deficiência que representam cerca de 1 bilhão de habitantes em todo o mundo – 45 milhões somente no Brasil. O relatório analisou estatísticas, leis, políticas e programas e identificou boas práticas; e usou essa evidência para delinear ações recomendadas no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Ademais, incumbe aos Estados, inserir nos planos estratégicos todos os 17 ODS para, segundo o relatório, promover a formulação de ações afirmativas estruturadas, segundo o documento, em quatro frentes: (1) abordar barreiras fundamentais que causam a exclusão de pessoas com deficiência; (2) integração da deficiência na implementação dos ODS; (3) investir no monitoramento e avaliação do progresso em direção aos ODS para pessoas com deficiências; e (4) fortalecer os meios de implementação dos ODS para pessoas com deficiências.
Pode-se afirmar, portanto, que a preocupação com a pessoa com deficiência é pauta internacional e a adoção de mecanismos que visem a plena integração da pessoa com deficiência em sociedade é medida salutar para a preservação de um estado democrático de direito, fundado na dignidade da pessoa humana e signatário de Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Em outras palavras, deve ser conferida a presunção de capacidade para as pessoas com deficiência, de modo que a exigência indiscriminada de interdição atenta contra o sistema internacional de direitos humanos, afrontando a Agenda 2030 da ONU e o compromisso do Estado Brasileiro em adotar todas as medidas necessárias para assegurar inclusão, igualdade e dignidade da pessoa com deficiência.
CONCLUSÃO
A sistemática internacional dos Direitos Humanos reconhece que para haver igualdade substancial necessária a adoção de uma proteção especial das pessoas com deficiência.
Assim, os instrumentos internacionais, sejam ele do Sistema onusiano ou interamericano são complementares, eis que devem visar a máxima efetividade da dignidade da pessoa humana.
Deste modo, por inexistir previsão especifica na Convenção Americana de Direitos Humanos, adota-se o Protocolo de San Salvador, a Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas com deficiência, bem como todo e qualquer parâmetro geral ou especial de proteção, promoção e efetivação dos direitos da pessoa com deficiência.
Do mesmo modo, por ser a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um texto mais atual, mais igualitário e ampliativo, defende-se a plena utilização desse instrumento internacional na defesa da dispensa da interdição, especialmente por prever dispositivo especifico sobre a interdição.
No mais, vale mencionar que a referida convenção foi internalizada no Direito brasileiro na forma do artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, e, pois, norma de equivalência de emenda constitucional;
Destarte, dispõe expressamente, em seu artigo 12, que as pessoas com deficiência deverão ter reconhecida a plena capacidade legal, em igualdade de condições para com as demais pessoas, não sendo possível, dessa forma, unicamente em razão da deficiência, reconhecer a incapacidade legal de alguém.
Também por expressa determinação do art. 12 da Convenção (e, dessa forma, por determinação constitucional) deverá o Estado adotar as medidas apropriadas para garantir que as pessoas com deficiência possam exercer a capacidade legal, incluindo salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, de forma a propiciar o respeito aos direitos, vontades e preferencias das pessoas com deficiência.
Atendendo a esse mandamento de equivalência constitucional, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que foi editado em 2015 para regulamentar e especificar os direitos previstos na CDPD, compatibilizando o ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro aos novos ditames constitucionais, reforçou a plena capacidade legal da pessoa com deficiência, de forma a garantir que ninguém seja considerado incapaz apenas em razão da deficiência.
A curatela foi colocada como medida excepcional, com tempo e extensão limitados, a ser adotada no caso de necessidade para salvaguarda dos direitos da pessoa com deficiência, não podendo, assim, ser imposta se ausentes esses pressupostos. Para que seja instituída a curatela, é necessário que se demonstre a necessidade para a salvaguarda dos direitos da pessoa com deficiência.
Vedou a lei, ainda, o condicionamento de emissão de documentos oficiais à curatela (art. 86 do Estatuto da Pessoa com Deficiência), tendo sido inserido o artigo 110-A na Lei nº 8.213/1991 para deixar expresso que não poderá ser exigida curatela como requisito de requerimentos de benefícios operacionalizados pelo INSS, não sendo possível, assim, exigir-se a apresentação de termo de curatela para a concessão do Benefício de Prestação Continuada previsto no artigo 203, V, da Constituição Federal.
Deste modo, o descumprimento do Estatuto da Pessoa com deficiência implica em ofensa não apenas a Convenção de Nova York mas a toda sistemática de promoção, proteção e efetivação dos Direitos Humanos.
A a ausência de efetividade dos direitos enfraquece o sistema garantidor de direitos necessários para assegurar a existência de uma vida digna o que enfraquece o sistema como um tudo e inviabiliza a concretização.
Logo, a imposição da interdição ou ainda a exigência de interdição para levantamento dos valores junto ao INSS pode ensejar na responsabilização do Estado Brasileiro em não propiciar acesso justo as pessoas com deficiência junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social, bem como por impor a pessoa com deficiência obstáculo desarrazoado e desproporcional, internacionalmente dispensado, o que contraria a previsão de igualdade e caracteriza-se como forma de discriminação contra a pessoa com deficiência .
Nesse ponto, atuando em prol da integração e efetivação do direito do acesso à previdência e assistência da pessoa com deficiência, necessário que o Estado Brasileiro reconheça a descompasso com as normativas convencionais, sob pena de ser um violador de Direitos Humanos.
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