Informativo: 686 do STJ – Processo Penal
Resumo: É ilegal a sentença de pronúncia fundamentada exclusivamente em elementos colhidos no inquérito policial.
Comentários:
O rito procedimental do júri é bifásico (ou escalonado), dividindo-se em duas fases: a primeira se inicia com o recebimento da denúncia e se estende até a decisão de pronúncia; a segunda começa na pronúncia e se encerra no julgamento em plenário.
Encerrada a primeira fase do procedimento do Júri – denominada instrução preliminar –, se convencido da materialidade do crime e da existência de indícios de autoria, o juiz pronuncia o réu (art. 413 do CPP).
A materialidade é comprovada por meio do respectivo exame de corpo de delito, desde que, nos termos do art. 158 do CPP, deixe vestígios a infração penal. Ao se satisfazer, de outro lado, com meros indícios de autoria, quis o legislador deixar claro que a sentença de pronúncia encerra um simples juízo de probabilidade no qual se julga admissível a acusação, apta, portanto, a ser conhecida pelo Júri. Por indícios, na lição de Borges da Rosa, “se consideram os fatos conhecidos que, por sua força e precisão, são capazes de determinar uma só e única conclusão: a de que não foi outro se não o indiciado o autor ou cúmplice do fato criminoso” (Processo penal brasileiro, Porto Alegre: Globo, 1942, vol. II, p. 494-5).
Antes da sentença de pronúncia, há uma audiência de instrução, na qual, segundo dispõe o art. 411 do CPP, “proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se o debate”. Essa audiência é a oportunidade para reafirmar, agora em juízo, indícios de autoria que fundamentaram a própria denúncia. Segundo tem decidido o STJ, os indícios que compõem a sentença de pronúncia não podem ser exclusivamente originados do inquérito policial, pois isso anularia a relevância da instrução preliminar e igualaria a sentença de pronúncia à decisão que recebe a denúncia:
“A atual posição do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema admite a pronúncia do acusado com base em indícios derivados do inquérito policial, sem que isso represente afronta ao art. 155 do Código de Processo Penal (HC 547.442/MT, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 15/4/2020).
Assim, na linha dos precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, embora não seja possível sustentar uma condenação com base em prova produzida exclusivamente na fase inquisitorial, não ratificada em juízo, tal entendimento não se aplica à sentença de pronúncia (HC 314.454/SC, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 17/2/2017).
Isso não significa, no entanto, que inexistam decisões mais antigas no sentido de não admitir o juízo positivo de pronúncia sem lastro em prova produzida sob o crivo judicial (HC 341.072/RS, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 29/4/2016 e REsp 1.254.296/RS, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 2/2/2016).
Nesse sentido, em nova orientação, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (HC 180.144/GO, Ministro Celso de Mello, DJe 22/10/2020) enfrentou a questão e decidiu pela impossibilidade do juízo de pronúncia nas condições mencionadas, partindo da premissa de que o Processo Penal se estrutura sobre as garantias e objetiva resguardar do arbítrio estatal o status libertatis do acusado.
O entendimento perfilado pela Suprema Corte parte da ausência de amparo constitucional e legal do princípio do in dubio pro societate no sistema processual penal brasileiro pós constituição de 1988. Em sentido oposto, considerado o assento constitucional do princípio da presunção de inocência, art. 5º, LVII, da Constituição Federal, em todo seu alcance, como norma de tratamento, norma probatória e norma de juízo, incumbe ao órgão acusador comprovar o alegado em todas as fases e procedimentos.
Como meio de concretização, e com o mesmo status de garantia constitucional, o contraditório e a ampla defesa (e no caso do júri de plenitude de defesa) impedem a prolação de sentença de pronúncia com base exclusiva em elementos produzidos no inquérito policial, nos termos do art. 155 do Código de Processo Penal.
De fato, admitir que a sentença de pronúncia se baseie em provas produzidas no inquérito igualaria em densidade à decisão de recebimento de uma denúncia.
O procedimento do jus accusationis, delineado entre os arts. 406 e 421 do Código de Processo Penal, disciplina toda a produção probatória destinada a embasar o deslinde da primeira fase do procedimento. Trata-se de arranjo legal que busca evitar a submissão dos acusados ao Conselho de Sentença de forma temerária, não havendo razão de ser em tais exigências legais, fosse admissível a atividade inquisitorial como suficiente.
É incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito admitir, no bojo do processo penal, a hipótese de que os jurados possam condenar alguém, com base em íntima convicção, em julgamento que sequer deveria ter sido admitido. Os julgamentos proferidos pelo Tribunal do Júri possuem peculiaridades em permanente discussão, até mesmo nos Tribunais Superiores, a respeito da possibilidade de revisão dos julgamentos de mérito, da extensão dessa revisão, o que torna, mais acertado exigir maior rigor na fase de pronúncia” (HC 589.270, j. 23/02/2021).
O STF já decidiu no mesmo sentido:
“O sistema jurídico-constitucional brasileiro não admite nem tolera a possibilidade de prolação de decisão de pronúncia com apoio exclusivo em elementos de informação produzidos, única e unilateralmente, na fase de inquérito policial ou de procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público, sob pena de frontal violação aos postulados fundamentais que asseguram a qualquer acusado o direito ao contraditório e à plenitude de defesa. Doutrina. Precedentes. Os subsídios ministrados pelos procedimentos inquisitivos estatais não bastam, enquanto isoladamente considerados, para legitimar a decisão de pronúncia e a consequente submissão do acusado ao Plenário do Tribunal do Júri. O processo penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica das pessoas sob persecução criminal. Doutrina. Precedentes. A regra “in dubio pro societate” – repelida pelo modelo constitucional que consagra o processo penal de perfil democrático – revela-se incompatível com a presunção de inocência, que, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, tem prevalecido no contexto das sociedades civilizadas como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana” (HC 180.144/GO, j. 10/10/2020).
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos
Conheça os cursos do Ministério Público da Lesen, coordenados pelo professor Rogério Sanches: