É tradicional o entendimento de que o Poder Judiciário, num arranjo democrático, no seio do qual deve imperar a lei e não a força deve exercer um papel “contramajoritário”. Mas qual o sentido e o alcance disso?
É intuitivo (no sentido de evidente) que a atuação contramajoritária só pode ser legitimamente reconhecida em seu enlace profundo com a “imparcialidade”, enquanto característica fundamental do exercício da jurisdição. Significa dizer que o Judiciário deve enfrentar as questões que lhe são postas com o máximo de sobriedade e distanciamento de influências externas. Ao “dizer o Direito” o magistrado, de qualquer grau ou hierarquia não deve ser influenciado pela insanidade das turbas populares, pelas massas tomadas pelas paixões e hoje, especialmente, pelo poder midiático abrangente.
Portanto, falar em atuação contramajoritária do Judiciário tem o significado de um procedimento sustentado na coragem, imparcialidade, tenacidade, equilíbrio e sobriedade. O Juiz não deve ser uma espécie de “justiceiro” movido pela influência de multidões, assim como não pode se deixar levar por poderes que pretendam perverter sua ligação vital com a legalidade (financeiro, político, “status” social, politicamente correto etc.).
A missão do Judiciário é não permitir um “governo dos homens” ou “dos mais fortes” em detrimento de um “governo de leis”. Por isso se afirma com segurança haver uma relação simbiótica entre a atuação contramajoritária, a imparcialidade e a autocontenção judicial.
Mencionar a atuação contramajoritária não implica em alguma concessão de poder imoderado ao Judiciário. Ao reverso, trata-se da imposição de uma “obrigação” ou “ônus” aos magistrados, impedindo-os de julgar à margem da lei e de acordo com as emoções pessoais ou ensejadas por elementos os mais diversos, incluindo a influência das massas. Não se trata de um “poder”, mas de um “dever” ou, na clássica dicção jurídica, de um “Poder – Dever”.
Não obstante, atualmente se tem notado uma enorme perversão dessa concepção do Judiciário como entidade contramajoritária. Obnubila-se a característica de “dever” e se avulta o aspecto de “poder” a tal ponto que tende o Judiciário a se sobrepor aos demais poderes de maneira desequilibrada, praticamente aniquilando sua capacidade de autocontenção e até mesmo de uma contenção externa propiciada pela divisão de poderes que foi projetada também para evitar abusos judiciais, não somente do executivo e do legislativo. A imparcialidade, a técnica, a cientificidade jurídica e a noção de limites se perdem completamente num movimento de retroalimentação entre a “Judicialização da política” e a “Politização do judiciário”. Ao contrário de manter-se imune a influências diversas do cumprimento da legislação, o Judiciário se deixa invadir e comandar por ideologias propugnadas por grupos com capacidade de mobilização e silenciamento de grande maioria da população, por meio da intimidação do politicamente correto e dos chamados “cancelamentos”. A face jurídica fica opaca, sem brilho e finda submetida a um “tour de force” que tem em mira uma luta pelo “poder”. Isso significa que a política passa a reger um órgão que deveria ter como característica a tecnicidade, cientificidade e a finalidade de prestação de um serviço (prestação jurisdicional). Um órgão que deve focar numa prestação, no cumprimento de uma obrigação ou dever, somente pode enxergar a política e o poder como meros instrumentos secundários e não como fins em si mesmos. O paradigma do Judiciário deveria ser a virtude da “humildade”, no sentido de ter consciência de que sua missão é “servir” e não “dominar”. Ao reverso, porém, a tendência tem sido a transição da função de “guardiões da Constituição” e “servos da lei” para verdadeiros “donos” ou “artífices” destas em uma forma nem tão sutil de tirania. Tudo isso temperado por um elitismo e paternalismo que, na verdade, descrê da democracia e, principalmente, da capacidade de que o povo possa, ainda que indiretamente, se autogovernar. Um elitismo e paternalismo que pretende apagar o indivíduo e a individualidade e substituí-lo por um coletivismo de um homem – massa ideal verticalmente imposto.
O que hoje ocorre é que a chamada “atuação contramajoritária” procura afastar, por suposta superioridade moral e intelectual de “juristas iluminados”, a vontade popular, até mesmo mediante a submissão dos demais poderes instituídos. Parece que se esqueceram de que a categoria dos juristas ou quaisquer outras nunca foi a fonte de indivíduos superiores. Isso simplesmente não existe; nada mais é do que uma “hybris” deletéria.
É um desafio hercúleo compreender o que pretende dizer um Ministro do STF, como Luís Roberto Barroso, ao se referir a “iluminismo” reiteradamente para justificar o ativismo contramajoritário a que se filia. Não pode ser que pretenda fazer uma ligação com a Revolução Francesa, já que ali nasce o modelo do “Juiz Boca da Lei” (“Le juge bouche de la loi”) numa versão paroxística de positivismo jurídico, formulada pela chamada “Escola da Exegese”, no seio da qual não existia margem alguma para que o magistrado se afastasse um milímetro sequer do sentido literal do texto legislativo. A única interpretação permitida era a gramatical. Também se espera que o iluminismo a que se refere Barroso não seja aquele que levava a matar pessoas, cortando suas cabeças sempre que, de qualquer forma, destoassem dos “iluminados” do momento. Parece que o Ministro se refere à palavra “iluminismo” de uma forma atécnica, sem contextualização histórica, em um sentido literal de pessoas que possuem as “luzes” do entendimento e devem guiar todas as demais no curso da história em busca de um futuro paradisíaco. Mas isso certamente não serve para fundamentar absolutamente nada de forma minimamente racional, parecendo muito mais um truque erístico com o emprego de uma palavra (“iluminismo”) que acaba tendo um efeito positivo meramente emocional nas pessoas, efeito este, aliás, que nem sequer se justifica em uma perspectiva histórico – filosófica minimamente aprofundada. Trata-se de puro obscurantismo fideísta imanentizado invariavelmente presente em toda espécie de totalitarismo.
O exercício do poder numa sociedade é coisa muito séria para ficar a cargo exclusivo de juristas ou de qualquer outro grupo de pessoas dedicadas seja a que atividade profissional ou intelectual for (cientistas, religiosos, médicos, artistas, filósofos etc.). O exercício do poder, num regime democrático, pressupõe divisão, compartilhamento e limitação. Não há espaço para “castas iluminadas”.
Contudo, um terrível autoengano faz com que o brilho da megalomania convença esses “juristas” de que se encontram em meio a uma empreitada civilizatória que somente eles são capazes de conduzir, e que todo e qualquer indivíduo ou grupo que faça alguma crítica à sua atuação, na verdade, age contra a lei, a democracia e a Constituição, merecendo coação e punição exemplares (o que faz temer que Barroso, acima mencionado, talvez possa ter também em mente um dos aspectos mais cruéis da Revolução Francesa quando emprega a palavra “iluminismo” ou “iluminista”). Esses juristas já não se percebem como guardiões e servos da lei, da Constituição e da democracia, mas como a corporificação ou encarnação destas, as quais passam a ter uma configuração fluída, já que agora subjetivada. A segurança jurídica desmorona, a objetividade desaparece, restando apenas tiranetes com suas convicções subjetivas e mutáveis de acordo com a ocasião. Ao mesmo tempo ocorre uma centralização absoluta do poder, lembrando a frase atribuída ao chamado “Rei Sol” (Luiz XIV, 1638 – 1715), “L’État c’est moi” (“O Estado sou eu”). Só que agora não somente o Estado. A situação é de aprofundamento na absolutização ou até totalitarização do poder. O Judiciário, em especial seu órgão máximo, assume a feição do Estado, da Lei, da Constituição, da Moralidade e até da Verdade!
Muitas vezes aponta-se como pretexto para a sobreposição do Judiciário, a efetiva crise de legitimidade e representatividade dos demais poderes de matiz nitidamente político. Age-se como se o Judiciário contasse com alguma credibilidade muito maior e também não fosse objeto de crise similar, a qual somente se agrava com seu envolvimento ideológico e político. Se algum dia o Judiciário teve a capacidade de promover um equilíbrio na relação dos poderes com algum crédito em termos de cientificidade, imparcialidade e honestidade, seu mergulho na politização certamente erodiu sua imagem e o tornou uma instituição sobre a qual pairam as mesmas suspeitas e defeitos que podem ser apontados nos demais poderes.
A vontade e as convicções da maioria perde terreno em prol de ideologias ou crenças minoritárias, consideradas por juízes e/ou tribunais mais acertadas, em geral com o recurso ao desrespeito e alteração ilegítima de dispositivos legais e até constitucionais. Ao invés de uma relação simbiótica entre a atuação contramajoritária e a imparcialidade, contenção e sobriedade, opta-se por uma violação destas necessárias características da jurisdição, dando azo a um “ativismo judicial” militante que pretende liberar o magistrado de sua submissão às leis e à constituição. A virtude da humildade e a consciência da obrigação de prestação de um serviço passa longe, muito longe daqueles que se autointitulam iluminados detentores de um saber capaz de guiar todos os demais. Mas é exatamente essa falta de humildade, essa perda de identidade do Judiciário que, longe de torná-lo um suposto portador de luzes, o converte em um guia cego que caminha para o abismo, levando consigo todos aqueles que se submeterem servilmente aos seus delírios de grandeza e pretendendo calar ou eliminar, ainda antes da queda, eventuais dissidentes.
É urgente reconduzir o Judiciário e os demais poderes à sua condição de equilíbrio e, principalmente, de harmonia, redescobrindo a identidade do primeiro, perdida em meio a vaidades e vontade de poder.