Quando pensamos que já vimos de tudo a respeito de “releituras”, distorções, “inovações” e, principalmente, desrespeito à lei e à Constituição por aqueles que deveriam ser seus guardiões e não proprietários com uso, gozo e disposição, eis que somos negativamente surpreendidos.
Como se já não bastassem as malversações com relação à extraterritorialidade, atribuição e competência no caso da troca de ofensas verbais e suposta agressão ocorridas no aeroporto italiano, envolvendo o Ministro Alexandre de Moraes, seu filho e uma família brasileira, [1] eis que o Ministro Dias Toffoli defere pedido do colega também Ministro, Alexandre de Moraes, para sua habilitação e de familiares como “Assistentes da Acusação” (sic) nos autos de Inquérito Policial respectivo. [2]
Acontece que a figura do Assistente da Acusação somente existe na fase processual e não na fase de investigação. Isso por motivos bem simples de ordem legal e até mesmo semântica.
Em termos legais a figura do Assistente da Acusação é regulada no artigo 268, CPP, “in verbis”:
“Art. 268. Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no Art. 31” (negrito nosso).
É visível que o dispositivo legal se refere à intervenção do assistente na fase da “ação penal” e não na “persecução penal” de forma ampla. Ao referir-se à “ação penal”, o dispositivo, obviamente restringe o alcance da assistência à “fase processual”, não abrangendo o Inquérito Policial ou qualquer espécie de investigação criminal prévia.
Como ensina Bonfim:
“Mencionando a lei a ação pública, entende-se que não é possível falar em assistência durante o inquérito policial”. [3]
Em mesma senda Marcão:
“Na fase de investigação, não há falar em habilitação de assistente”. [4]
Não diverge Badaró:
“Não é possível a intervenção do assistente de acusação durante o inquérito policial. Somente durante a ação penal é que terá cabimento a intervenção do assistente”. [5]
O mesmo autor por último mencionado apresenta jurisprudência do próprio STF e de outro E. Tribunal vedando a assistência na fase investigativa (“STF, RT637/311 e TAPR, RT685/351”). Além disso, chama a atenção para a excepcionalidade da assistência no inquérito somente para os Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB em casos de envolvimento de advogados. [6] Note-se que no caso dessa exceção legal, não se trata de analogia ou qualquer outra peripécia ou malabarismo jurídico, mas de situação prevista expressamente no artigo 49, Parágrafo Único do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94). Nesse dispositivo legal vigente há menção expressa à atuação de assistência nas fases de “inquérito policial e processos”, bem como de advogados figurando como “indiciados, acusados ou ofendidos”. A norma, por obviedade, não se aplica ao Ministro Alexandre de Moraes atualmente, pois que não é advogado, sendo até mesmo incompatível com o exercício da advocacia em sua atual condição funcional. Da mesma forma não se aplica a seus parentes que, ao que se saiba, não são advogados e, mesmo que o fossem, o caso não teve nenhuma ligação com o exercício da advocacia. Novamente não há espaço para analogia, seja porque as condições legais e factuais são totalmente díspares, seja porque a norma é restrita aos advogados em relação às suas funções, seja, finalmente, porque não existem lacunas legais a serem preenchidas. [7]
No seguimento, ao se verificar os poderes dados ao assistente, fica ainda mais clara sua incompatibilidade com a fase inquisitiva da persecução penal, pois que lhe seria permitido “requerer perguntas às testemunhas” (artigo 271, CPP), o que é incompatível com o sistema de inquirição do Inquérito Policial, salvo por liberalidade do Delegado de Polícia.
Ademais, se trata de decisão judicial que influi no rumo e no desenvolvimento do processo. O Juiz atua no processo, não no inquérito ou investigação. Nessa fase sua atuação é meramente de controle de legalidade e fiscalização. A invasão judicial no desenvolvimento da investigação criminal viola terrivelmente o Sistema Acusatório e afeta a imparcialidade (inteligência do artigo 273, CPP). Na verdade claramente todo o regramento da assistência da acusação é típico da fase processual, com menção de “intimação” ou “notificação” para atos do processo (artigo 271, § 2º., CPP). Há inclusive preocupação do legislador em regrar eventual recurso do despacho que admite ou não assistente. E a solução dada é pela irrecorribilidade, mas com consignação nos autos do pedido e da decisão (artigo 273, CPP). Ora, não há falar em “recursos” na fase pré – processual!
A Procuradoria Geral da República, como não poderia deixar de ser, manifestou seu inconformismo com a decisão do Ministro Toffoli e ingressou com “Agravo Regimental”, utilizando como fundamento o artigo 39 da Lei 8.038/90 e o artigo 317 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, os quais tratam genericamente de decisões monocráticas que causem gravame ou prejuízo às partes. [8] No entanto, a prestidigitação é tão terrível que tal recurso pode vir a ser denegado com a simples alegação de que a lei empresta ao deferimento ou não da assistência o caráter irrecorrível, nos termos do já mencionado artigo 273, CPP. Isso é algo temível, pois se profere uma decisão errônea, cujo próprio sentido e fundamento equivocado a torna imutável num círculo vicioso jurídico. Estamos diante de uma terra sáfara e hostil à Razão e à Justiça.
Frente a um círculo vicioso e repetitivo na argumentação, restará à PGR e a todos somente a conduta que encerra um debate sem sentido na Câmara Alta britânica. O lorde apresenta a resposta (irônica) final clássica: “Talvez Vossa Excelência tenha razão”. E senta-se. [9] O grande problema é que aqui não se trata de um simples debate de ideias, ainda que em um Parlamento, mas da violação da lei e da Constituição no decorrer de uma Investigação Criminal, o que não permite a mera ironia e desprezo como resposta suficiente. A pergunta é: qual é a saída desse imbróglio criado há tempos por decisões semelhantes?
O remédio deve ser tempestivo, muitas vezes o tratamento atrasado de um mal ocasiona inocuidade das providências, isso parece ser, infelizmente, o que ocorre nesse quadro com os equívocos e abusos reiterados do Judiciário, especialmente em sua Corte Suprema, no Brasil.
Já aduzia Ovídio:
“Rebélate desde el primer instante; la medicina no surte efecto si el mal se agrava con la negligencia”. [10]
Ou na versão mais límpida de Tomás de Kempis
“Resiste desde o princípio, que vem tarde o remédio, quando cresceu o mal com a muita demora”. [11]
Poder-se-ia objetar dialeticamente que em sendo parca a regulamentação da assistência da acusação no Código de Processo Penal, seria possível aplicar, por uma espécie de analogia, a figura enfocada na fase de investigação. Não obstante, tal argumento não procede, tendo em vista que a aplicação da analogia pressupõe uma lacuna legal, a falta de uma regulamentação que faz com que o intérprete recorra a norma similar aplicável “mutatis mutandis”. Na fase de Investigação Criminal, a participação tanto do investigado (ainda não acusado) quanto da vítima ou ofendido é regrada pelo disposto expressamente no artigo 14, CPP, com possibilidade de acompanhamento do feito e até requerimento de diligências dirigido à Autoridade Policial. Trata-se de abertura excepcional à ampla defesa e à atuação propositiva dos envolvidos (indiciado e vítima) na fase investigativa. Não se trata da figura do “Assistente da Acusação”. É a isso e somente a isso que se habilita a vítima ou ofendido na fase de Inquérito Policial ou qualquer investigação criminal. Essa atuação externa ao feito e bastante limitada é ainda ampliada pelo Provimento 188/18 da Ordem dos Advogados do Brasil que regula a chamada “Investigação Defensiva” e em nenhum momento há a criação de alguma figura que se assemelhe a um “Assistente da Acusação na Fase de Investigação”. A situação é normatizada pelo Código de Processo Penal de maneira expressa e induvidosa, de forma que não há espaço para preenchimento de suposta lacuna mediante analogia alguma. O que faz e tem sido feito reiteradamente pelo STF é uma indevida atuação como “legislador positivo”, seja com relação à legislação ordinária seja até mesmo com referência à Constituição, violando a Separação dos Poderes e o Princípio da Legalidade de forma inadmissível.
Sob o ponto de vista semântico, também é totalmente incabível sequer a aceitação do emprego da expressão “Assistente da acusação” na fase de investigação.
O título deste artigo pode parecer ambíguo, mas não o é. Foi escolhido exatamente para expor dois sentidos que não se chocam ou conflitam, mas se completam.
“O Assistente da Acusação Inexistente”: primeiro quer dizer que, como já exposto, jurídica e legalmente não existe a figura do “Assistente da Acusação” na fase pré – processual. Não existe “Assistente da Acusação” no Inquérito Policial ou qualquer outro instrumento de investigação. Em segundo lugar quer dizer que na fase de investigação, “não existe acusação”, não há “acusado”, “réu” ou coisa similar. No máximo se pode falar de um investigado ou indiciado. Então, o título pretende mesmo passar a mensagem de dois sentidos, de uma figura jurídica que não existe (“Assistente da Acusação na Investigação”) e que essa figura jurídica não poderia mesmo existir porque não há “acusação” na fase de investigação, impossibilitando a instituição da “assistência”. Os dois sentidos da frase convivem em simbiose. Não é possível assistir a algo que não existe!
Quando nos referimos a uma nova “prestidigitação” do STF, creio que inadvertidamente usamos do recurso do eufemismo, já que a prestidigitação está ligada à magia, a meros truques de mágica levados a efeito com habilidades manuais. Na verdade, conforme se vê, o Ministro Dias Toffoli praticou algo como uma “conjuração” de um ente espiritual (“spiritus coniurationis”), criando uma espécie de “assombração jurídica” desprovida de corpo ou concretude. Mas, não precisamos nos preocupar porque se é assim, não existe “Assistente da Acusação na Investigação” e também assombrações não existem…ou existem?
REFERÊNCIAS
AGRESSÃO em Roma: PGR é contra Moraes como Assistente de Acusação. Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/396168/agressao-em-roma-pgr-e-contra-moraes-como-assistente-de-acusacao , acesso em 1º.11.2023.
AZEVEDO, Hugo de. Ensaio sobre a Estupidez. São Paulo: Quadrante, 2023.
BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
BORGES, Laryssa. Moraes Vira Assistente de Acusação em Caso de Agressão em Aeroporto. Disponível em https://veja.abril.com.br/politica/moraes-vira-assistente-de-acusacao-em-caso-de-agressao-em-aeroporto , acesso em 1º.11.2023.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Alexandre de Moraes e Confusão no Aeroporto: Análise Jurídica. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/alexandre-de-moraes-e-confusao-no-aeroporto-analise-juridica/1907672393 , acesso em 1º.11.2023.
KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Trad. Pe. Fleury e Frei Tomás Borgmeier. Petrópolis: Vozes, 2018.
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
OVÍDIO. Obras de Ovídio. Trad. Germán Salinas. Madrid: Librería de Perlado, Páez y Cía, Ebook Scribid, 2023.
PROCURADORIA Geral da República. Agravo Regimental n. 1152026/2023. Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/10/CF2A463152BE08_manifestacao-pgr.pdf , acesso em 1º.11.2023.
[1] Já tratamos do tema em outro trabalho: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Alexandre de Moraes e Confusão no Aeroporto: Análise Jurídica. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/alexandre-de-moraes-e-confusao-no-aeroporto-analise-juridica/1907672393 , acesso em 1º.11.2023.
[2] Cf. BORGES, Laryssa. Moraes Vira Assistente de Acusação em Caso de Agressão em Aeroporto. Disponível em https://veja.abril.com.br/politica/moraes-vira-assistente-de-acusacao-em-caso-de-agressao-em-aeroporto , acesso em 1º.11.2023.
[3] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 527.
[4] MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 674.
[5] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 205.
[6] Op. Cit., p. 205.
[7] Toma-se a liberdade de transcrever o dispositivo do Estatuto da OAB para não deixar dúvidas quanto à sua literalidade:
“Art. 49. Os Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB têm legitimidade para agir, judicial e extrajudicialmente, contra qualquer pessoa que infringir as disposições ou os fins desta lei.
Parágrafo único. As autoridades mencionadas no caput deste artigo têm, ainda, legitimidade para intervir, inclusive como assistentes, nos inquéritos e processos em que sejam indiciados, acusados ou ofendidos os inscritos na OAB” (grifo nosso).
[8] PROCURADORIA Geral da República. Agravo Regimental n. 1152026/2023. Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/10/CF2A463152BE08_manifestacao-pgr.pdf , acesso em 1º.11.2023. Cf. também: AGRESSÃO em Roma: PGR é contra Moraes como Assistente de Acusação. Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/396168/agressao-em-roma-pgr-e-contra-moraes-como-assistente-de-acusacao , acesso em 1º.11.2023.
[9] AZEVEDO, Hugo de. Ensaio sobre a Estupidez. São Paulo: Quadrante, 2023, p. 82.
[10] OVÍDIO. Obras de Ovídio. Trad. Germán Salinas. Madrid: Librería de Perlado, Páez y Cía, Ebook Scribid, 2023, p. 98.
[11] KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Trad. Pe. Fleury e Frei Tomás Borgmeier. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 38.