Desde a revolução industrial, temos vivido um período marcado por rápidas e profundas transformações provocadas pelo avanço da tecnologia. A comunicação, a produção, a forma como tomamos decisões e organizamos a sociedade vêm sendo moldadas por essas inovações. Mais precisamente na última década, as chamadas tecnologias exponenciais (como inteligência artificial generativa, computação em nuvem, big data, blockchain e automação inteligente) já não são mais apostas futuristas: tornaram-se pilares operacionais para empresas inovadoras, instituições financeiras, sistemas de saúde e até mesmo para democracias que investiram em modelos de governança digital.
Nesse cenário, causa espanto o descompasso entre o ritmo acelerado do setor privado e a lentidão do setor público brasileiro em adotar tais tecnologias. Enquanto startups e grandes corporações reestruturam seus modelos de negócio com base em dados, algoritmos e escalabilidade digital, muitos órgãos públicos ainda operam utilizando sistemas legados, processos manuais e estruturas fragmentadas de informação. Não raro, a ausência de estratégias tecnológicas integradas compromete a efetividade de políticas públicas, a qualidade do serviço prestado à população e a própria legitimidade institucional.
Em artigo intitulado IA na Defensoria Pública: o futuro que deveria ser o presente2, Luís Henrique Zouein discute a aplicação de inteligência artificial na Defensoria Pública como exemplo paradigmático dessa tensão: de um lado, a sobrecarga humana crônica, a escassez de recursos e a urgência em ampliar o acesso à justiça; de outro, a hesitação institucional diante de ferramentas que poderiam liberar tempo e ampliar a capilaridade do atendimento. O caso da Defensoria é um espelho de algo maior: os Poderes Públicos no Brasil encontram-se em uma encruzilhada entre a tradição analógica e a necessidade urgente de uma virada digital ética, eficiente e centrada no ser humano.
É nesse contexto que o presente artigo se propõe a investigar uma pergunta central: por que o Estado se mantém hesitante diante de tecnologias comprovadamente úteis, acessíveis e alinhadas a seus próprios objetivos constitucionais? Qual é exatamente o empecilho para se transformar dados em políticas públicas mais inteligentes? O que falta para que a inovação deixe de ser exceção e passe a compor o repertório cotidiano da Administração Pública? E onde a Defensoria Pública se encaixa nesse quadro?
Ao longo dos próximos capítulos, seguem propostas de respostas viáveis para essas indagações, apresentando-se casos de sucesso, desafios enfrentados e caminhos possíveis para uma transformação tecnológica realista, segura e institucionalmente comprometida com o interesse público.
O que são tecnologias exponenciais e por que elas importam
As tecnologias exponenciais são caracterizadas por sua capacidade de crescimento acelerado e de transformação estrutural de setores inteiros em prazos relativamente curtos. Diferentemente de inovações lineares, cujo impacto se desenvolve de forma gradual, as tecnologias exponenciais têm um efeito multiplicador, capaz de alterar profundamente padrões de produção, comunicação, decisão e prestação de serviços. Elas não apenas otimizam processos, mas criam novos paradigmas operacionais.
Entre os exemplos mais relevantes de tecnologias exponenciais, destacam-se: inteligência artificial (IA), especialmente os modelos de linguagem de grande porte (LLMs) e a IA generativa; computação em nuvem; data lakes e data warehouses; blockchain; internet das coisas (IoT); e automação de processos robóticos (RPA). Todas essas têm, em comum, a capacidade de lidar com volumes enormes de dados, de operar em tempo real, de aprender e se adaptar a novos contextos e, sobretudo, de ampliar exponencialmente a capacidade de análise e tomada de decisão humana.
A importância da adoção dessas tecnologias no setor público reside em sua aplicabilidade direta a áreas críticas como saúde, segurança, educação, justiça e assistência social. É a oportunidade de o Poder Público ampliar a eficácia dos direitos sociais insculpidos no art. 6º da Constituição da República de maneira revolucionária.
A computação em nuvem, por exemplo, permite que órgãos públicos ampliem sua infraestrutura digital com custos reduzidos, flexibilidade operacional e maior resiliência. Sistemas baseados em IA podem automatizar tarefas burocráticas, identificar padrões em dados massivos, apoiar decisões estratégicas e melhorar o atendimento ao cidadão. Data lakes e data warehouses viabilizam a centralização, a estruturação e a análise integrada de dados até então dispersos, entre órgãos e sistemas, promovendo, assim, uma governança baseada em evidências.
A adoção dessas tecnologias é cada vez mais comum em países que se destacam por sua eficiência estatal. Estônia, Singapura, Reino Unido e Canadá, entre outros, já utilizam plataformas digitais integradas, decisões assistidas por IA e armazenamento em nuvem para tornar suas administrações públicas mais inteligentes, responsivas e transparentes. Tratam-se de Estados que entenderam que sua capacidade de responder às demandas sociais de forma eficaz depende, em grande medida, justamente de sua capacidade tecnológica.
Por outro lado, a ausência ou a lentidão na adoção dessas ferramentas compromete não apenas a eficiência administrativa, mas também a efetividade dos direitos fundamentais e a equidade no acesso aos serviços públicos. A tecnologia, nesse contexto, não se resume a opção técnica, tendo se tornado, em verdade, um vetor estratégico de transformação institucional. Sua importância está diretamente relacionada à capacidade do Estado de cumprir sua missão constitucional com qualidade, escalabilidade e responsabilidade.
Com maior clareza sobre o significado dessas tecnologias e tudo o que podem oferecer, fica mais fácil avaliar, de forma concreta, os riscos da hesitação estatal, bem como as oportunidades perdidas quando se posterga a transformação digital. É esse o ponto de partida para se compreender por que a discussão acerca das tecnologias exponenciais não pode mais ficar restrita ao setor privado ou à academia, devendo, pois, integrar o centro da agenda pública brasileira.
A timidez da adoção no setor público
A adoção de tecnologias exponenciais no setor público brasileiro avança em ritmo notoriamente tímido. Essa hesitação não decorre de uma única causa, mas de um conjunto multifatorial de barreiras que se retroalimentam. Ao contrário do setor privado, onde a busca por vantagem competitiva impulsiona decisões ágeis e investimentos arrojados, a Administração Pública brasileira opera sob uma lógica institucional de aversão ao risco, excessiva cautela normativa e limitação estrutural.
Um dos primeiros vetores a serem analisados é o fato de a organizacional do setor público ser, historicamente, pautada por rigidez hierárquica e procedimentos normativos detalhados, tendente a valorizar a estabilidade em detrimento da experimentação. Iniciativas tecnológicas que envolvem incertezas, mesmo que com alto potencial de impacto positivo, são frequentemente encaradas com desconfiança. A inovação, quando isolada de diretrizes claras e respaldo legal, é vista mais como ameaça do que como oportunidade.
Essa postura conservadora é reforçada por inseguranças de ordem normativa e jurídica. A ausência de regulamentações específicas acerca do uso de tecnologias emergentes aliada à interpretação restritiva de princípios administrativos, como legalidade e impessoalidade, acaba por criar um ambiente institucional pouco propício à inovação. Gestores temem responder a órgãos de controle por decisões que, embora tecnicamente justificadas, careçam (ou pareçam carecer) de respaldo jurídico explícito.
Mesmo após o Marco Legal das Startups e a introdução de outros institutos importantes no ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo do procedimento especial de contratação pública para solução inovadora, ocorre que, na prática, os avanços legais ainda não foram capazes de produzir os efeitos pretendidos. A inovação, muitas vezes, segue vista como terreno perigoso, não como necessidade institucional, e, mesmo quando há normativos atualizados, as orientações interpretativas sobre os novos dispositivos geram uma paralisia decisória a bloquear a modernização.
Em consequência desse cenário, a ausência de uma cultura de inovação, de orientações técnicas e de maior capacitação dos gestores previne a aplicação efetiva dos permissivos legais sobre o tema. Poucos editais exploram o potencial das novas leis; chamadas públicas para startups ainda são raras; testes de soluções tecnológicas são vistos com desconfiança. Ou seja, o medo de possíveis questionamentos advindos de órgãos de controle continua a operar como freio invisível a tais avanços.
A restrição orçamentária é outro elemento frequentemente invocado como impeditivo à inovação tecnológica. Contudo, trata-se de justificativa que exige análise crítica e responsável. Ainda que as limitações de recursos sejam reais, o investimento em tecnologias como computação em nuvem, automação e IA costuma apresentar retorno alto e rápido em termos de produtividade, economia de tempo e eficiência institucional. A resistência, portanto, se aproxima mais de uma limitação de visão estratégica do que um impeditivo financeiro real e absoluto. Falta, em muitos casos, a internalização do conceito de que tecnologia é investimento (e não mera despesa).
Outro aspecto importante é a fragmentação institucional relacionada à ausência de governança integrada de inovação. Sem a existência de instâncias responsáveis por coordenar iniciativas tecnológicas, disseminar boas práticas e avaliar riscos de forma sistemática, as ações ocorrem de forma isolada, descontinuada e frequentemente redundante. A falta de articulação entre áreas técnicas, jurídicas, administrativas e finalísticas impede que projetos escalem ou sejam replicados com consistência e maior eficácia.
Justamente para enfrentar essa fragmentação é que, em 2024, a Coordenadoria de Tecnologia do CONDEGE (Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos- Gerais) decidiu por iniciar os trabalhos para a construção da Plataforma Digital das Defensorias Públicas, com o objetivo de desenvolver um ecossistema nacional a permitir a interoperabilidade entre os diferentes sistemas de cada Instituição. Já no âmbito da IA, a ausência de governança integrada também foi alvo da mesma Coordenadoria, que encampou um trabalho fruto da parceria entre a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio) e a Universidade de Stanford para a criação de um Plano de Governança de Inteligência Artificial das Defensorias.
Outro fenômeno particularmente limitante é o predomínio da chamada “lógica do risco zero”, que opera como uma fortaleza contra qualquer tentativa de transformação. Essa lógica, amplamente disseminada na Administração Pública, parte do princípio de que o erro é inaceitável, mesmo se decorrente de uma tentativa legítima de inovação. Em ambientes que seguem esse padrão, a busca por segurança jurídica total se sobrepõe ao imperativo de evolução institucional. O resultado é um ciclo de imobilismo: evita-se inovar para não errar, mas, não se inovar, perpetuam-se ineficiências, gargalos e práticas obsoletas.
O principal revés dessa lógica é naturalizar a precariedade como um modelo aceitável de funcionamento institucional. Em vez de se buscar soluções tecnológicas para lidar com a sobrecarga, o sistema adapta-se à escassez, normalizando a lentidão, o retrabalho e a baixa qualidade dos serviços prestados. Inverter esse raciocínio exige um reposicionamento institucional profundo: o erro honesto, monitorado e com potencial de aprendizagem precisa ser lido como uma parte legítima de um processo de transformação digital responsável.
Diante desse cenário, torna-se evidente que a timidez tecnológica do setor público brasileiro não se resume a uma questão de limitação de infraestrutura ou orçamentária. É, sobretudo, um sintoma de uma cultura institucional que precisa ser revista sem mais atrasos ou desculpas. Avançar na adoção de tecnologias exponenciais implica revisar valores, repensar modelos de decisão, criar arcabouços normativos e, sobretudo, fomentar uma nova mentalidade gerencial e ética na Administração Pública. Sem dúvidas é um desafio estrutural, mas absolutamente inadiável.
Casos emblemáticos e lições já disponíveis
A despeito da generalizada resistência estrutural à inovação no setor público brasileiro, já há significativas experiências concretas a demonstrar que a adoção de tecnologias exponenciais é não apenas viável, mas altamente benéfica quando conduzida com planejamento, compromisso institucional e orientação estratégica. Exemplos nacionais e internacionais exitosos já fornecem insumos relevantes para a análise de caminhos possíveis e de obstáculos por certo superáveis, oferecendo-se como modelos efetivamente replicáveis.
Um caso paradigmático é o da Estônia, amplamente reconhecida como uma referência mundial em governo digital. Desde o início dos anos 2000, o país implementou uma arquitetura tecnológica integrada sustentada por princípios de interoperabilidade, segurança e transparência. Atualmente, mais de 99% dos serviços públicos estonianos estão disponíveis online, inclusive aqueles de natureza judicial, tributária e educacional. O sistema, chamado de X-Road, permite a troca segura de dados entre instituições públicas e privadas, sustentando-se por uma infraestrutura digital descentralizada e por uma legislação que favorece a inovação com responsabilidade3,4.
Outro exemplo bastante ilustrativo é o do Reino Unido, que, desde a criação do GDS (Government Digital Service), em 2011, estabeleceu com clareza as diretrizes a serem observadas para o desenvolvimento dos serviços públicos digitais, como o foco na experiência do usuário, na reutilização de componentes digitais e na centralização da governança tecnológica. O respeito a tais premissas resultou em serviços mais acessíveis, eficientes e auditáveis. O modelo britânico destaca-se pela adoção gradual, mas contínua, de tecnologias importantes como computação em nuvem, analytics e automação de processos5.
No contexto brasileiro, o Governo Federal vem liderando as iniciativas de transformação digital, como é o caso do GOV.BR, a principal iniciativa do governo federal brasileiro para digitalizar e integrar os serviços públicos em uma única plataforma acessível, segura e centrada no cidadão. A plataforma conta com identidade digital unificada, com diferentes níveis de autenticação, mais de quatro mil serviços disponíveis (muitos deles 100% digitais), interoperabilidade entre órgãos e, em abril de 2025, mais de 166 milhões de usuários cadastrados6,7.
Há experiências relevantes também no campo da saúde pública, com a utilização de sistemas de inteligência artificial capazes de prever surtos epidemiológicos com base na análise de dados anonimizados em tempo real8. Iniciativas semelhantes ocorrem na área de educação, com plataformas adaptativas que auxiliam no acompanhamento do progresso de estudantes9, e, ainda, no sistema tributário, com algoritmos aplicados à detecção de fraudes fiscais10.
Especificamente sobre a Defensoria Pública, no Rio de Janeiro, o último decênio foi marcado por forte investimento em Tecnologia da Informação. Dois investimentos em tecnologias exponenciais foram: (i) a contratação do serviço de computação em nuvem do SERPRO Multicloud, permitindo tanto a migração paulatina dos sistemas internos para o ambiente de nuvem, garantindo ampla disponibilidade e escalabilidade quase ilimitada, quanto o acesso a serviços fornecidos por cada nuvem corporativa (Google Cloud, Microsoft Azure, Amazon Web Services, Oracle Cloud e Huawei Cloud); e (ii) a contratação do Google Workspace com as ferramentas de IA generativa Gemini Advanced e NotebookLM Plus, garantindo acesso aos modelos mais avançados de LLM, com adequação à Lei Geral de Proteção de Dados.
A análise dessas experiências conduz inevitavelmente a um ponto argumentativo: a inovação tecnológica no setor público não depende exclusivamente de fatores externos ou orçamentários, mas, sobretudo, de vontade institucional e decisão política. Os obstáculos são reais, mas não intransponíveis. Quando há clareza de propósito e governança adequada, os ganhos se mostram expressivos, mensuráveis e duradouros.
Ignorar esses casos, ou tratá-los como exceções irrepetíveis, representa mais do que um equívoco estratégico, traduzindo-se em perda de oportunidades. Em vez de se limitar ao diagnóstico das dificuldades, o setor público brasileiro em seus diferentes níveis precisa voltar sua atenção para essas referências, adaptá-las a seu contexto e, então, assumir firme compromisso com a modernização. As lições disponíveis, portanto, não podem ser relegadas a inspiração externa, devendo tornar-se motores internos de mudança.
O preço do atraso: o custo do late adoption
A hesitação do setor público brasileiro em adotar tecnologias exponenciais tem um custo elevado, que é, na maioria das vezes, invisível ou naturalizado. Adiando-se a modernização digital, não se compromete apenas a eficiência da máquina pública, mas também se perpetuam desigualdades, desperdiçam-se talentos e se aprofundam injustiças de ordem estrutural. A aparente neutralidade da inércia tecnológica, na verdade, esconde um posicionamento político: o de aceitar a precariedade como normal e tratar a ineficiência como inevitável.
O atraso na adoção tecnológica leva à ineficiência crônica dos serviços públicos, que seguem a operar através de fluxos manuais, redundantes e fragmentados. O tempo que um servidor destina para preencher planilhas, transcrever dados ou organizar informações que poderiam estar automatizadas representa, à primeira vista, apenas um desvio produtivo, mas, olhando-se em profundidade, verdadeira erosão do tempo institucional. E essa ineficiência, por sua vez, alimenta a morosidade, a desorganização administrativa e a baixa capacidade de resposta a demandas sociais urgentes. Tais efeitos, se fossem diretamente atribuídos a más gestões ou a negligências explícitas, gerariam escândalo; mas, decorrentes da não-adoção de tecnologias já disponíveis, tendem a ser simplesmente ignorados.
Outro impacto relevante é a fuga ou o desperdício de talentos públicos. Profissionais qualificados, engajados e tecnicamente preparados, quando inseridos em ambientes analógicos e burocráticos, acabam frustrados, desmotivados ou mesmo adoecidos. A falta de instrumentos tecnológicos adequados desvaloriza competências e reduz o potencial de inovação interno. Não por acaso, muitos servidores públicos criativos e com visão estratégica migram para espaços onde sua expertise possa ser melhor aproveitada; ou, pior, permanecem nas instituições assistindo à subutilização de seu talento. O serviço público, nesses casos, deixa de ser um polo de excelência e se torna ambiente hostil ao próprio conhecimento.
Além disso, o não aproveitamento dos recursos tecnológicos disponíveis resulta em um gigantesco desperdício de dados públicos. Todos os dias, milhares de dados são gerados por instituições públicas em atendimentos, processos judiciais, políticas sociais, contratações e movimentações financeiras, mas permanecem mal armazenados ou subutilizados. Sem estrutura para coletar, curar e analisar essas informações, o Estado abdica da tomada de decisões com espeque em evidências, comprometendo a própria legitimidade de suas escolhas políticas. A ausência de uma cultura data-driven (guiada por dados) é, além de simples atraso técnico, uma falha estratégica capital a minar a racionalidade da gestão pública.
O mais grave, no entanto, é que o atraso tecnológico reproduz e aprofunda desigualdades sociais históricas. Em um país como o Brasil, onde o acesso a direitos já é profundamente assimétrico, a ausência de ferramentas que poderiam ampliar a cobertura e qualificar o atendimento público impacta, principalmente, os mais vulneráveis. Quando a Defensoria Pública demora a responder por falta de infraestrutura; quando a escola pública não consegue acompanhar o desempenho dos alunos por ausência de plataformas adaptativas; quando o SUS atua reativamente por não dispor de sistemas preditivos, os prejuízos recaem repetidamente sobre quem menos pode suportá-los.
É preciso, portanto, reconhecer que a omissão tecnológica tem caráter ético, como já defendido por Luís Henrique Zouein, em seu artigo mencionado anteriormente. A escolha de não inovar, em contextos em que a inovação está disponível, sendo segura e legitimada, é uma forma de abdicação institucional. O custo do late adoption é, para além de orçamentário, social, humano e moral. O atraso não é neutro, mas uma opção por se manter um Estado que responde pouco, atende mal e, assim, falha em sua missão essencial: garantir dignidade, justiça e bem-estar à população de forma igualitária.
Persistir nessa lógica é comprometer o porvir. É afirmar, por omissão, que o presente precário é aceitável e que o futuro pode esperar.
Para onde precisamos caminhar: a urgência de uma virada institucional
Não há mais tempo para contemplação. A transformação digital no setor público não pode ser vista como luxo, nem como tendência: trata-se de um imperativo de justiça, de competência e de compromisso com o futuro. Adiar esse movimento é perpetuar ineficiências, negligenciar vidas e enfraquecer a legitimidade do Estado perante os cidadãos. O momento exige ação; e exige agora.
Há algumas condições que podem favorecer o êxito da transformação digital no setor público. A inovação tecnológica precisa deixar de ser um experimento periférico, para ocupar o centro da estratégia institucional. Isso começa com uma chefia institucional comprometida com a inovação, capaz de conduzir mudanças mesmo em ambientes regulatórios desafiadores e disposta a enfrentar resistências. Somente assim haverá ambiente propício para uma ruptura com o modelo analógico que ainda predomina em boa parte da Administração. É necessário que cada gestor compreenda: seu legado não será medido apenas por metas numéricas, mas sobretudo pela coragem de transformar realidades por meio das ferramentas disponíveis.
Em segundo lugar, é imprescindível uma estratégia digital bem definida, com o estabelecimento de objetivos claros e de métricas de impacto, além de financiamento estável. Planejamento estratégico pressupõe método e, ele próprio, exige experimentação. É uma tarefa demorada, permanente e duradoura, isto é, que leva tempo para ser preparada, continua após ser colocada em prática e que tem olhos para o futuro próximo e também o longínquo.
Também é urgente estabelecer diretrizes claras para trilhar esse caminho. Não se avança na modernização digital sem uma política pública consistente, amparada em marcos legais atualizados, padrões de segurança cibernética robustos e regras transparentes para contratação de soluções tecnológicas. Se o panorama normativo vem sendo modificado e o Governo Federal vem dando alguns bons exemplos, é preciso que isso reverbere em todos os níveis da administração direta e indireta, de todos os Poderes e das instituições autônomas.
Capacitação é outro pilar inegociável. Não basta adquirir ferramentas de última geração; é necessário preparar pessoas para operá-las de forma crítica, ética e estratégica. A formação digital contínua deve ser um direito dos servidores e uma obrigação dos órgãos públicos. Um servidor tecnologicamente qualificado é um agente de mudança. Por outro lado, um servidor despreparado, ainda que bem-intencionado, torna-se refém da máquina que deveria comandar.
Além disso, é premente superar o medo do erro, abraçando-se a cultura da experimentação. A inovação é, por definição, imperfeita. Ou seja, esperar condições ideais é não começar nunca. O erro documentado e corrigido é melhor do que a estagnação silenciosa. O projeto piloto de hoje é a política pública de amanhã.
Por fim, não se pode ignorar o papel decisivo das instituições de controle, dos parlamentos e das escolas de governo. Deve haver atuação conjunta e simultânea como promotoras da inovação pública, e não mais como entraves burocráticos à sua realização. Controle e inovação devem ser aliados, não inimigos, tendo como tripé a transparência, a responsabilidade e a confiança mútua. Chegamos a um ponto de inflexão. Persistir no modelo atual é assinar, com resignação, um atestado de ineficácia. E um gestor público que entende isso não pode mais se dar ao luxo da inércia. A hesitação diante da transformação digital não é cautela; é renúncia.
3 https://govtechsummit.com.br/2023/12/05/oportunidades-da-transformacao-digital-no-setor-publico- conheca-o-case-estonia
4 https://istoedinheiro.com.br/como-a-estonia-se-tornou-um-pais-com-servicos-quase-100-digitais-e-as- licoes-para-o-brasil/
5 https://publications.parliament.uk/pa/cm201719/cmselect/cmsctech/1455/145504.htm
6 https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2025/abril/gov-br-numero-de-contas-ouro-supera-o- de-bronze-pela-primeira-vez
8 https://www.ufsm.br/2024/03/22/inteligencia-artificial-auxilia-na-previsao-de-futuros-surtos-de-dengue- em-santa-maria
9 https://pt.wikipedia.org/wiki/Ambientes_Virtuais_de_Aprendizagem_na_Educa%C3%A7%C3%A3o_Brasileira
10 https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2024/setembro/receita-desenvolve- ferramenta-inovadora-capaz-de-ampliar-deteccao-de-fraudes-tributarias-e-aduaneiras