A busca domiciliar, como o próprio nome indica, é aquela feita na casa de alguém. Sendo a casa, nos termos de preceito constitucional, o “asilo inviolável do indivíduo” (art. 5º, XI, da CF)XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial., somente nas hipóteses expressamente previstas em lei se admite exceção a tal princípio. Preocupou-se o constituinte, assim, em homenagear remotos dogmas da civilização, que sempre procuraram privilegiar o direito individual de não ser molestado em casa. O digesto já previa, em célebre máxima, “que a casa seja para cada um o refúgio e o receptáculo seguríssimo (Digesto II, 4, fr. 18). Conforme Marco Túlio Cícero, no Prodomo, 41, “que é mais sagrado, que é mais protegido do que toda religião, do que a casa de cada um?”. E a famosa expressão “my house is my castle” é explicada por João Barbalho, em sua Constituição Federal Brasileira – comentários, 1902, p. 318: “E por que razão a casa de cada um é sua cidadela, sua fortaleza? Será por ser defendida por muralhas? Não. Seja mesmo uma choupana, em que penetrem a chuva e o vento, o rei não pode lá entrar”. Em regra, portanto, não é permitido o ingresso na casa alheia sem o consentimento do morador, e, por conta disso, somente nas hipóteses previstas no próprio texto constitucional é que se admite exceção a tal mandamento.
Como exceções ao princípio geral, permite-se o ingresso na casa da pessoa: 1) a qualquer hora, em caso de flagrante delito, desastre ou para prestação de socorro; 2) fora de tais hipóteses, somente por meio de mandado judicial e durante o dia. Tourinho FilhoCódigo de Processo Penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2005, 9ª. ed. 2005, p. 355 indica outras exceções que, embora não previstas em lei, admitiriam o ingresso na casa alheira. Assim, aquele que invade o domicílio em legítima defesa de terceiro, vítima de agressão praticada pelo dono da casa; ou quem o faz em estado de necessidade, fugindo de um perseguidor; há, ainda, a possibilidade de adentrar a casa no cumprimento de um dever legal (visita do mata-mosquito), ou no exercício regular de um direito, como na hipótese do art. 587 do Código Civil [atual art. 1.313, inc. I], que obriga o dono da casa a consentir a entrada do vizinho, ‘quando seja indispensável à reparação ou limpeza, construção e reconstrução de sua casa’”.
Tratando-se do crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/06), devemos recordar que certas figuras típicas são permanentes, ou seja, a consumação se prolonga no tempo, admitindo o flagrante a qualquer momento. Dessa forma, o agente que, por exemplo, guarda ou tem em depósito determinada quantidade de droga em sua residência está continuamente em flagrante delito. Considerando a exceção trazida pelo próprio dispositivo constitucional a respeito da inviolabilidade do domicílio, conclui-se que o armazenamento de drogas em determinada residência permite a entrada de agentes policiais independentemente de autorização judicial.
Há contudo nessa situação um problema: nem sempre é possível ter certeza de antemão se em determinada residência há droga armazenada.
As investigações envolvendo organizações criminosas por meio das quais ocorre o comércio de drogas são normalmente extensas e se iniciam com interceptações telefônicas e diligências de campo que identificam indivíduos, veículos e locais potencialmente envolvidos nas atividades ilícitas que se pretende ver esclarecidas. Diante desses indícios, a autoridade policial representa pela expedição de mandado judicial de busca e apreensão para averiguar o interior de imóveis nos quais recai a regra da proteção constitucional. Caso os indícios se confirmem, as drogas são apreendidas e as prisões em flagrante podem ser efetuadas.
Não são poucos, no entanto, os casos em que policiais em patrulhamento rotineiro – ou mesmo em diligências de campo – deparam com indivíduos em atitudes suspeitas – normalmente próximos a pontos de venda de drogas – e iniciam uma abordagem que culmina na vistoria de imóveis residenciais sem a devida autorização judicial, baseada apenas na suspeita de que nesses locais algo ilícito pode estar sendo armazenado. Nesses casos, a jurisprudência do STJ se orienta, no geral, no sentido de que o mandado de busca e apreensão é prescindível, justamente porque se trata de crime permanente, que atrai a situação de flagrância:
“1. É dispensável o mandado de busca e apreensão quando se trata de flagrante de crime permanente, podendo-se realizar a prisão sem que se fale em ilicitude das provas obtidas. Doutrina. Precedentes do STJ e do STF. 2. No caso, o paciente foi acusado de praticar o crime de tráfico na modalidade guardar e manter em depósito substâncias entorpecentes, estando-se diante de ilícito de natureza permanente, o que legitima a medida adotada” (HC 373.388/RS, DJe 01/02/2017).
“A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que tratando-se de crimes de natureza permanente, como é o caso do tráfico ilícito de entorpecentes, prescindível o mandado de busca e apreensão, bem como a autorização do respectivo morador, para que policiais adentrem a residência do acusado, não havendo falar em eventuais ilegalidades relativas ao cumprimento da medida (HC 345.424 ⁄SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, j. 18/08/2016, DJe 16/09/2016)” (HC 326.503/RS, DJe 15/03/2017).
Recentemente, no entanto, o STJ (REsp 1.574.681/RS) flexibilizou essa orientação ao considerar ilegal a entrada de policiais em uma residência sem autorização do morador, e confirmou a absolvição que já havia sido proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No caso, o acusado de tráfico havia sido abordado na rua e, diante dos policiais, correu para sua residência. Os policiais o perseguiram, entraram no imóvel, ali encontraram certa quantidade de droga e efetuaram a prisão em flagrante.
Para o STJ, é impossível considerar lícita a violação do domicílio porque nenhuma diligência prévia indicava que na casa havia droga armazenada. O que levou os policiais a entrar na casa fora a mera intuição de que o local pudesse estar sendo utilizado para atividades ilícitas, sem, contudo, algo concreto que justificasse o afastamento da garantia constitucional. A situação de flagrância não havia sido identificada, com a segurança necessária, antes da entrada no imóvel, mas fora descoberta por acaso após a entrada. Não é possível, portanto, que o estado de flagrância identificado por mera eventualidade sirva para dar guarida retroativa à violação de domicílio que deveria ter sido precedida de ordem judicial.
Estabeleceu-se, dessa forma, que a entrada em domicílio em que recaia a suspeita de tráfico de drogas deve se basear em elementos objetivos da prática do crime, não em simples deduções a respeito do que pode estar acontecendo.
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