Há uma conhecida frase do filósofo existencialista dinamarquês SOREN KIERKEGAARD (1813-1855) asseverando que “o poder mágico das palavras não se encontra no que elas dizem, mas no ‘como’ são ditas”.
É verdade. Muita vez, não basta ter razão, é preciso saber externar e exercer essa razão. E na ambiência do Direito não é diferente.
Durante a semana que passou, foi amplamente noticiada pela imprensa (veja aqui) a prolação de uma decisão pela Justiça do Rio de Janeiro, julgando improcedente o pedido de pagamento feito por um médico contra a companhia aérea Latam.
Segundo os relatos jornalísticos, um médico que estava a bordo de um voo da aludida companhia para os EUA realizou um atendimento de emergência a bordo. O atendimento médico foi realizado e, posteriormente, o profissional da Medicina cobrou da empresa o valor dos honorários médicos. Não tendo sido ressarcido, sob o argumento de que aquele atendimento decorreria do dever profissional, foi ajuizada a demanda, que restou improcedente. É a síntese apertada (e, de certo modo, incerta) dos fatos.
Li, então, um volumoso número de comentários desabonadores da conduta do médico, basicamente fundamentados no fato de que o médico teria a obrigação legal de realizar o atendimento, como decorrência do ofício. Chegou-se a afirmar que o referido profissional estaria mostrando um lado ganancioso, por pretender remuneração decorrente de um atendimento de emergência.
Pois bem, não basta ter razão. É preciso saber demonstrar a razão.
Pelo que se publicou (sem a convicção da veracidade da informação), o pedido foi julgado improcedente sob o argumento de que o médico seria obrigado, por ofício profissional, a proceder atendimentos de emergência. Por isso, a empresa aérea (que não possuía qualquer equipamento necessário ao socorro prestado pelo médico) estaria isenta de responsabilidade.
Feitas essas considerações e, agora, analisando os fatos (ao menos aqueles que constam das notícias veiculadas), pretendo propor uma reflexão distinta daquela que se vem realizando em maioria pelas redes sociais, com absoluto respeito.
Para tanto, exorto (e, mais do que isso, encareço!) o leitor a um pensamento desatrelado de seu padrão pessoal de moralidade. Não se trata de julgar o que se faria em lugar do médico. O alto grau de subjetivismo do que seria a conduta pessoal e ideal de cada um de nós não permite um debate nesse nível. Seria demasiadamente subjetivo dizer que no lugar do médico fariamos diferente. Não estávamos lá! Não somos ele! Não tivemos a pressão de estar privados dos primeiros momentos de férias. Não ficamos submetidos à pressão de prestar socorro a alguém.
Tenciono uma análise por outro ângulo, através de uma perspectiva distinta, como diriam os arquitetos. Um ângulo diferente.
Até porque cada pessoa, seguramente, teria um reação distinta no caso, não sendo possível exigir de outro que fizesse o comportamento por nós desejado. E, por isso, ao jurista cabe uma análise objetiva, sem considerações morais.
Não me parece relevante discutir se o médico tinha de realizar o atendimento emergencial a bordo de uma aeronave, onde se encontrava em voo internacional, a caminho do gozo de férias. Ali, não estava um médico apenas, mas, por igual, um consumidor. E que, atendendo a uma provocação da companhia aérea realizou um espontâneo atendimento de alguém que passava mal. E mais: o fez eficientemente, solucionando o problema de saúde e permitindo a outro consumidor que chegasse ao seu destino com integridade física e psíquica.
Não há razão para indagar sobre o (milenar) Juramento de Hipócrates. Até porque o atendimento foi realizado, não havendo motivo para alegações de que o profissional o teria afrontado.
Mas, interessa (e muito!) onde se encontrava o paciente em emergência: ele não estava no meio da via pública, em sua própria casa, ou em espaços coletivos. Estava a bordo da aeronave da maior companhia aérea do Brasil (aliás, do Chile!), em voo internacional, gerador de lucro. Esse fato não pode ser olvidado!
O médico, que ali era consumidor, foi provocado a realizar um atendimento de emergência a bordo de uma aeronave privada da Latam. Os prepostos da empresa aérea não tinham sido treinados para tanto! Tanto não foram treinados (mesmo sendo do conhecimento dos executivos da companhia que TODOS os voos para os EUA duram mais do que 10horas) que pediram ajuda a ALGUM PASSAGEIRO FORMADO EM MEDICINA, mesmo que não fosse daquela especialidade.
UMA AJUDA!!!! UM SUPLÍCIO!!!! Não apenas para o passageiro que passava mal. Um suplício para a empresa que teria de tomar alguma providência, PARA PRESTAR SOCORRO!!! Não se olvide: a empresa teria de prestar socorro, por meio de um pouso forçado.
O médico, então, supriu uma carência da empresa.
Não se tratava de alguém que passou mal na praia ou em logradouro público qualquer. Se assim fosse, como não haveria possibilidade de imputação de responsabilidade civil ao Estado (pela inexistência de nexo causal), não se poderia cogitar de compensação financeira ao médico.
Todavia, o atendimento ocorreu a bordo de uma aeronave privada, cuja venda de passagens tem finalidade lucrativa. E, por conta disso, essa empresa teria de prestar socorro ao consumidor CASO NÃO TIVESSE NENHUM PASSAGEIRO A BORDO!
Aliás, chegando ao ponto fulcral da análise, a meu sentir, caso houvesse um dano ao consumidor a companhia aérea responderia civilmente, como prevê o art. 17 da Convenção de Montreal, que foi incorporada ao sistema jurídico do Brasil pelo Decreto 5.910/06. Inclusive, recentemente o STF reconheceu que o citado tratado internacional prevalece, inclusive, sobre a legislação interna brasileira, garantindo o cumprimento dos compromissos jurídicos no plano internacional do País (STF, ARE 766.618/SP, rel. Min. Luis Roberto Barroso). Dessa forma, a empresa poderia, sim, ser responsabilizadas por danos sofridos pelos seus passageiros a bordo de suas aeronaves.
De todo modo, já me antecipando à contra-argumentação, passo a considerar o caso fortuito/força maior.
De fato, um consumidor pode sofrer um ataque à saúde, estando em aeronaves, por um fortuito. Nesse caso, seria possível sustentar a irresponsabilidade da companhia aérea pelo rompimento do nexo causal. Verdade! Todavia, há um outro ponto de vista a se considerar. É que mesmo isenta de responsabilidade pelo eventual fortuito externo, a empresa continuaria obrigada a prestar socorro à emergência pela qual estava a passar seu consumidor, inclusive por argumentos éticos bem similares àqueles exigidos dos médicos.
Se a empresa aérea, por exemplo, tendo um consumidor enfartado a bordo não fizesse eventual pouso emergencial, responderia pela relapsia.
Sendo assim, a empresa precisaria dedicar esforços e atuação efetiva para salvá-lo da situação emergencial. Ora, considerando que não houvesse qualquer médico a bordo, se imporia à empresa pousar a aeronave no aeroporto mais próximo, para prestar socorro ao paciente/consumidor. Por óbvio, um pouso forçado que resultaria em prejuízo (direto e indireto) à empresa. Milhares de dólares, certamente.
E não se perca de vista a percepção de que estamos falando de um voo entre o Brasil e a América do Norte. Não se trata de voo transatlântico, com milhares de quilômetros de Águas a separar os territórios, sem local de pouso. Nesse caso, não faltariam opções seguras para pousos de emergência – fato que reclama ser considerado.
Pois bem, vistas as coisas dessa perspectiva, notando que o efetivo atendimento realizado pelo médico (independentemente de concretizar um juramento etico-profissional) produziu vantagem econômica direta para a empresa aérea, não tenho dúvidas de que o ressarcimento é necessário, sob pena de enriquecimento sem causa, vedado peremptoriamente pelos arts. 884 a 886 do CC/02. Isso porque se a Latam obteve alguma vantagem patrimonial (porque não precisou fazer um pouso emergencial), precisa recompensar quem atuou no sentido de resolver a situação que imporia o pouso.
Aliás, tomo o ensejo para chamar a atenção para um aspecto técnico que passa despercebido pelo olhar do jurista: o que se proíbe nas relações privadas é o enriquecimento SEM CAUSA – e não o enriquecimento ILÍCITO. Com isso, acentua-se que o efeito jurídico pode decorrer de condutas lícitas. O que se deseja coibir é que alguém tenha vantagem econômica sem correspondência causal. Voltando o olhar para o caso vertente, tem-se que se a companhia aérea obteve vantagem econômica, ela precisa ressarcir quem atuou para produzir tal resultado, sob pena de enriquecer sem causa.
Situações bem assemelhadas podem ser lembradas com o advogado designado para atuar “ad hoc”, que tem direito a uma remuneração, a ser custeada pelo Estado, em decorrência da assistência gratuita. Outrossim, até mesmo o possuidor de má-fé (como no exemplo do esbulhador) faz jus ao ressarcimento das benfeitorias necessárias realizadas (CC 1.215). Em ambas as situações o fundamento é a proibição de enriquecimento sem causa.
Vistas as coisas por esse ângulo, longe de perquirições valorativas acerca de promessas profissionais (que não interessam ao caso, até porque o médico realizou, sim, o atendimento), parece que o resultado há de ser outro…
Para além de tudo isso, confesso ter uma enorme dificuldade de raciocínio para entender como se ignora que essa empresa que tenta transferir ao consumidor a SUA RESPONSABILIDADE de cuidar dos seus consumidores é a mesma que não se organiza para dar seus funcionários treinamento adequado para atender emergências.
Ou seja, considerada essa perspectiva, distinta da moralidade e centrando a visão em análise jurídica, o resultado é bem diverso. Talvez porque, como bem Refletiu o próprio KIERKEGAARD, “não existe verdade verdadeira, que não seja subjetiva”….