No processo penal, uma das medidas de que se pode fazer uso é a condução coercitiva, que ocorre quando o investigado, o acusado, a testemunha ou mesmo a vítima são compulsoriamente levados à presença da autoridade policial ou judicial para que tomem parte em determinado ato que deve se desenvolver no inquérito policial ou na ação penal.
Do rol dos que podem ser conduzidos sob vara, certamente os que despertam maior controvérsia são os investigados e os acusados. Isto porque ao contrário, por exemplo, de uma testemunha, que é obrigada a depor – e a dizer a verdade –, ao agente investigado ou acusado por um crime se aplica a máxima de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), do que decorre o direito ao silêncio. Dessa forma, a não ser em casos nos quais a presença do agente seja realmente imprescindível – como no reconhecimento pessoal, por exemplo –, argumenta-se que a condução coercitiva para interrogatório ofende a mencionada garantia. O não atendimento de intimação para interrogatório acha-se inserido no direito de não se autoincriminar.
E, com efeito, se o agente pode negar-se a responder a qualquer pergunta quando interrogado, sendo que esse silêncio “não importará em confissão” e “não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa” (art. 186, parágrafo único do CPP); se se reconhece mesmo o direito de mentir, desde que não se configurem os crimes de denunciação caluniosa ou comunicação falsa de crime ou de contravenção; enfim, se pode o réu preferir não ser interrogado, que sentido faz sua condução sob vara para que compareça… para ser interrogado?
O debate se intensifica diante de conduções coercitivas ultimamente determinadas em operações investigatórias de grande dimensão, nas quais os juízes, interpretando extensivamente o disposto no art. 260 do CPPSe o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença., e com base no poder geral de cautela, expedem mandados para que investigados sejam conduzidos de forma compulsória independentemente de prévia intimação. A justificativa para essas medidas de condução coercitiva reside na viabilidade da investigação, pois na medida em que diversos investigados sejam conduzidos ao mesmo tempo, evitam-se a combinação de versões a respeito dos fatos apurados e a destruição de provas.
Nessa esteira, ajuizaram-se no STF duas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs 395 e 444) para que se declarasse a não recepção, pela Constituição Federal, do art. 260 do CPP. Na ADPF 395, a condução coercitiva para interrogatório era atacada tanto na investigação quanto na instrução criminal e se pleiteava a declaração da inconstitucionalidade da medida como cautelar autônoma concedida para a inquirição de suspeitos, indiciados ou acusados. Já a ADPF 444 buscava a declaração de inconstitucionalidade apenas da condução coercitiva para interrogatório em fase de investigação policial. E, subsidiariamente, pedia-se que se declarasse inconstitucional a interpretação extensiva para a aplicação da condução coercitiva em situações que extrapolam os estritos termos do art. 260 do CPP.
O ministro Gilmar Mendes, relator das ações, deferiu em 18/12/2017 medida liminar (com fundamento no art. 5º, § 1º, da Lei 9.882/99 – caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave) “para vedar a condução coercitiva de investigados para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. Segundo o ministro, justificava-se a medida liminar diante do grande número de conduções coercitivas determinadas no curso de investigações policiais e da relevante restrição a direito individual que o procedimento representa.
Em seu voto sobre o mérito das arguições, o ministro reiterou a fundamentação da medida liminar e decidiu que a condução coercitiva para interrogatório é incompatível com a Constituição Federal. Em síntese, afirmou que a forma como têm se dado as conduções constitui indevida restrição da liberdade de locomoção – pois força o investigado a comparecer em um ato ao qual não está obrigado – e violação da presunção de não culpabilidade, tendo em vista que o investigado surpreendido por uma ordem de condução sem nenhuma intimação prévia é claramente tratado como culpado. Fez também referência à violação do princípio da não autoincriminação, do direito de defesa – pois a condução-surpresa pode restringir o acesso à assistência de advogado – e do princípio da dignidade da pessoa humana. E, ainda que fosse considerada viável a condução para interrogatório, seria imprescindível a estrita observância do art. 260 do CPP, que pressupõe o descumprimento de prévia intimação.
O relator foi seguido pela ministra Rosa Weber, que excluiu expressamente do âmbito da decisão as conduções coercitivas relativas à qualificação e ao reconhecimento de investigados.
O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, não julgou o dispositivo legal incompatível com a Constituição Federal, mas impôs critérios para que as conduções coercitivas sejam determinadas: a prévia intimação descumprida e as garantias ao silêncio e à assistência de advogado.
O ministro Fachin votou no sentido de que condução coercitiva não é incompatível com a ordem constitucional, mas só pode ser determinada se cumpridos os termos do art. 260 do CPP – intimação prévia e seu descumprimento – ou para evitar a imposição de medidas como as prisões cautelares – neste caso, a condução pode se dar independentemente de prévia intimação. Também votou desta forma o ministro Luís Roberto Barroso.
Para o ministro Luiz Fux, a condução coercitiva é constitucional, tanto na forma do art. 260 do CPP quanto na decorrente do poder geral de cautela. Fazendo referência a diversas decisões emanadas de cortes dos Estados Unidos – onde o direito ao silêncio é garantido pela 5ª emenda há mais de dois séculos –, o ministro afirmou que o direito de o investigado não produzir provas contra si não abarca a possibilidade de destruição de provas. O Estado tem o direito fundamental de fazer valer o sistema penal evitando que investigados criem estratagemas para se furtar à aplicação da lei. Na sua visão, assegurados os direitos ao silêncio, à presença de advogado e à integridade física e psíquica, a condução coercitiva pode ser decretada com fundamento semelhante àqueles estabelecidos no art. 319 do CPP para medidas cautelares diversas da prisão. Afinal, se pode o juiz proibir ou acesso ou a frequência a determinados lugares, ou mesmo a manutenção de contato do agente com pessoa determinada porque essas restrições podem evitar embaraços para a investigação e para a ação penal, não há razão para considerar indevida uma medida até menos drástica – pois momentânea – que serve ao mesmo propósito.
O ministro Dias Toffoli, por outro lado, acompanhou o relator pela procedência das arguições afirmando que o juiz criminal está estritamente vinculado às hipóteses legais de restrição da liberdade, razão pela qual não pode determinar medida cautelar restritiva do direito de ir e vir que não esteja expressa na lei instrumental. Para o ministro, portanto, o art. 260 do CPP não pode ser interpretado extensivamente para que se determine, com base no poder geral de cautela, a condução forçada do investigado à presença da autoridade, ainda que sob o pretexto de preservar provas ou até mesmo de não decretar medidas mais graves como a prisão cautelar.
Na mesma linha seguiu o ministro Ricardo Lewandowski, para quem, no processo penal, não há medidas cautelares inominadas nem tem o juiz poder geral de cautela, inclusive porque o processo é instrumento limitador do poder estatal – não o contrário –, que deve ser pautado pela estrita observância do princípio da legalidade e da tipicidade dos atos. Afirmou ainda que, mesmo no caso de prévia intimação não atendida, não parece razoável conduzir coercitivamente o investigado, que tem direito ao silêncio e cuja ausência deve ser interpretada como exercício desse direito.
Também não destoou destas conclusões o ministro Marco Aurélio, que iniciou o voto afirmando que a interpretação é um ato de vontade, mas sempre vinculado à lei. Não é possível, só por se tratar de um ato de vontade, estabelecer critérios interpretativos de oportunidade, por melhores que sejam os objetivos, pois, em Direito, o meio justifica os fins, não o contrário.
A partir do raciocínio de que a condução coercitiva é uma forma de prisão – pois caracteriza cerceamento da liberdade de ir e vir, ainda que momentaneamente –, o ministro a considerou incompatível com a Constituição Federal. Para ele, a medida é ineficaz para os fins declarados – já que o investigado tem o direito de não se pronunciar –, confrontando-se com outras medidas restritivas de liberdade, como as prisões temporária e preventiva, que exigem situações concretas, escancaradas para fundamentar a restrição da liberdade e que têm requisitos específicos que justificam o ato gravoso a direitos fundamentais. Por estas razões, considerou que a condução forçada para interrogatório não foi recepcionada pela Constituição Federal.
O ministro Celso de Mello afirmou que o processo penal é uma garantia instrumental do cidadão – que deve ter assegurados os meios e recursos de defesa –, e por isso mesmo não pode converter-se em instrumento de arbítrio estatal. A condução coercitiva não se esgota em si, objetiva fins estabelecidos pela legislação, e, no caso de investigados ou acusados, é feita para viabilizar o interrogatório. Ocorre que tais agentes não são simples objetos de investigação ou processo, são sujeitos de direitos que podem se manter em silêncio; não podem ser tratados como culpados; e podem se recusar a participar – ativa ou passivamente – de procedimentos que eventualmente lhes acarretem prejuízo. Não são obrigados, enfim, a cooperar com a apuração de fatos criminosos.
Se é assim, não se justifica a imposição de medida que compele o indivíduo a comparecer em um ato no qual não está obrigado a tomar parte. Assim como Marco Aurélio, observou que a condução coercitiva é uma espécie de restrição de liberdade – com natureza jurídica de cautelar de coação pessoal – e lembrou lição de Hélio Tornaghi no sentido de que o sujeito submetido ao procedimento fica em estado de apreensão, sob vigilância da autoridade, até que o ato para o qual foi conduzido seja declarado finalizado.
Concluiu o ministro, dessa forma, que a condução coercitiva para interrogatório (excluída, portanto, aquela promovida para reconhecimento ou para qualificação criminal) é incompatível com a Constituição, pois fere o direito à não autoincriminação (da qual o direito ao silêncio é apenas uma das projeções) e a presunção de inocência.
Por fim, a ministra Cármen Lúcia considerou o art. 260 do CPP compatível com a Constituição Federal. Abusos eventualmente cometidos por descumprimento dos termos da lei instrumental devem ser resolvidos de acordo com a legislação, mas não podem impedir a vigência do procedimento da condução coercitiva. O Estado deve ter a seu dispor as medidas adequadas para lidar com fatos criminosos, com a óbvia condição de que a implementação observe os postulados constitucionais que asseguram liberdades individuais como o direito ao silêncio.
A ministra acompanhou, no mais, o voto de Edson Fachin para estabelecer a necessidade de intimação prévia desatendida e também para admitir a determinação de condução coercitiva para evitar a imposição de medidas mais graves.
Tem-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal julgou, por maioria, procedentes as arguições de descumprimento de preceito fundamental para pronunciar a não recepção, pela ordem constitucional, da condução coercitiva para interrogatório, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e penal da autoridade e da invalidação das provas obtidas por meio do ato ilegal, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Consignou-se que a decisão não atinge interrogatórios realizados sob condução coercitiva até a data do julgamento, ou seja, não devem ser decretadas nulidades de atos praticados antes do pronunciamento do tribunal.
A nosso ver – e como já adiantamos na introdução –, a condução coercitiva para interrogatório é mesmo incompatível com a Constituição Federal. Afinal, se o agente tem o direito de permanecer calado e, no geral, de não colaborar para a apuração do crime produzindo prova contra si mesmo, não é razoável forçá-lo a comparecer perante a autoridade para que esse direito seja exercido formalmente no momento da realização do ato inquisitivo.
E, ainda que se admita a possibilidade de condução coercitiva, é inegável que a letra expressa do art. 260 do CPP a permite tão somente “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório”. Por mais sedutores que sejam as argumentos de que a medida é importante para viabilizar a obtenção de provas, o fato é que se trata de algo não contemplado no ordenamento jurídico. Não convence, ademais, a solução formulada com base no poder geral de cautela, que, como alertado por alguns dos ministros, não pode ser aplicado em tema tão sensível como a liberdade de locomoção, restringível apenas e tão somente diante de hipóteses taxativamente elencadas na lei instrumental.