A colaboração premiada é um tema que ganhou notoriedade em nosso país nos últimos anos por ter sido utilizada com frequência na investigação de crimes relativos à chamada “Operação Lava Jato”. Isto porque, em decorrência de acordos de colaboração premiada foi possível a persecução criminal de fatos e pessoas em dimensão inédita na história nacional. Cuida-se de um instituto derivado do fenômeno designado “Direito Penal Premial ou Justiça NegociadaSobre a Justiça Negociada ou Direito Penal Premial, Márcio Barra Lima disserta que “A utilização da técnica legislativa premial no campo penal ficou conhecida como “Direito Penal Premial”, a despeito da reprimenda científica no sentido de não se constituir em ramo autônomo da ciência do Direito, inserindo-se no bojo do Direito Penal ou do Processo Penal, dependendo do delineamento normativo que lhe seja dado (...) Importante destacar que, dentro do que se definiu como “Direito Penal Premial”, percebe-se que o uso de técnicas premiais como instrumento de suporte à atividade estatal de persecução penal não coincide ontologicamente – ao menos de modo integral – com figuras premiais de cunho penal-material dispostas em muitos códigos penais de países ocidentais alinhados à tradição jurídica romano-germânica, tais como o arrependimento eficaz e a desistência voluntária, albergados, v.g., pelo artigo 15 do Estatuto repressivo pátrio. As figuras premiais de teor puramente penal-material incentivam um retrocesso no desenvolvimento da conduta ofensiva de bens jurídicos, cuja lesão ou perigo de lesão ainda estejam em andamento, ou seja, estimulam um “regresso ofensivo” executado pelo próprio agente da conduta delituosa, durante o curso da ação, legitimando a inclusão de figuras delitivas premiais no Código Penal. De sua parte, as técnicas recompensatórias de auxílio à atividade de persecução criminal, a despeito de seus inequívocos reflexos no Direito Penal substancial (previsão de causas de redução de pena e extinção da punibilidade), encaixam-se ontologicamente com mais facilidade no âmbito do Direito Processual Penal do que no Direito Penal” (Trecho do artigo “A colaboração premiada como instrumento constitucionalmente legítimo de auxílio à atividade estatal de persecução criminal” da obra Garantismo Penal Integral. São Paulo: Atlas, 2015. Págs. 306-308).”.
Há quem sustenteNeste sentido, James Walker Jr e Lucas O.M. Azeredo da Silveira dissertam que “Em que pese o instituto tenha tido uma introdução maciça no Brasil na década de 1990, época em que essa ideologia teve o seu apogeu no país, sobretudo com o advento da Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90), a delação premiada já integrara o Ordenamento Jurídico pátrio, à época das Ordenações Filipinas, no longínquo ano de 1603. Aos crimes de lesa majestade, havia previsão do perdão àquele que delatasse os demais conspiradores do Rei, antes que a Coroa os identificasse, exceto se fosse o líder do complô.” (“O instituto da colaboração/delação premiada e sua compatibilidade perante o ordenamento jurídico brasileiro”, em artigo publicado na obra Delação Premiada: estudos em homenagem ao Ministro Marco Aurélio de Mello. 2ª Edição. Belo Horizonte: ed. D´Plácido, 2017. Pág. 712). que a colaboração premiada no Brasil remonta às Ordenações Filipinas, no longínquo ano de 1603. Todavia, o marco normativo contemporâneo da colaboração premiada em nossa ordem jurídica ocorreu com o advento da Lei 8.072, de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), cujo artigo 8º, parágrafo único, ao tratar do delito de associação criminosa para a prática de crimes hediondos previu “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou a quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.
Na sequência, outras legislações brasileiras posteriores trataram da colaboração premiada, a exemplo da Lei 9.613Na sua redação original, o §5º, do artigo 1º, dispunha que: “§ 5º A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.” A partir de 2012, com a redação dada pela Lei nº 12.683, o dispositivo passou a prever que “§ 5o A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.”., de 1998 (que trata sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores etc.), a Lei 11.343, de 2006Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços. (conhecida como Lei de Drogas) etc. Entretanto, a Lei nº 12.850, de 2013 (“Lei das Organizações Criminosas”) pode ser considerada a “norma geral” do instituto, tendo sido até os dias atuais o diploma legal mais completo em nossa ordem jurídica sobre o tema, traçando as suas linhas gerais e aspectos procedimentais.
A propósito, Humberto Dalla Bernardina de Pinho DE PINHO, Humberto Dalla Bernardina e PORTO, José Roberto Sotero de Mello. Colaboração premiada: um negócio jurídico processual? (artigo publicado na obra Delação Premiada: estudos em homenagem ao Ministro Marco Aurélio de Mello. 2ª Edição. Belo Horizonte: ed. D Plácido, 2017. Págs. 124-125). e José Roberto Sotero de Mello Porto dissertam que:
Embora existam outras fontes normativas para o instituto, é inegável que o protagonismo ora verificado coincide com a vigência da Lei 12.850/13, em que o tratamento do tema é melhor esmiuçado, gozando, por essa razão, de caráter paramétrico até mesmo para as demais hipóteses. O legislador, de fato, tratou quase que à exaustão do procedimento e dos requisitos para a colaboração, no artigo 4º da Lei das Organizações Criminosas. Identificou, por exemplo, todos os específicos casos de colaboração (onde a delação está apenas no inciso I), elencou amplo rol de benefícios no caput, estabeleceu minúcias formais, como o próprio termo de colaboração (artigo 6º), bem como os efeitos processuais, inclusive para o magistrado, do acordo.
Em sede de controle difuso de constitucionalidade, o Supremo Tribunal FederalHC 127483, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 03-02-2016 PUBLIC 04-02-2016) já assentou que no tocante à natureza jurídica a colaboração premiada “é um negócio jurídico processual”,
[…] uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração.
Além disso, ainda no referido (e emblemático) acórdão supracitado, o Supremo Tribunal Federal assentou que:
Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no “relato da colaboração e seus possíveis resultados” (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13)
Portanto, o delineamento do instituto e alguns pontos importantes acerca de sua prática forense já estão sendo tratados pela jurisprudência brasileira. Todavia, subsistem relevantes polêmicas em torno do assunto no tocante à sua compatibilidade com o texto constitucional e tratados“(...) diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da CF/1988 sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada (...), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao PIDCP (art. 11) e à CADH — Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da CF/1988, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.” (RE 466.343, voto do rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60) internacionais de direitos humanos.
Ainda, advirta-se que por mais bem intencionados que sejam os intérpretes, a legislação infraconstitucional deve estar em conformidade com a Constituição de um determinado país, e não o contrárioIsto porque, conforme o sempre atual ensinamento “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior”. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. (tradução João Baptista Machado). 6ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998. – (Ensino Superior). Pág. 135.. Com efeito, questões de política criminal e anseios sociais pelo combate à corrupção devem ser balizados pelos condicionamentos próprios de um Estado Democrático de Direito, no qual o respeito à norma maior – Constituição – é pressuposto de existência e validade de suas ações.
Ademais, reputa-se mais adequada a expressão “colaboração premiada” do que “delação premiada” (utilizadas indistintamente nos meios de comunicação). Isto porque o termo “colaboração” denota maior amplitudeEm outra acepção, mas também com enfoque na abrangência da contribuição, leciona Luiz Flávio Gomes “Não se pode confundir delação premiada com colaboração premiada (sem delação). Esta é mais abrangente. O colaborador da Justiça pode assumir culpa e não incriminar outras pessoas (nesse caso, é só colaborador). Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e delatar outras pessoas (nessa hipótese é que se fala em delação premiada).” Artigo publicado no site https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2108608/justica-colaborativa-e-delacao-premiada de contribuição com a justiça do que tão somente a incriminação (“delação”) dos demais coautores do fato criminoso, abrangendo, por exemplo, a recuperação de valores desviados do erário, a localização da vítima com a integridade física preservada etc.
Por fim, adota-se a conceituação da colaboração premiada como “negócio jurídico personalíssimo e complexoEm acepção semelhante, “Compreendida como instituto complexo e poliforme, com híbrida natureza penal e processual, a colaboração premiada é uma técnica de investigação e meio de prova sustentada na cooperação de pessoa suspeita de envolvimento nos fatos investigados; inserida no ordenamento jurídico como mecanismo de justiça consensual, buscando o ingresso cognitivo dos órgãos de persecução penal no interior de atividades criminosas a partir da ampla confissão e de revelações do colaborador, sendo que a atitude cooperativa advém da expectativa de prêmio consistente em futura amenização da punição, em vista da relevância da informação voluntariamente prestada.” (PEREIRA, Frederico Valdez. Delação Premiada, legitimidade e procedimento. Curitiba: Juruá, 2016. Págs. 193-194)., de natureza processual e penal, formalizado entre o Estado e o suposto autor de um ato delituoso que tem por premissa a assunção de participação delituosa (culpa com relação ao fato) e por objeto a cooperação na persecução criminal com vistas à obtenção de meios de prova pelo órgão de persecução criminal e benefícios (prêmios) pelo agente colaborador”.