O acesso à justiça constitui requisito fundamental de um sistema jurídico que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos. Sem o direito de acesso à justiça os demais direitos seriam essencialmente ilusórios.[1]
Assim, observe-se que, tecnicamente, o direito de acesso à justiça, muito mais do que um direito propriamente substancial, serve ao ordenamento jurídico na qualidade de garantia fundamental, ou seja, atua como verdadeiro instrumento constitucional para a garantia dos demais direitos fundamentais constitucionalmente previstos.[2] Tal afirmativa, contudo, em nada reduz sua importância. Pelo contrário, impõe um conjunto de esforços e medidas do Estado e da sociedade civil na sua promoção.
No entanto, ao tratar do direito fundamental do acesso à justiça no ordenamento jurídico pátrio, comumente, menciona-se apenas o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, da CRFB). É verdade que, quando falamos em acesso à justiça, há uma imediata associação com a atividade estatal de solução de litígios tradicionalmente desempenhada pelo Poder Judiciário. A expressão “acesso à justiça”, contudo, vem passando por intenso processo de ressignificação. O conceito, por isso mesmo, deve ser tido como muito mais amplo, abarcando outros tantos métodos (e instituições) igualmente adequados para solução dos litígios e promoção de direitos.
Buscando superar qualquer visão reducionista, há muito já sustenta Kazuo Watanabe[3] que a problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. O célebre jurista vai além. Em recente entrevista ao Conjur, afirmou que “Quando falo nisso, trato da atualização do conceito de acesso à justiça (…) para não significar somente acesso ao Poder Judiciário. Os cidadãos têm direito de ser ouvidos e atendidos, não somente em situação de controvérsias, mas em problemas jurídicos que impeçam o pleno exercício da cidadania, como nas dificuldades para a obtenção de seus documentos ou de seus familiares ou os relativos a seus bens.”
Nesse sentido, adotando taxativamente o modelo público de assistência jurídica, a Constituição Federal impôs à Defensoria Pública (e somente a ela) a função de defesa, integral e gratuita, da população hipossuficiente. Sob um prisma igualitário, portanto, assume-se uma dívida histórica com a camada mais pobre da população, franqueando-lhes o direito de acessar ao justo, que agora se sabe não se confundir com o mero acesso ao Poder Judiciário.[4]
Em outras palavras: o acesso à justiça deve ser entendido não só como acesso aos Tribunais, mas também como acesso ao exercício pacífico e pleno dos direitos e, em especial, dos direitos fundamentais, bem como as diversas alternativas para a resolução pacífica dos conflitos sociais.[5]
Para sua efetivação, portanto, optou o constituinte por um modelo público de realização do direito de acesso à justiça, a ser garantido por instituição pública, de caráter permanente e dotada de autonomia administrativa, financeira e funcional, composta de integrantes admitidos por concurso público de provas e títulos. Quis assim a Constituição que se tratasse de serviço público de prestação de assistência jurídica integral a envolver atuação judicial e extrajudicial: educação em direitos, orientação jurídica, defesa individual e coletiva em todos os campos do Direito.
Isso porque a efetividade do direito de acesso igualitário à justiça possui como pressuposto não apenas a proibição de qualquer mecanismo ou barreira que impeça o exercício do direito de ação, mas também apresenta uma dimensão positiva, que se traduz exatamente na obrigação imposta ao Estado de assegurar que todos tenham condições efetivas de postular e de defender seus direitos perante o sistema de justiça, independentemente de sua condição de fortuna.
Após o processo de redemocratização na América Latina e no Brasil, em especial com a Constituição de 1988, inúmeros instrumentos foram criados para conferir concretude aos direitos fundamentais, especialmente em relação aos cidadãos historicamente excluídos e marginalizados. Surge a consequente necessidade de criação e desenvolvimento de mecanismos capazes de deflagrar a atuação de todo um sistema de justiça, garantindo o amplo e irrestrito acesso à ordem jurídica.
Ou seja, há uma flagrante vinculação temática entre acesso à justiça e Defensoria Pública, instituição criada e vocacionada constitucionalmente para sua concretização. Em sua perspectiva mais ampla, o acesso à justiça visa incluir o cidadão que está à margem do sistema e, sob o prisma da autocomposição, objetiva estimular, difundir e educar o assistido a melhor resolver conflitos por meio de ações comunicativas, ciente de que a garantia constitucional abrange não apenas a prevenção e a reparação de direitos, mas a realização de soluções negociadas e o fomento da mobilização da sociedade para que possa participar ativamente tanto dos procedimentos de resolução de disputas como de seus resultados.[6]
É evidente, portanto, que a Defensoria Pública tem um trabalho destacado na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, especificamente no que tange à assistência jurídica integral e gratuita, que possibilita o acesso, sobretudo dos vulneráveis (mas não apenas), à justiça.
A necessidade que pauta o atual agir do Defensor Público, como se percebe, não é exclusivamente econômica. É a carência de cidadania que deve orientar o agir e legitimar o ato de “defensorar”. Há, ainda, uma inversão da lógica: não é a justiça da causa que permite a atuação do Defensor Público, mas sim a atuação dele que poderá tornar uma atuação estatal justa.[7]
A Defensoria Pública, então, é verdadeira metagarantia, ou seja, uma garantia das garantias, tendo a incumbência constitucional de atuar na promoção dos direitos fundamentais, na busca pelo justo e por mais cidadania.
Todo o sistema de justiça, e em especial a Instituição, deve se configurar como um instrumento para a defesa efetiva dos direitos substanciais das pessoas em condição de vulnerabilidade. Afinal, as pessoas em condição de vulnerabilidade encontram ainda mais obstáculos para o seu exercício. Por isso, dever-se-á levar a cabo uma atuação ainda mais intensa para vencer, eliminar ou mitigar as ditas limitações.
No Brasil, é verdade, adota-se o sistema de jurisdição una, em que do Poder Judiciário emana a última palavra (ao menos naquela rodada deliberativa) em matéria de direito. No entanto, a LC 80/94, o CPC/2015 e inúmeras outras normas (com fundamento último na Constituição e na normativa internacional) fomentam a resolução dos conflitos sociais prioritariamente por métodos diversos, como a negociação, a mediação e a conciliação, cabendo à Defensoria Pública também esse papel de dirimir os conflitos e pacificar a sociedade, afastando a litigância judicial de toda e qualquer demanda.
Isso porque, da mesma forma que acesso à justiça não se confunde com acesso ao Poder Judiciário, assistência jurídica (integral e gratuita) é conceito muito mais amplo que assistência (meramente) “judiciária”. Por isso, o art. 4º, inciso II, da LC 80/94, afirma ser função institucional “promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos”, o que está em sintonia com as normas fundamentais do CPC/15.
O Estado recorrer primariamente ao Poder Judiciário também é uma forma de incapacidade na gestão dos serviços públicos, os quais devem estar voltados, sempre que possível, ao exame do conflito originário e à devolução do poder de decisão às pessoas em conflito, como propõem os processos de autocomposição.
Mais do que mera via alternativa para o desafogo do Poder Judiciário, a solução extrajudicial de conflitos revela-se como instrumento que vivifica os processos de educação em direitos e difusão de cidadania. Afinal, as dinâmicas de autocomposição do litígio são eficazes em promover não só a inserção, como também o engajamento participativo e responsável do sujeito na busca pela solução do litígio em que se veja envolvido, ainda que involuntariamente.
A análise, aliás, não deve se restringir apenas ao acesso em si, mas também à efetividade da justiça, abarcando, não só o ingresso do cidadão ao sistema de justiça, mas também a qualidade material e temporal de saída desse aparato. A garantia exige, portanto, a concepção de instrumentos e instituições hábeis a lidar, de maneira completa e ágil, com esses interesses.
Ademais, medidas como educação em direitos e simplificação da linguagem jurídica, para que cada vez mais cidadãos possam se valer subversivamente da linguagem do poder na luta por emancipação, vêm sendo amplamente discutidas atualmente.
Concluímos, inspirados nas lições dos Defensores gaúchos Domingos Barroso e Arion Escorsin[8], que a Defensoria Pública e, logo, o Defensor Público, para muito além de ser o advogado do pobre, reflete e congrega, em boa medida, todos os esforços e tendências de ampliação do acesso à justiça destacados pela academia na literatura construída sobre o tema. Assim, deve a Defensoria Pública romper com o modelo judicializante e baseado no litígio que sempre norteou o meio político, social e jurídico de solução de conflitos para estabelecer novas balizas de atuação, pautadas na desjudicialização e na prevenção do litígio, com a conscientização cidadã e educação em direitos, o que é, sem dúvida, mais eficaz em termos de pacificação social, escopo primeiro de um sistema de justiça que se pretende democrático.
NOTAS:
[1] ESTEVES, Diogo; ROGER, Franklyn. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1.
[2] GIUDICELLI, Gustavo. Defensoria como metagarantia: transformando promessas constitucionais em efetividade, p. 6.
[3] Entrevista disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jun-09/entrevista-kazuo-watanabe-advogado>. Acesso em: 8 de agosto de 2019.
[4] AZEVEDO, Júlio Camargo. Prática Cível para Defensoria Pública. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018, p. 28.
[5] DOS SANTOS, Denise Tanaka. Efetividade e interpretação das “100 Regras de Brasília”, p. 3.
[6] DA COSTA, Domingo Barroso; DE GODOY, Arion Escorsin. Educação em Direitos e Defensoria Pública. Curitiba: Juaruá, 2014, p. 20.
[7] CERVO, Carolina; NEWTON, Eduardo. Aos guerreiros e guerreiras que Defensoram por todo país. Disponível em: <http://www.justificando.com/2015/05/25/aos-guerreiros-e-guerreiras-que-defensoram-por-todo-pais>. Acesso em: 8 de agosto de 2019.
[8] DA COSTA, Domingo Barroso; DE GODOY, Arion Escorsin. Opus citatum, p. 84.