O art. 9º da Lei 11.340/06 disciplina a assistência à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Os mecanismos de assistência tripartem-se em: (a) assistência social (Lei 8.742/1993), com inclusão da ofendida no cadastro de programas assistenciais dos governos federal, estadual e municipal; (b) saúde, prestada por meio do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080/90), compreendendo o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual; (c) segurança pública, garantindo à vítima proteção policial, bem como abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida, e, se necessário, acompanhamento da ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar.
O tratamento médico é certamente a modalidade de assistência prestada com mais frequência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Mesmo com falhas e limitado pelos conhecidos problemas estruturais, o Sistema Único de Saúde é diariamente acionado para proporcionar o imediato socorro médico à vítimas de violência. Isto, evidentemente, onera ainda mais o orçamento do sistema público de saúde, que, além de atender a milhões de pacientes enfermos, é obrigado a multiplicar seus esforços para tratar vítimas de ferimentos infligidos no âmbito doméstico e familiar.
A solução encontrada para ao menos tentar amenizar o impacto provocado no Sistema passa pela imposição de que o agressor pague o custo correspondente ao atendimento dispensado à sua própria vítima. É com este propósito que entrará em vigor a Lei 13.871/19, que insere no art. 9º da Lei 11.340/06 os §§ 4º, 5º e 6º para dispor a respeito do ressarcimento de despesas decorrentes da assistência prestada a vítimas de violência doméstica.
De acordo com o § 4º, quem, por ação ou omissão, por meio de violência física, sexual ou psicológica, provocar lesão, dano moral ou patrimonial à mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, bem como, conforme a tabela do SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o tratamento da vítima, recolhidos os recursos ao Fundo de Saúde do ente federativo responsável pelas unidades de saúde que prestarem o atendimento. Assim, se a vítima agredida for encaminhada a um hospital municipal e necessitar, por exemplo, de exame de raio-x, suturas e medicamentos, o município pode providenciar a cobrança do tratamento de acordo com os valores constantes da tabela do SUS.
Embora se trate de novidade no âmbito normativo, a jurisprudência já caminhava nesse sentido. Foram noticiados casos em que o agressor foi obrigado a ressarcir o INSS em razão da pensão por morte devida aos dependentes da vítima assassinada:
“Com efeito, as normas insculpidas nos arts. 120 e 121 da Lei n. 8.213/91 são claras em autorizar o ajuizamento de ação regressiva em face da empresa empregadora causadora de dano à autarquia previdenciária em razão de condutas negligentes. Os referidos dispositivos, contudo, devem ser lidos à luz dos arts. 186 e 927 do Código Civil, que transcrevo:
(…)
Ora, como se observa do cotejo dos dispositivos retromencionados, deve ser reconhecido ao INSS o direito de regresso – com base nos arts. 120 e 121 da Lei n. 8.213/91 – em casos nos quais se demonstre a ocorrência de ato ilícito – art. 186 do Código Civil – e a consequente necessidade de reparação – art. 927 do Código Civil.
Restringir as hipóteses de ressarcimento ao INSS somente às hipóteses estritas de incapacidade ou a morte por acidente do trabalho nos quais há culpa do empregador induziria a negativa de vigência dos dispositivos do Código Civil. Assim, resta evidente que, apesar de regramento fazer menção específica aos acidentes de trabalho, é a origem em uma conduta ilegal que possibilita o direito de ressarcimento da autarquia previdenciária.
Isso fica mais evidente quando se verifica que o art. 121 da Lei de Benefícios, que prevê que o pagamento das prestações por acidente do trabalho pela Previdência Social, não excluirá a responsabilidade civil da empresa ou de outrem. Dessa forma, isso se traduz na possibilidade de cumulação de um benefício previdenciário com a reparação civil oriunda de um ato ilícito e, portanto, a abertura ao ressarcimento da autarquia.
Em síntese, mostra-se acertada a tese de que é possível a ação regressiva da autarquia previdenciária contra o recorrente com o objetivo de ressarcimento de valores pagos a título de pensão por morte aos filhos da ex-companheira vítima de homicídio.
Logo, o INSS possui legitimidade e interesse para postular o ressarcimento de despesas decorrentes da concessão de benefício previdenciário aos dependentes de segurado, vítima de assassinato.” (REsp nº 1.431.150/RS, j. 23/08/2016)
A nova lei tem exatamente a mesma índole, mas se refere especificamente à restituição de valores despendidos para o atendimento imediato da vítima de violência doméstica.
O § 5º impõe uma segunda obrigação de ressarcimento, agora dos custos relativos aos dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar.
Mas o que seriam equipamentos disponibilizados para o monitoramento das vítimas? À primeira vista, a expressão pode causar estranheza, pois normalmente se fala em monitoramento do criminoso, por meio da chamada “tornozeleira eletrônica”. No entanto, em alguns lugares é possível encontrar equipamentos que são disponibilizados às vítimas e que podem funcionar em conjunto com as tornozeleiras. Por exemplo, o chamado “botão do pânico”, que pode ser acionado caso o agressor desrespeite a distância mínima imposta em medida protetiva. Aliás, há alguns dias a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou propostaPL 10024/18 que torna obrigatório o fornecimento de dispositivo móvel ou outro meio com conexão direta e constante com uma unidade policial. Uma vez acionado, o dispositivo envia alerta imediato à polícia. Caso o projeto seja de fato aprovado e sancionado, o art. 23 da Lei 11.340/06 passará a contar com dois parágrafos:
“§ 1º Para conferir maior efetividade às medidas protetivas de urgência deverá ser fornecido à ofendida dispositivo móvel, aplicativo ou qualquer meio que viabilize conexão constante com unidade policial, de modo a permitir o envio imediato de alertas de ameaça ou de outra violação de direitos.”
“§ 2º Quando o agressor estiver submetido à monitoramento eletrônico, o dispositivo de que trata o parágrafo anterior será dotado de recurso que permita à ofendida e à unidade policial saber que o autor da violência doméstica ultrapassou o limite mínimo de distância estabelecido em medida protetiva.”
Por meio deste mesmo projeto, no art. 22 da Lei 11.340/06 seria acrescentado o § 5º, que impõe ao agressor a obrigação de pagar por seu próprio equipamento de monitoramento eletrônico. É provavelmente em virtude deste projeto de lei que o novo § 5º do art. 9º se limita a tratar do equipamento de monitoramento da vítima, embora, a nosso ver, nada impeça que este dispositivo seja utilizado também para cobrar o ressarcimento dos custos relativos ao equipamento do agente, se vinculado àquele concedido para monitorar a agredida.
Por fim, no § 6º o legislador tomou a precaução de tornar expressa a vedação a que o ressarcimento imposto nos parágrafos anteriores atinja de alguma forma o patrimônio da vítima e de seus dependentes. Isto quer dizer que, no caso do marido que agride a mulher, é preciso que se adote o cuidado de resguardar a parte do patrimônio que cabe a ela e a eventuais dependentes. Nada mais razoável, pois, do contrário, a lei imporia à vítima o risco de ter de suportar o ônus do monitoramento em razão da agressão cometida contra ela mesma.
Além disso, o próprio § 6º deixa claro que o ressarcimento pelo tratamento de saúde e pelos equipamentos de monitoramento não pode ser considerado em benefício do agressor para atenuar a pena ou para substituir a pena aplicada. Bem, a substituição é mesmo vedada, pois incompatível com a natureza de condutas envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da natureza da infração penal (súmula 588 do STJ). Por outro lado, o óbice à atenuação da pena é importante porque previne pretensões baseadas no art. 66, inc. III, b, do CP (quando o agente procura, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou, antes do julgamento, repara o dano). Mesmo que o agressor tome a iniciativa de reparar o custo do equipamento – hipótese muito pouco provável, para não dizer impossível –, não poderá ter a pena atenuada por este motivo.