O direito do século XXI dialoga com a sociedade complexa em que se insere. Não tenta negar essa complexidade, nem virar as costas para as profundas mudanças em curso – que repercutem intimamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. O direito dos nossos dias é um processo de elaboração contínua e realização permanente. Ricardo Lorenzetti escreveu: “Se o direito privado apenas se concentra nos interesses individuais das partes, e não tem em vista uma perspectiva pública, pode apresentar sintomas de invalidade para resolver problemas complexos”.
Falando no direito civil, por exemplo, há um abismo cultural entre o civilista de hoje e aquele dos séculos passados. A abstração conceitual do jurista clássico – cujos marcos teóricos reproduziam, em grande parte, o direito romano, com suas categorias historicamente imutáveis – cedeu lugar a esquemas temáticos mais amplos. Mais atentos às diferenças, às complexidades e ao pluralismo. Mais impuros, se por impureza temos a convivência com os problemas – encharcados de humanidade – das pessoas, com seus sonhos e suas angústias. A complexidade crescente das relações sociais e jurídicas dos nossos dias “exige do operador jurídico capacidade para lidar com diferenciações formuladas a partir de elementos externos à estrutura conceitual, abstratamente considerada”.
Nesse contexto, a estabilidade das relações sociais, que antes caracterizava o direito, hoje é algo impensável. Se atualmente algo nos caracteriza, esse algo é justamente a instabilidade, as constantes mudanças, que redefinem a cada instante a feição social. Atualmente a única certeza é a mudança. A solução dos casos difíceis (hard cases) ganhou, em nossos dias, uma complexidade inédita. A ponderação de princípios envolve, com frequência, valores igualmente valiosos e constitucionalmente protegidos. Sabemos, hoje, ademais, que o intérprete não é um ser absolutamente neutro, que interpreta o direito como se estivesse fora da Terra. Isso não existe. O intérprete traz sempre sua carga de valores, seus conceitos e suas reservas, e esse conjunto humano influi, em graus variados, na interpretação que será dada à norma.
Também se aceita cada vez menos a ideia – muito forte no século XIX e em parte do século XX – de que a ordem jurídica traz soluções predefinidas para todos os problemas e que cabe ao intérprete, apenas, encontrá-las, mediante a subsunção (o intérprete, nessa visão, seria um ser neutro, cuja função, puramente técnica, seria dizer o direito aplicável ao caso concreto – a famosa “boca da lei”, de Montesquieu). A interpretação jurídica, hoje, é algo bastante complexo que não pode ser reduzida a fórmulas esquemáticas. A construção de sentido da norma é algo dinâmico e nunca estático ou formal.
Há casos cuja decisão é reconhecidamente difícil. Poderíamos trazer exemplos variados de responsabilidade civil (e, aliás, veremos alguns ao longo do livro), mas para ficarmos num exemplo decidido pelo STF em 2018 vamos registrar a questão do homeschooling. Podem os pais educar os filhos na própria casa, sem mandá-los às escolas públicas ou privadas? Isso seria um meio lícito de cumprir o dever de educação previsto no art. 205 da Constituição?
Sabe-se que nos EUA o tema é bastante discutido, encontrando certo enraizamento cultural ligado a questões religiosas (e também relacionadas à questão da autonomia do indivíduo e da acentuada valorização da liberdade individual). Algumas das decisões da corte americana parecem autorizar que os pais recusem o ensino formal e compulsório aos filhos, mas apenas poderiam fazê-lo por razões religiosas – o que, por certo, não encontra amparo algum na Constituição brasileira. Seja como for, existem leis em vários Estados norte-americanos que autorizam o homeschooling. As cortes americanas – seja a Suprema Corte, sejam cortes estaduais – consideram lícita a prática do homeschooling, ainda que haja visões opostas expressas nos votos vencidos.
Mas será que a questão deve ser enxergada apenas sob a ótica da liberdade dos pais? Será que é disso mesmo que se trata? O poder-dever de educar é um exercício de liberdade e de escolha? Apenas as visões dos pais devem ser ouvidas? A tendência do direito civil atual é respeitar de modo progressivo a autonomia existencial dos adolescentes, ainda que considerados incapazes pelo Código Civil. A tendência é que sejam cada vez mais ouvidos nas decisões que lhes digam respeito. E ainda: será que afastar a criança do convívio social não implica – em alguma medida – frustrar o livre desenvolvimento de sua personalidade?
Há outras dimensões que sempre surgem no debate: ninguém desconhece que o convívio escolar propicia não apenas educação formal, mas também – talvez até sobretudo – habilidades fundamentais relacionadas à socialização, à formação de laços de amizade, ao desenvolvimento psíquico, à convivência com a diferença etc. Lembremos que o ambiente doméstico também pode ser opressor, e isolar as crianças do mundo exterior nem sempre traz resultados saudáveis. O STF, em 2018, em sede de repercussão geral (RE 888.815), definiu a questão do homeschooling, afirmando não ser possível sua aplicação no Brasil.
Cabe, por fim, lembrar, como palavra final deste tópico, que a natureza da argumentação jurídica não é demonstrativa, mas persuasiva. Isso, talvez, nem deva ser encarado como um defeito, mas como algo próprio do conhecimento jurídico. Aliás, o conhecimento jurídico é – e deve ser – pluralista. Pontes de Miranda certa vez frisou que um dos enganos da inteligência humana é crer na unilateralidade do verdadeiro. Exemplificou dizendo que entre duas ou mais pessoas que discutem, podem todos ter razão.
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