Introdução:
Anuncia seu artigo inaugural tratar-se de Lei nova, incriminadora, tipificando de forma mais gravosa os crimes de furto e receptação de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes.
Semovente é a definição jurídica dada ao animal criado em grupos (bovinos, suínos, caprinos etc.) que integram o patrimônio de alguém, passíveis, portanto, de serem objetos de negócios jurídicos. A lei claramente não abrange os animais selvagens, mas somente os domesticáveis, mesmo que já abatidos ou divididos em partes. Os animais devem ser, ainda, de produção, isto é, preparados para
abate e comercialização. Não abrange apenas os quadrúpedes, mas também os bípedes e ápodes (animais desprovidos de membros locomotores, como répteis).
Na discussão do projeto, os parlamentares afirmaram que esses tipos de crimes têm gerado prejuízos aos produtores rurais e estão em pleno crescimento em todo o País. E, conforme dados da Secretaria de Agricultura, somente no Rio Grande do Sul o abigeato (furto de animais) é responsável por 20% dos abates clandestinos. “É um crime que gera impactos negativos em toda a sociedade, sobretudo, nas violações à segurança pública, na sonegação de impostos e à saúde pública, já que o consumidor não tem garantia da origem do alimento adquirido. Muitas vezes o produto é vendido clandestinamente para comercialização no varejo: os animais e o abate não passam pela fiscalização sanitária”, apontou Afonso Hamm, autor do projeto.
Lei 13.330/16 – Furto de animal:
O art. 2o. da Lei altera o art. 155 do Código Penal, que passa a vigorar acrescido do seguinte §6o.:
Art. 155. (…)
- 6o. A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração. (NR)
Considerações gerais:
A opção legislativa, como se percebe, foi tratar o abigeato (subtração de animais) como nova qualificadora do furto, punida com 2 a 5 anos, leia-se, infração de maior potencial ofensivo, não admitindo sequer a suspensão condicional do processo, salvo se caracterizada a tentativa. No entanto, sabendo que esse tipo de crime, especialmente quando envolve a subtração dos animais vivos, quase nunca é praticado por um só agente, mas em concurso, com rompimento de obstáculos e uso de via anormal para ingressar na propriedade rural (escalada), pergunta-se: os furtadores vão responder pelo crime de furto qualificado pelo § 6o (punido com 2 a 5 anos) ou pelo § 4o (punido com 2 a 8 anos, em razão do rompimento de obstáculos, escalada e/ou concurso de pessoas)?
A resposta “tanto faz” ou “pelos dois parágrafos”, obviamente, não serve; muito menos tem razão aquele que respondeu que os agentes sofrerão os “rigores” do § 6o. É que, nas hipóteses de coexistência de qualificadoras, não existindo entre elas relação de especialidade – mas pluralidade de circunstâncias –, deve prevalecer aquela que pune o comportamento do criminoso com mais rigor, sob pena de violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A outra deve ser considerada pelo magistrado na fixação da pena-base, salvo se prevista também como agravante, caso em que será aquilatada pelo juiz na segunda fase da aplicação da reprimenda.
Apesar de na prática não ser comum, em tese a nova qualificadora, sendo objetiva, é compatível com o furto privilegiado (ou mínimo), previsto no art. 155, §2o, do CP, nos exatos termos da Súmula 511 do STJ:
“É possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do CP nos casos de crime de furto qualificado, se estiverem presentes a primariedade do agente, o pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem objetiva”.
Lei 13.330/16 – Receptação de animal:
O art. 3o. da nova Lei acrescenta ao Código Penal nova figura criminosa, receptação de animal, assim tipificada no art. 180-A:
Receptação de animal
Art. 180-A. Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Considerações iniciais:
O crime é punido com reclusão de 2 a 5 anos, infração penal de maior potencial ofensivo, não admitindo qualquer das medidas despenalizadores da Lei 9.099/95, salvo se tentado, caso em que será possível o beneplácito da suspensão condicional do processo.
A objetividade jurídica é, evidentemente, o patrimônio, com ênfase na produção ou comercialização de semoventes domesticáveis de produção, diante do crescente número de furtos e roubos cometidos em áreas rurais, o que consequentemente fomenta a receptação. Mas não se pode ignorar a preocupação do legislador em tutelar, ainda, a saúde pública, ainda que de forma mediata, considerando, especialmente, que esse crime abastece o comércio clandestino de alimentos, “livres” da fiscalização dos órgãos competentes (sem ignorar, também, a sonegação de impostos sempre presente nesses comportamentos).
Ainda nestas considerações iniciais, não podemos deixar de observar que o legislador atuou sem nenhuma técnica.
Efetivamente, não nos parece aconselhável que se crie tipo penal específico simplesmente em razão da natureza do objeto receptado. São, afinal, diversos os produtos que, por inúmeras razões, passam a figurar entre os alvos preferidos de criminosos. Especialmente nas grandes cidades, é altíssimo o número de furtos e roubos de automóveis. É ascendente o índice de subtração de aparelhos de telefone celular. Há não muito tempo, matérias jornalísticas davam conta de uma série de subtrações que ocorriam na cidade de São Paulo e que tinham por alvo bicicletas de alto valor. Nos três casos, as subtrações ocorrem para que os produtos sejam posteriormente receptados e vendidos no mercado clandestino. Seria absurdo, no entanto, sustentar a criação de tipos penais de receptação para cada situação ou diferente objeto. A ser assim, não tardaria para estarmos diante de uma lei inserindo no Código Penal o art. 180-Z…
É fato que a pena da receptação (especialmente na forma básica do art. 180) é baixa se considerarmos as consequências do círculo vicioso formado entre a subtração e a aquisição irregular do produto subtraído. A solução, no entanto, está longe da criação de tipos penais aleatórios – saída mais fácil, mas de pouca ou nenhuma efetividade. O ideal seria estabelecer a pena adequada e promover o efetivo combate ao comércio irregular (como, aliás, tem acontecido no caso dos automóveis – A Lei Estadual nº 15.276/14 pode ser citada como exemplo de medida de combate à receptação de veículos no Estado de São Paulo).
Sujeitos:
O crime é comum, ou seja, pode ser cometido por qualquer pessoa, com exceção 1a.) do proprietário do semovente 2a.) e do próprio autor do crime antecedente. Vejamos as duas ressalvas:
No que diz respeito à primeira, de fato não existe receptação de coisa própria, salvo se o semovente adquirido pelo próprio dono estivesse na posse legítima de terceiro. Imaginemos que animais de um ruralista fossem penhorados, retirados da sua propriedade, e depois furtados do depositário. O ruralista que adquire esses (seus) animais, sabendo (ou devendo saber) terem sido subtraídos do fiel possuidor, responde pelo art. 180-A do CP.
A razão da segunda exceção é óbvia: o autor do crime antecedente não pode ele mesmo responder por adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender os animais ou suas partes, situação em que se estabelece o bis in idem. Assim, o agente que, após furtar semoventes, em companhia de outros, adquire a quota que corresponderia aos demais, visando à sua produção ou comercialização, pratica post factum impunível.
Quis o legislador punir, basicamente, os receptadores que atuam nos setores primário (pecuária) e terciário (comércio), mas não no setor secundário (indústria). O receptador em atividade industrial responde pelo art. 180, §1o. do CP, punido com 3 a 8 anos. Percebam, contudo, que esse mesmo §1o também pune o agente em atividade comercial. E agora, como resolver esse conflito? Vamos demonstrá-lo na tabela abaixo:
Setor primário | Setor secundário | Setor terciário |
Está referido apenas no art. 180-A do CP | Está referido apenas no art. 180, §1o., do CP | Está referido nos arts. 180, §1o, e 180-A, ambos do CP |
Finalidade produtiva | Atividade industrial | Atividade comercial |
Não existe conflito de normas | Não existe conflito de normas | Existe conflito de normas |
O conflito, portanto, existe quando o receptador de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, está na atividade comercial: responde ele pelo art. 180, §1o, punido com 3 a 8 anos, ou art. 180-A, punido com 2 a 5 anos?
Novamente recordamos que a ementa da novel Lei indica que a intenção foi tipificar, de forma mais gravosa, o crime de receptação de semovente domesticável de produção. Essa sua intenção, no entanto, foi traída pela redação no novo tipo. Se a finalidade for comercial, a nova lei, especial em relação ao art. 180, §1o, acabou sendo mais benéfica. O comerciante, de fato ou de direito, deixa de responder nas penas do art. 180, §1o, ficando sujeito às sanções do art. 180-A. Como se percebe, repetimos, se a intenção do legislador foi punir mais severamente esse crime, “o tiro saiu pela culatra”.
Conduta:
O crime consiste em adquirir (obter, a título gratuito ou oneroso), receber (qualquer forma de aceitação da posse, que não seja a propriedade), transportar (carregar), conduzir (dirigir), ocultar (esconder), ter em depósito (exercer posse protegida) ou vender (alienar em qualquer condição), com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime.
O tipo repete, portanto, algumas das condutas estabelecidas no art. 180, mais precisamente as da receptação própria.
Para que se configure a receptação do art. 180-A, é imprescindível a existência de delito precedente, figurando como objeto material semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes. Não é necessário que o crime antecedente seja de furto; pode ser também roubo, extorsão, estelionato ou até mesmo outra receptação (receptação de receptação ou receptação sucessiva).
Voluntariedade:
Temos aqui outro exemplo de falta de acuidade do legislador. Com efeito, a voluntariedade do tipo se estrutura na receptação, cometida com a finalidade de produção ou de comercialização, de semovente domesticável de produção que o agente deve saber ser produto de crime.
Trata-se, como se extrai da expressão destacada, da mesma estrutura utilizada na receptação qualificada do art. 180, § 1º, que, todos sabem, é objeto de infindável debate doutrinário: “deve saber” indica que o crime admite apenas o dolo eventual ou também dolo direto?
Prevalece que a expressão sabe está contida naquela (deve saber), pois, se o legislador pretende punir mais severamente o agente que deveria ter conhecimento da origem criminosa do bem, é óbvia sua intenção em punir também aquele que possui conhecimento direto sobre a proveniência da coisa.
No mais, o tipo contém um elemento subjetivo específico, consistente no ato de receptar com a finalidade de produção ou de comercialização.
Consumação e tentativa:
Assim como ocorre na receptação própria do art. 180, o novo crime é material, consumando-se no momento em que a coisa é incluída na esfera de disponibilidade do agente. As hipóteses de transporte, condução, ocultação e de manutenção em depósito são formas permanentes do crime, possibilitando a prisão em flagrante a qualquer tempo.
Tendo em vista as características das ações nucleares típicas, admite-se a tentativa.
Lei 13.330/16 – Vigência:
Por fim, o art. 4o. da Lei 13.330/16 anuncia que seu comando entra em vigor na data de sua publicação, não alcançando os fatos pretéritos para evitar a retroatividade maléfica, respeitando o princípio da legalidade, no aspecto anterioridade. Ressalvamos, apenas, o caso em que o receptador, na vigência da lei anterior, está sendo ou foi processado (e agora cumpre pena) por receptação qualificada de animais no exercício de atividade comercial. Como vimos, para este agente, a lei nova é mais favorável, devendo retroagir em seu benefício, nos termos do que disposto no art. 2o, parágrafo único, do CP:
“A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.