Em 2009, com o advento da Lei nº 12.034, houve significativas mudanças na Lei Eleitoral (Lei nº 9.504/97) e uma delas foi o acréscimo do artigo 105-A, que expressamente passou a dispor que “em matéria eleitoral, não são aplicáveis os procedimentos previstos na Lei nº7.347, de 24 de julho de 1985”, dentre os quais está o inquérito civil público (ICP).
Pois bem, com base nessa nova disposição legal, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no julgamento do RO nº 4746-42, decidiu, à época por maioria, que o Ministério Público Eleitoral não poderia instaurar inquérito civil público para subsidiar ação eleitoral. Referido entendimento vinha, até bem pouco tempo, sendo seguido fielmente pela CorteELEIÇÕES 2012. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). ABUSO DE PODER ECONÔMICO, POLÍTICO/AUTORIDADE E CONDUTA VEDADA A AGENTE PÚBLICO. PREFEITO. INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO. PROVA ILÍCITA. ART. 105-A DA LEI Nº 9.504/97. DEMAIS PROVAS. ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. AGRAVOS REGIMENTAIS DESPROVIDOS. 1. O art. 105-A da Lei nº 9.504/97 estabelece que, para a instrução de ações eleitorais, o Ministério Público não pode lançar mão, exclusivamente, de meios probantes obtidos no bojo de inquérito civil público. 2. Ilícitas as provas obtidas no inquérito civil público e sendo essas o alicerce inicial para ambas as AIJEs, inarredável o reconhecimento da ilicitude por derivação quanto aos demais meios probantes, ante a aplicação da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada. 3. Agravos regimentais desprovidos. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 89842, Acórdão de 28/08/2014, Relator(a) Min. LAURITA HILÁRIO VAZ, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 173, Data 16/9/2014, Página 129/130 )..
O argumento usado pela maioria dos Ministros era o de que, sendo o inquérito civil um procedimento disciplinado pela Lei de Ação Civil Pública, ele se incluiria no alcance do novo dispositivo, isto é, sua utilização passaria a ser vedada em matéria eleitoral. A Corte Suprema Eleitoral vinha apegando-se apenas à literalidade do texto legal, esquecendo-se de interpretá-lo à luz da Constituição Federal. Senão, vejamos.
Como dito acima, o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, estabeleceu como função institucional do Ministério Público a promoção da ação civil pública e do inquérito civil para a defesa do patrimônio público, social, do meio ambiente e “de outros interesses difusos e coletivos”, não podendo a legislação infraconstitucional limitar a atuação do ParquetTermo comumente utilizado como sinônimo de Ministério Público ou de seus membros. e dos demais legitimados para o processo coletivo, isto é, dizer quais direitos são tuteláveis e quais não o são, sob pena de manifesta inconstitucionalidade.
Além disso, deve-se destacar que a lisura do processo eleitoral constitui bem juridicamente tutelado pela Constituição Federal (vide artigo 14, §9ºArt. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...) § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. ), de modo que toda e qualquer norma que tenha o condão de enfraquecer ou de protegê-la de maneira deficiente, deve ser considerada contrária à ordem jurídica suprema. É o caso, pois a lei gerou uma proteção deficiente“Há, porém, um outro lado da protecção que, em vez de salientar o excesso, releva a proibição por defeito (Untermassverbot). Existe um defeito de proteção quando as entidades sobre quem recai um dever de proteção (Schutzpflicht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma protecção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais. Podemos formular esta ideia usando uma formulação positiva: o estado deve adoptar medidas suficientes, de natureza normativa ou de natureza material, conducente a uma protecção adequada e suficiente dos direitos fundamentais. A verificação de uma insuficiência de juridicidade estatal deverá atender à natureza das posições jurídicas ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, Almedina, 2003, p.273). da lisura eleitoral (em clara violação ao princípio da proporcionalidade, especificamente na diretriz da proibição do excesso) e estimulou a impunidade e a corrupção eleitorais, na medida em que limitou a ferramenta investigativa constitucional do Ministério Público, que é o agente por excelência para tutelar a democracia brasileira“Via interpretação sistemática, verifica-se que a norma está em dissonância com o postulado constitucional que propõe o combate à improbidade administrativa e a proteção do patrimônio público e social. Trata-se de norma incompatível com a Carta Mão e, portanto, inconstitucional. A Constituição Federal consagra os princípios da moralidade e da probidade, o princípio democrático e a coibição ao abuso de poder político e econômico. A redação do art. 105-A da Lei 9.504/1997 vai totalmente de encontro a tais desideratos. O norte do legislador constitucional ao munir o Ministério Público da ACP e do ICP (art.129, III) foi facilitar a proteção do patrimônio público e social. Foge à lógica admitir-se a restrição à atuação do Ministério Público em tal caso. É limitar o raio de ação do Parquet. É como acorrentar os agentes ministeriais e deixar a sorrelfa a proteção ao patrimônio público no pleito eleitoral, no qual toda sorte de arbitrariedade tende a ocorrer. ” (PELEJA JÚNIOR, Antônio Veloso. Direito Eleitoral – Aspectos Processuais, Ações e Recursos. 4ª edição, Juruá Editora, 2016, p.104/105).. Validar ato legislativo desse jaez seria um sério atentado não só a esta Instituição, mas à própria sociedade, que viria o defensor da democracia de “mãos atadas” ante os ilícitos eleitorais, que, diga-se de passagem, não são poucos.
Outro fato intrigante: Não sendo possível o uso do inquérito civil público para investigar os ilícitos eleitorais, como seriam as investigações? Clandestinas? Ou não haveria investigações e teria o Ministério Público que agir temerariamente, através de investigações clandestinas, ou depender de provas colhidas por candidatos ou partidos diretamente interessados?
Tais circunstâncias bem demonstram a impertinência prática, bem como a manifesta inconstitucionalidade de tal dispositivo legal, cuja validade encontra-se pendente de análise por parte do Supremo Tribunal Federal (ADI nº 4352, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT).
Felizmente, no final do ano de 2015, sobreveio julgado unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seguido de diversos acórdãosAGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2014. DEPUTADA ESTADUAL. REPRESENTAÇÃO. ARRECADAÇÃO E GASTOS ILÍCITOS DE RECURSOS DE CAMPANHA. PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO ELEITORAL (PPE). ART. 105-A DA LEI 9.504/97. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. RETORNO DOS AUTOS. DESPROVIMENTO. 1. Autos recebidos no gabinete em 27.9.2016. 2. O art. 105-A da Lei 9.504/97 - que veda na seara eleitoral adoção de procedimentos contidos na Lei 7.347/85 - deve ser interpretado conforme o art. 127 da CF/88, no qual se atribui ao Ministério Público prerrogativa de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de interesses sociais individuais indisponíveis, e o art. 129, III, que prevê inquérito civil e ação civil pública para proteger interesses difusos e coletivos. Precedentes. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 2229, Acórdão de 04/10/2016, Relator(a) Min. ANTONIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 04/11/2016, Página 173 ). sucessivos durante o ano de 2016, acolhendo as considerações acima expostas e mudando seu entendimento, de modo que, hoje, encontra-se plenamente garantido pela Corte o uso do inquérito civil público eleitoral pelo Parquet. Vejamos:
RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA AOS AGENTES PÚBLICOS. ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97. PRELIMINARES REJEITADAS. ART. 105-A DA LEI 9.504/97. APLICABILIDADE ÀS AÇÕES ELEITORAIS. MÉRITO. PROGRAMA SOCIAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EM LEI PRÉVIA. MULTA. DESPROVIMENTO.
- Consoante o art. 301, §§ 1º a 3º, do CPC, a coisa julgada configura-se quando se reproduz ação assim entendida como a que possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido já decidida por sentença transitada em julgado, o que não ocorreu na espécie, notadamente porque o objeto da presente ação é distinto do da AIME 10-28/MG.
- 2. A interpretação do art. 105-A da Lei 9.504/97 pretendida pelo recorrente no sentido de que as provas produzidas em inquérito civil público instaurado pelo Ministério Público Eleitoral seriam ilícitas não merece prosperar, nos termos da diversidade de fundamentos adotados pelos membros desta Corte Superior, a saber:
2.1. Sem adentrar a questão atinente à constitucionalidade do art. 105-A da Lei 9.504/97, ressalte-se que i) da leitura do dispositivo ou da justificativa parlamentar de sua criação não há como se retirar a conclusão de que são ilícitas as provas colhidas naquele procedimento; ii) a declaração de ilicitude somente porque obtidas as provas em inquérito civil significa blindar da apreciação da Justiça Eleitoral condutas em desacordo com a legislação de regência e impossibilitar o Ministério Público de exercer o seu munus constitucional; iii) o inquérito civil não se restringe à ação civil pública, tratando-se de procedimento administrativo por excelência do Parquet e que pode embasar outras ações judiciais (Ministros João Otávio de Noronha, Luciana Lóssio e Dias Toffoli).
2.2. Ao art. 105-A da Lei 9.504/97 deve ser dada interpretação conforme a Constituição Federal para que se reconheça, no que tange ao inquérito civil público, a impossibilidade de sua instauração para apuração apenas de ilícitos eleitorais, sem prejuízo de: i) ser adotado o Procedimento Preparatório Eleitoral já previsto pelo Procurador-Geral da República; ou ii) serem aproveitados para propositura de ações eleitorais elementos que estejam contidos em inquéritos civis públicos que tenham sido devidamente instaurados, para os fins previstos na Constituição e na Lei 7.347/85 (Ministros Henrique Neves e Gilmar Mendes).
2.3. O art. 105-A da Lei 9.504/97 é inconstitucional, pois: i) o art. 127 da CF/88 atribuiu expressamente ao Parquet a prerrogativa de tutela de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais individuais indisponíveis, de modo que a defesa da higidez da competição eleitoral e dos bens jurídicos salvaguardados pelo ordenamento jurídico eleitoral se situa no espectro constitucional de suas atribuições; ii) a restrição do exercício de funções institucionais pelo Ministério Público viola o art. 129, III, da CF/88, dispositivo que prevê o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos; iii) houve evidente abuso do exercício do poder de legislar ao se afastar, em matéria eleitoral, os procedimentos da Lei 7.347/1985 sob a justificativa de que estes poderiam vir a prejudicar a campanha eleitoral e a atuação política de candidatos (Ministros Luiz Fux e Maria Thereza de Assis Moura).
(Recurso Especial Eleitoral nº 54588, Acórdão de 08/09/2015, Relator(a) Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Data 04/11/2015, Página 15).
Assim, recomenda-se o uso pleno e irrestrito do inquérito civil público na área eleitoral, devendo o membro do Ministério Público Eleitoral, quando da confecção da portaria de instauração do procedimento investigatório e da petição inicial da ação dele decorrente, arguir incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 105-A da Lei nº9504/97 à luz do novel entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
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