O art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro pune, com detenção de seis meses a um ano, a conduta de afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída.
O dispositivo não estabelece uma espécie de omissão de socorro, tipificada no art. 304Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves. e que visa à preservação da integridade física do ofendido, que, prontamente atendido, terá maior chance de recuperação e menor possibilidade de sofrer consequências mais graves que poderiam decorrer da ausência de socorro. O propósito do art. 305 é forçar o motorista a permanecer no local a fim de não impedir (ou, pelo menos, dificultar), a apuração dos fatos. Conforme bem apanhado por Heleno Cláudio Fragosoapud, Ruy Castro de Barros Monteiro, ob. cit., p. 199, “basicamente o legislador procura, incriminando a fuga, forçar o agente a permanecer no local do fato. O que se observa, porém, é que a fuga do motorista não tem sua objetividade jurídica no interesse da preservação da vida humana ou incolumidade da pessoa, sendo essencialmente incriminada porque perturba a ação da justiça, dificultando o esclarecimento do fato e a efetivação da responsabilidade jurídica (civil e criminal) do causador do acidente”.
Em virtude disso, são inúmeras as vozes que pregam a inconstitucionalidade do tipo penal, pois, se ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), não é razoável que um tipo penal obrigue o motorista a permanecer no local do acidente e contribua para sua própria responsabilização.
De fato, trata-se de uma tipificação excêntrica, que não encontra paralelo em outras situações, muitas vezes mais graves. O homicida não é punido porque foge do local do crime logo após ceifar a vida da vítima; o que comete latrocínio tampouco sofre punição criminal porque foge depois de subtrair os bens e matar a vítima; o estuprador não reponde por delito autônomo porque abandona a vítima depois de constrangê-la à prática sexual; nem mesmo quem comete homicídio culposo sofre alguma consequência além da pena cominada ao crime. Em todas estas situações a fuga é empreendida para evitar a responsabilidade penal e, certamente, dificulta a apuração e contraria os interesses da administração da Justiça, mas não ocorreria a nenhuma pessoa sensata criar tipos penais para punir condutas como estas.
Mas há também quem sustente a plena constitucionalidade do tipo penal sob o argumento de que o motorista que permanece no local do acidente não é compelido a produzir provas contra si mesmo. Em nenhum momento da apuração do crime, com efeito, pode ser ele obrigado a praticar qualquer ação que lhe incrimine, nem pode ser obrigado a prestar esclarecimentos, porque a ordem constitucional lhe assegura o direito ao silêncio. O que se pretende é simplesmente a manutenção da sede do acidente para que os órgãos responsáveis possam promover a devida apuração. Manter o local inalterado é imprescindível para a realização de perícias, por exemplo. Como no mais das vezes o motorista foge com o próprio veículo envolvido no acidente, torna-se impossível o exame técnico completo. Na prática, ocorre uma espécie de fraude processual para impedir a adequada investigação.
Diante da controvérsia, o STF foi provocado a decidir sobre a constitucionalidade do art. 305 do CTB.
No caso julgado (RE 971.959), o motorista foi condenado a oito meses de detenção porque havia colidido com outro veículo e fugiu em seguida. Na apelação, foi absolvido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que considerou inconstitucional o artigo 305 do CTB, porque a presença obrigatória no local do acidente representaria violação da garantia de não autoincriminação. Diante disso, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário para que o Supremo dirimisse a dúvida.
Inicialmente, o ministro Luiz Fux reconheceu a repercussão geral da matéria, no que foi seguido pelos demais:
“A análise da presente controvérsia se faz necessária, máxime em razão de decisões proferidas por diversas Cortes Estaduais no sentido da inconstitucionalidade do preceito em questão, consignando que a simples permanência na cena do crime já seria suficiente para caracterizar ofensa ao direito ao silêncio. Obrigar o condutor a permanecer no local do fato, e com isso fazer prova contra si, afrontaria ainda o disposto no artigo 8º, inciso II, alínea “ g”, do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário.”
No mérito, o tribunal concluiu, por maioria, que o art. 305 do CTB é compatível com a ordem constitucional.
Em síntese, o ministro Luiz Fux argumentou que o tipo penal tutela a administração da Justiça, prejudicada pela fuga e alteração do local do acidente. Embora o princípio da não autoincriminação seja prestigiado pela jurisprudência do STF, trata-se de direito que encontra certas limitações, como, por exemplo, a possibilidade de punição por falsa identidade, ainda que o agente tenha o propósito de defender-se ao ocultar seu nome verdadeiro. Além disso, a obrigatoriedade de permanência no local não impõe ao motorista a participação em diligências de cunho probatório, nem o compele a assumir algum tipo de responsabilidade. Na mesma toada da inexistência de direitos absolutos, a ministra Rosa Weber ponderou que a permanência do condutor no local do acidente facilita sua identificação e a apuração de responsabilidades, e, caso existam vítimas, é algo que incrementa – mesmo que indiretamente, já que este não é o escopo do tipo – a proteção à vida e à integridade física.
O ministro Alexandre de Moraes seguiu o relator destacando a necessidade de medidas enérgicas contra a situação caótica do trânsito brasileiro, cujos acidentes geram dispêndio de recursos bilionários que poderiam ser destinados a outras áreas que sofrem com a falta de investimentos.
Na mesma linha, o ministro Edson Fachin lembrou a Convenção de Viena sobre Trânsito Viário, à qual o Brasil aderiu em 1981, que estabelece a obrigatoriedade de que o condutor ou qualquer outro usuário da via implicado em acidente de trânsito, caso haja mortos ou feridos, advirta a polícia e permaneça ou volte ao local até a chegada da autoridade incumbida da investigação.
O ministro Barroso apontou que garantir a fuga como exercício do direito à não autoincriminação estimula a irresponsabilidade e a falta de solidariedade, algo com o que o Estado não pode compactuar.
Por fim, os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia consideraram inexistir ofensa à Constituição Federal. A punição, segundo eles, não é irrazoável nem desproporcional, pois baseada em circunstâncias concretas que a justificam. Além disso, “A presença do condutor no local do acidente, por si só, não significa qualquer autoincriminação e pode até constituir um meio de autodefesa, na medida em que constitui uma oportunidade para esclarecer as circunstâncias do acidente que, eventualmente, podem militar a seu favor”. E, em casos específicos nos quais o condutor sofra risco de agressões ou mesmo em que tenha ele próprio sofrido lesões no acidente, e por isso seja obrigado a deixar o local, a punição pode ser afastada pela exclusão da ilicitude (estado de necessidade).
A divergência ficou por conta dos Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Dias Toffoli, todos na linha de que o direito à não autoincriminação é abrangente e envolve não só o direito ao silêncio, mas também o de não contribuir de nenhuma forma para a produção de provas que prejudiquem o próprio agente:
“Não calha aqui o argumento de que, permanecendo em silêncio, não estaria a produzir prova contra si. A comprovação da conduta criminosa pressupõe a configuração de autoria e de materialidade, e a permanência do imputado no local do crime inquestionavelmente contribui para a comprovação da autoria, assentando o seu envolvimento com o fato em análise potencialmente criminoso”.
Além disso, é desproporcional, em relação a crimes mais graves, punir alguém pela simples fuga do local do acidente.
Mas, diante da maioria formada pela constitucionalidade do dispositivo, firmou-se a seguinte tese de repercussão geral:
“A regra que prevê o crime do artigo 305 do CTB é constitucional posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e as hipóteses de exclusão de tipicidade e de antijuridicidade”.
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