Compete à Justiça Federal, nos termos do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal, julgar “os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.
No âmbito do sistema financeiro, são diversas as infrações penais cuja competência de julgamento recai na Justiça Federal, como a falsificação de moeda – de emissão rigorosamente controlada pelo Banco Central –, a evasão de divisas e a fraude em instituição financeira nos termos da Lei 7.492/86. Todas estas infrações atingem diretamente a União, que tem interesse em manter o domínio sobre a emissão e a circulação de moeda devido aos efeitos devastadores que o descontrole pode provocar em termos macroeconômicos. À União ainda convém controlar a movimentação de moeda para fora e para dentro do Brasil, não somente em virtude da influência que isso pode exercer na economia interna, mas também por questões de ordem tributária, como também lhe interessa manter a higidez do sistema financeiro nacional garantindo sua operação em condições nas quais as pessoas possam confiar.
Mas a criação de novas tecnologias pode provocar dúvidas a respeito da aplicação de leis penais e processuais penais. Já tratamos, neste mesmo espaço, de controvérsias envolvendo o julgamento de crimes relativos à pornografia infantil praticados por meios digitais; também já comentamos decisões envolvendo o acesso e a interceptação de mensagens por WhatsApp e a prática de ameaças por meio de redes sociais quando o autor e a vítima estão em países diversos. Não poderia ser diferente em relação a crimes que, ao menos aparentemente, envolvem o sistema financeiro.
Com efeito, temos visto, nos últimos anos, um aumento considerável na utilização das denominadas criptomoedas, negociadas exclusivamente por meio virtual, sem nenhum controle dos bancos centrais ou de algum outro órgão ligado à fiscalização do sistema financeiro dos países. Na medida em que se populariza a utilização das criptomoedas, é inevitável a multiplicação de atos ilícitos nas transações, o que pode provocar certa perplexidade nos operadores do sistema criminal, cujas normas não acompanham a evolução tecnológica e o incremento das atividades delituosas decorrentes desta evolução.
Recentemente a Terceira Seção do STJ julgou um conflito de competência (CC 161.123/SP, j. 28/11/2018) que teve origem em irregularidades cometidas numa espécie de corretagem sobre bitcoins. No caso, os acusados captavam recursos de investidores e lhes ofereciam ganhos fixos mensais enquanto utilizavam os recursos recebidos para especular no mercado de criptomoeda.
O Ministério Público de São Paulo considerou que os indícios de evasão de divisas, de sonegação fiscal e de exercício de atividade financeira sem autorização legal deveriam provocar o deslocamento da competência para a Justiça Federal, no que foi acatado pela Justiça paulista.
Mas a Justiça Federal suscitou o conflito de competência argumentando que a atividade desenvolvida pelos acusados não se inseria em crimes contra o sistema financeiro, tendo em vista que criptomoedas não sofrem controle do Banco Central e não podem ser consideradas ativos financeiros.
O STJ deu razão à Justiça Federal e julgou não haver indícios da ocorrência de crimes contra o sistema financeiro, pois a atividade desenvolvida pelos acusados – compra e venda de criptomoedas – não é regulamentada pelos órgãos que fiscalizam o sistema financeiro nacional. Para o ministro Sebastião Reis Junior, a moeda virtual não pode ser considerada verdadeira moeda, nem tampouco um valor mobiliário, situação esta em que a fiscalização seria submetida à Comissão de Valores Mobiliários. Por esta razão, o ministro descartou a ocorrência das infrações às quais o Ministério Público havia inicialmente subsumido a conduta (arts. 7º, inc. II Art. 7º Emitir, oferecer ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores mobiliários: (...) II - sem registro prévio de emissão junto à autoridade competente, em condições divergentes das constantes do registro ou irregularmente registrados;, da Lei 7.492/86 e 27-EArt. 27-E. Exercer, ainda que a título gratuito, no mercado de valores mobiliários, a atividade de administrador de carteira, agente autônomo de investimento, auditor independente, analista de valores mobiliários, agente fiduciário ou qualquer outro cargo, profissão, atividade ou função, sem estar, para esse fim, autorizado ou registrado na autoridade administrativa competente, quando exigido por lei ou regulamento: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. da Lei 6.385/76).
Além disso, o tribunal não vislumbrou a ocorrência do crime de evasão de divisas, o que faz sentido se considerarmos a conclusão a que se chegou a respeito da natureza da criptomoeda, isto é, de que não se trata de efetiva moeda nem de valor mobiliário. E, por fim, afastou-se a competência da Justiça Federal para julgar eventual crime de lavagem de dinheiro, que, no caso, deveria ter como pressuposto (infração antecedente) a prática de crime de competência federal.