7) Para a configuração do delito tipificado no art. 306 do CTB, antes da alteração introduzida pela Lei n. 12.760/2012, é imprescindível a aferição da concentração de álcool no sangue por meio de teste de etilômetro ou de exame de sangue, conforme parâmetros normativos.
Desde a entrada em vigor do Código de Trânsito, o art. 306 teve três redações:
“Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.
“Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência” (Redação dada pela Lei 11.705/08).
“Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência” (Redação atual, dada pela Lei 12.760/12).
Originalmente, a prova da embriaguez do motorista era feita por diversos meios, como exame pericial que indicasse quantidade superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue, ou prova testemunhal ou exame médico que constatasse sinais evidentes de embriaguez no indivíduo surpreendido conduzindo um veículo em estado psicomotor alterado. Eram parâmetros existentes para a apuração da infração de trânsito relativa à embriaguez (arts. 165, 276 e 277).
A pretexto de tornar mais severo o tratamento de motoristas embriagados, a Lei 11.705/09 (“Lei Seca”) promoveu diversas modificações no Código de Trânsito, dentre elas a do art. 165, que deixou de fazer referência à quantidade de álcool por litro de sangue na infração de trânsito, e a do próprio art. 306, que teve incluída a referência em sua redação, como se vê na transcrição linhas acima.
Isto acarretou um grave problema: se o próprio tipo penal passou a fazer referência à quantidade de álcool necessária para caracterizar o crime, passaria a ser imprescindível que se apurasse especificamente esse dado. Afinal, tratando-se de lei penal, sua aplicação é estrita, e se o motorista tivesse cinco decigramas de álcool por litro de sangue o fato se tornaria atípico. Se antes, por ausência de referência expressa no tipo, a embriaguez podia ser demonstrada inclusive por testemunhos e exames médicos externos, com a nova redação isto passava a ser impossível porque tais meios de prova não são capazes de detectar com precisão o nível de embriaguez. E o fato de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo e, portanto, podia se negar a fazer exame de sangue ou outro teste capaz de detectar a quantidade específica de álcool fez com que inúmeros motoristas deixassem de ser punidos.
Isso só se modificou em 2012 com a entrada em vigor da Lei 12.760, que retirou do tipo penal a referência à quantidade de álcool e inseriu no art. 306 o § 1º para dispor que a conduta criminosa pode ser constatada por concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue, ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, ou ainda por sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
Quando ainda vigorava a redação da Lei 11.705/08, o STJ não teve alternativa a não ser firmar a orientação de que a única forma de prova o crime era a perícia que apurasse a quantidade precisa de álcool no sangue:
“2. A Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.111.566/DF, sob o rito dos recursos repetitivos – representativo de controvérsia –, firmou o entendimento no sentido de que a tipicidade do crime de embriaguez ao volante, previsto no aludido art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, com a redação dada pela Lei n. 11.705/2008, reclama prova da concentração de álcool no sangue (6 decigramas de álcool por litro de sangue), aferida por meio do etilômetro (“bafômetro”) ou do exame de sangue, não podendo ser suprida por prova testemunhal ou mesmo exame clínico.
3. In casu, a apontada embriaguez do paciente restou aferida, exclusivamente, com base em perícia médica (médico examinador), hipótese tida por violadora da norma de regência da época, impossibilitando a responsabilização criminal.” (HC 188.526/RS, j. 01/09/2016)
8) O indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do ‘bafômetro’ ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere).
Esta tese se insere no mesmo contexto da nº 7, pois surgiu do julgamento do Recurso Especial 1.111.566/DF (j. 28/03/2012), no qual o STJ estabeleceu que no tipo do art. 306 havia um dado de natureza objetiva (a quantidade de álcool pode litro de sangue), cuja apuração era imprescindível para que a tipicidade pudesse ser considerada perfeita. E, nesta apuração, não era possível compelir o investigado a fazer os testes que pudessem constatar o nível alcoólico:
“1. O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do ‘bafômetro’ ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal.
2. Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei.
3. O tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue.
4. O grau de embriaguez é elementar objetiva do tipo, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei, emanada do Congresso Nacional.
5. O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro.
6. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar.
7. Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático. Não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente.
8. Os tribunais devem exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal incriminador, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
9. Recurso especial a que se nega provimento.”
9) É irrelevante qualquer discussão acerca da alteração das funções psicomotoras do agente se o delito foi praticado após as alterações da Lei n. 11.705/2008 e antes do advento da Lei n. 12.760/2012, pois a simples conduta de dirigir veículo automotor em via pública, com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, configura o crime previsto no art. 306 do CTB.
Se, como vimos, a redação imposta ao art. 306 pela Lei 11.705/08 obrigava a apuração da quantidade específica de álcool no sangue, uma vez que o exame houvesse sido realizado nada mais se discutia, até porque o tipo não trazia nenhum outro requisito.
Mas, com o advento da Lei 12.760/12, que caracteriza o crime como o ato de conduzir o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool, indivíduos que estavam sendo processados por fato cometido sob a vigência da lei anterior passaram a reivindicar uma espécie de retroatividade benéfica para adicionar à constatação da quantidade de álcool no sangue a apuração da efetiva alteração da capacidade psicomotora.
Mas o STJ firmou a tese de que a apuração do crime cometido sob a vigência da Lei 11.705/08 é vinculada à redação do tipo naquele momento:
“1. Diante das significativas alterações legislativas acerca da matéria, deve o julgador formar sua convicção observando a redação do art. 306 do CTB vigente à época dos fatos.
2. A simples constatação de que o recorrido estava sob o efeito de álcool em patamar superior ao estabelecido no caput do art. 306 do CTB, como se verifica in casu, já é suficiente para que sua conduta seja punida.
3. Tendo o delito sido praticado após as alterações procedidas pela Lei nº 11.705/08 e antes do advento da Lei nº 12.760/12, a simples conduta de dirigir veículo automotor em via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas de álcool por litro, configura o delito previsto no art. 306 do CTB, o que torna desnecessária qualquer discussão acerca da alteração das funções psicomotoras do agente.” (REsp 1.577.903/RS, j. 10/05/2016)
10) Com o advento da Lei n. 12.760/2012, que modificou o art. 306 do CTB, foi reconhecido ser dispensável a submissão do acusado a exames de alcoolemia, admite-se a comprovação da embriaguez do condutor de veículo automotor por vídeo, testemunhos ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
Diante do que exposto até agora a respeito das modificações por que passou o art. 306, não há mais muito o que acrescentar.
Atualmente, o dispositivo é composto por quatro parágrafos que se referem às formas de apuração do estado de embriaguez. O § 2º dispõe exatamente o que estabelece a tese nº 10:
“A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.”
Assim, se o motorista sobre o qual pese suspeita de embriaguez se recusar a fazer os testes para apurar o nível alcoólico, é plenamente possível que outros meios sejam utilizados:
“1. A presença de odor etílico no condutor do veículo, os depoimentos identificadores de sinais de embriaguez e o Termo de constatação de sinais de alteração de capacidade psicomotora, formaram um conjunto de sinais suficiente a embasar a conclusão da embriaguez do agravante.
2. Novel redação do art. 306, do CTB,, introduzida pela Lei n. 12.760/2012, “ampliou os meios de prova, pois permite, agora, que, na ausência de exames de alcoolemia – sangue ou bafômetro -, outros elementos possam ser utilizados para atestar a embriaguez e a alteração da capacidade psicomotora do motorista, como vídeos, testemunhas ou quaisquer meios de prova em direito admitidos, respeitada a contraprova” (AgInt no REsp 1675592/RO, Sexta Turma, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe 06/11/2017). No mesmo sentido: AgRg no AREsp 1331345, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, DJe 24/10/2018)” (AgRg no AREsp 1.334.585/PB, j. 19/03/2019)
Note-se que a referência à possibilidade de contraprova é dispensável, pois o princípio da ampla defesa de qualquer forma já permitiria que o acusado contestasse as provas apresentadas contra ele.
11) Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo.
O art. 310 do Código de Trânsito pune, com detenção de seis meses a um ano, as condutas de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.
Há quem sustente que o crime é de perigo concreto. A pessoa não habilitada deve expor a integridade física ou o patrimônio alheios a risco efetivo para que seja possível a responsabilização criminal daquele que lhe entregou o veículo, pois, afinal, este é o contexto necessário para a punição da direção de veículo sem habilitação (art. 309).
Majoritariamente, no entanto, argumenta-se que o crime do art. 310 é diferente da direção de veículo sem habilitação, que pressupõe o efetivo perigo de dano como requisito expresso no tipo. A entrega da direção de veículo automotor a pessoa não habilitada é crime independentemente da conduta desempenhada pelo motorista inabilitado, pois se trata de crime de perigo abstrato:
“A tese estabelecida no Recurso Especial Representativo de Controvérsia Repetitiva n. 1.485.830/MG foi a de que “não é exigível, para o aperfeiçoamento do crime, a ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na conduta de quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou ainda a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança”. Mostra-se, portanto, contrária a esse entendimento a compreensão firmada pelo Tribunal de origem que afirmou ser necessário a criação de um perigo concreto.” (Rcl 28.876/RS, j. 09/08/2017)
A respeito, o STJ emitiu a súmula nº 575.
12) A desobediência a ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do CTB, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de punição penal.
O art. 195 do Código de Trânsito estabelece punição administrativa contra quem desobedecer às ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes. Trata-se de infração de natureza grave que acarreta a imposição de multa.
Há quem sustente que, paralelamente à infração de trânsito, deve-se punir o motorista rebelde pelo crime de desobediência, tendo em vista que a conduta se insere perfeitamente nas disposições do art. 330 do Código Penal.
Mas o STJ se orienta, em regra, no sentido de que, havendo punição administrativa sem referência à aplicação conjunta da lei penal, não há crime. É a aplicação do princípio da ultima ratio do Direito Penal, que deve se manter subsidiário para intervir apenas quando outras normas não forem capazes de lidar adequadamente com determinada situação.
Note-se, no entanto, que é preciso verificar o contexto da ordem de parada. O STJ tem considerado tipificada a desobediência em situação na qual policiais militares ou rodoviários determinam a parada do veículo por suspeita de conduta ilícita mas não são atendidos pelos motoristas:
“1. É cediço na jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça que a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais, no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195, do CTB, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal.
2. Na hipótese dos autos, contudo, a ordem de parada não foi dada por autoridade de trânsito, no controle cotidiano no tráfego local, mas emanada de policiais militares, no exercício de atividade ostensiva destinada à prevenção e à repressão de crimes, tendo a abordagem do recorrente se dado em razão de suspeita de atividade ilícita, o que configura hipótese de incidência do delito de desobediência tipificado no art. 330, do CP.” (AgRg no REsp 1.805.782/MS, j. 18/09/2019)
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