Com a publicação da lei 13.964/2019, que também altera dispositivos do Código de Processo Penal, muitas são as mudanças trazidas à sistemática processual. Dentre elas, em relação ao inquérito policial, traz o art. 3º-C, caput e § 3º, a seguinte redação:
Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
(…)
§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.
A partir da leitura dos dispositivos acima transcritos, balbucia-se uma interpretação de que os elementos colhidos no inquérito policial, excetuadas os relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado, não mais serão levados ao processo judicial. O processo judicial, então, poderia ser composto por provas irrepetíveis, as antecipadamente produzidas e as referentes às medidas de obtenção de prova, como interceptação telefônica e busca e apreensão, exemplificativamente, que seriam extraídos da fase investigativa.
Como estamos diante de um momento de interpretação inicial da nova legislação, tem-se que a cautela deve nortear a postura do intérprete, que não poderá dispensar uma interpretação sistemática dos novos dispositivos e dos que lhes antecedem no ordenamento jurídico.
Primeiramente, a modificação legislativa mantém incólume o sistema da Livre Produção das Provas adotado em nosso ordenamento como regra-base. Portanto, não há que se falar em restrição probatória. Por isso, pensamos que todos os elementos informativos produzidos no inquérito policial podem servir de base para a sua apreciação em juízo, sendo submetidos à confirmação, segundo o Princípio da Imediação, bem como ao contraditório diferido ou real, a depender da natureza do elemento analisado.
Em segundo lugar, é preciso perceber que o § 3º do art. 3-C menciona que “os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa”, demonstrando que os autos do inquérito estarão acessíveis à acusação e à defesa para que possam utilizá-lo da maneira que melhor lhes aprouver. Note-se que o Ministério Público, além de atuar com atribuição para a investigação criminal, posteriormente, atua como parte, exercendo a titularidade da ação penal pública. Imagine-se o contrassenso que seria conceber que a parte não possa se valer dos elementos que, de modo imediato, coligiu durante as investigações.
Em terceiro lugar, o sistema processual não exonerou a acusação de demonstrar a justa causa para o ajuizamento da ação penal. No Brasil, a esmagadora maioria das ações penais ajuizadas possuem a justa causa demonstrada a partir dos elementos obtidos no inquérito policial. Portanto, uma interpretação que restringe a utilização do inquérito policial na fase judicial, em verdade, fere as atribuições institucionais do Ministério Público, que por disposição do art. 129 da Constituição Federal, exerce a titularidade da ação penal incondicionada, sendo o exercício da ação, um poder-dever que restaria prejudicado. Portanto, em um sistema processual que funda as bases da ação penal na prévia verificação de indícios de autoria e prova da materialidade, alijar os elementos informativos da instrução processual é limitar o exercício do poder de ação do Ministério Público, algo que é incompatível, sobretudo, com a Constituição, além de não se conformar com o espírito de uma legislação intitulada como “pacote anticrime”.
Em quarto lugar, como a ação penal é exercida por seus titulares, seja o Ministério Público ou o particular, presente o sistema de Livre Produção Probatória, cabe a cada titular a avaliação dos elementos informativos de que dispõe para o ajuizamento da ação penal. A defesa, por sua vez, possui ampla possibilidade de acesso ( Súmula Vinculante 14) e posterior utilização dos autos da investigação, podendo deles valer-se para impugnar a denúncia ou queixa (art. 396-A, CPP), demonstrando a inexistência de justa causa e, com isso, obter decisão que rejeita a acusação (art. 397, III, CPP) ou, até mesmo, que absolva sumariamente (art. 397, CPP) o acusado. As restritas hipóteses ao princípio da liberdade probatória encontram-se na vedação da admissibilidade de provas ilícitas e imorais, além de exceções probatórias relacionadas ao estado das pessoas ou em determinados procedimentos. De resto, o Direito admite todos os meios de prova, pelo que não vislumbramos o art. 3º-C, § 3.º, CPP como mais uma exceção ao princípio da Liberdade Probatória.
Em quinto lugar, é preciso perceber que a lei 13.964/2019 não alterou o art. 155, CPP, que dispõe que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” Percebe-se, portanto, que o Juiz de Direito ainda pode formar a sua convicção utilizando os elementos informativos para formar sua convicção, ainda que de forma subsidiária e complementar. Trata-se de decorrência do princípio do Livre Convencimento Motivado, que autoriza o juiz a conhecer de todas as fontes de prova trazidas para o processo e, partindo das provas produzidas segundo os princípios da Imediatidade e do Contraditório, a valer-se de todo o acervo circundante para formar o seu convencimento que será exposto de maneira fundamentada.
Portanto, com esses breves apontamentos, sustentamos que a regulamentação trazida pelo § 3º do art. 3-C do CPP não vedou a inclusão dos autos do inquérito no processo judicial, mas apenas delineou que o caderno investigativo estará à disposição da acusação e defesa para que possam utilizá-lo da maneira que entenderem mais adequada, ou seja, a acusação, no exercício da titularidade da respectiva ação penal, e a defesa, em prestígio ao princípio da Ampla Defesa. O fato de o § 3º mencionar que os autos “não serão apensadosA previsão não trata com clareza sobre a remessa das provas irrepetíveis, antecipadas ou meios de obtenção de prova ao juízo da instrução. Também não se vislumbra razão para tanto, já que não compete ao juiz da instrução realizar qualquer atitude em relação aos documentos recebidos, mas apenas à acusação e a defesa. aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento” é mandamento destinado ao juiz das garantias e não à acusação e defesa.
A medida, portanto, tem o condão de consolidar a necessidade de atuação das (futuras) partes quanto à utilização dos elementos coligidos, reforçando o espírito da lei de que o juiz das garantias não deve remeter ao juiz processante todos os elementos que foram colhidos na fase de investigação. Em nosso entender, salvo melhor juízo, trata-se de tarefa que não lhe compete, já que o juiz das garantias, pelo fato de participar da fase pré-processual, não se converte em espécie de “juiz da investigação”, havendo plena necessidade de que a imparcialidade, característica da jurisdição, mantenha-se hígida na fase investigativa.