Com lastro em regramento infralegal extraordinário, editado pelos tribunais estaduais visando o enfrentamento à grave pandemia do COVID-19, se tem admitido, de forma generalizada e sem maiores questionamentos, a dispensa de realização de audiência de custódia. Contudo, outro problema surge com essa dispensa da audiência de custódia, que não tem sido objeto da devida atenção dos “operadores do Direito”: Seria, ainda, admissível a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva sem prévia representação do Delegado de Polícia ou requerimento do Ministério Público?
Acerca do ponto, em atenção, mesmo, ao Princípio Acusatório, há muito encampado no processo penal pátrio, como decorrência lógica do Estatuto Constitucional do Direito de Defesa, integrado por diversos Direitos e Garantias Individuais previstos no art. 5º da CR, entre os quais se destaca o Princípio do Devido Processo Legal (CR, art. 5º, LIV) e o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa (CR, art. 5º, LV), que têm como pressuposto necessário a fiel observância ao Princípio da Imparcialidade do Juiz, extraído, por interpretação sistemática e teleológica, do art. 5º, XXXVII e LIII , c/c o art. 95, incisos , ambos da CR, há muito que é incabível ativismo judicial de tal envergadura.
Não é outra a principiologia vigente nos tratados internacionais de Direitos Humanos, tal como, e.g., positivado, em especial, no art. 8, item 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos , que, expressamente, impõe aos estados signatários o dever de garantir acesso a um juiz competente, independente e imparcial a toda e qualquer pessoa acusada da prática de algum crime, a reforçar a vedação de qualquer forma de ativismo judicial, sempre incompatível com essa garantia, tal como a imposição da medida cautelar extrema por decisão proferida de ofício pela autoridade judicial.
Para aqueles que não se convenceram disso com os regramentos constitucional e supralegal acima referidos, não há como manter posição contrária à que ora se sustenta com o extraordinário e objetivo reforço que adveio da publicação da Lei n. 13.964/2019, afastando os espaços de nebulosidade antes existentes ao clarear e conferir regramento detalhado e específico a diversos aspectos do nosso Sistema Acusatório de Processo Penal.
No que diz respeito ao tema objeto dessas linhas, não foi diferente. Ficou mais do que claro que, para a validade de qualquer decisão que imponha prisão preventiva, mesmo a título de “conversão” de prisão pré-cautelar, no atual contexto legal, é imprescindível a provocação do magistrado pelos “operadores do Direito” com atribuição para tal, no caso, o Delegado de Polícia ou o presentante do Ministério Público.
Não é demais repisar, já não havia como escapar dessa conclusão, quando se tinha em conta o Princípio Acusatório, de longa data afirmado no Brasil, pela Doutrina e jurisprudência, como baliza essencial do processo penal, em decorrência, como dito, da própria feição constitucional atribuída ao processo pela Constituição da República.
Mas especificamente sobre o tema em questão – imposição de prisão cautelar de ofício, mormente a partir da referida Lei n. 13.964/2019, exsurge cristalino o regramento contido no reformado Código de Processo Penal.
O chamado “Pacote Anticrime”, ao afirmar a “estrutura acusatória” do processo penal e criar o Juiz de Garantias (CPP, arts. 3º-A a 3º-F) , deixou claro que o magistrado deve exercer o papel de garantidor das Liberdades e dos Direitos Fundamentais, não podendo, por isso, determinar prisão preventiva ex officio.
Na mesma linha, o art. 310, caput, do CPP, que antes da nova redação aparentava autorizar a conversão da prisão sem representação da Autoridade Policial ou requerimento do Ministério Público, passou a exigir, ainda que implicitamente, agora no contexto da audiência de custódia, a prévia manifestação do Autor da Ação Penal Pública, ao afirmar a obrigatoriedade da presença desse Órgão naquele solene ato processual.
A imprescindibilidade de prévia representação ou requerimento de órgão ou pessoa, para tanto, legitimada, é reafirmada, desta feita, expressamente e em temos categóricos, pelo novo texto do art. 311 do CPP, dado pela Lei n. 13.964/2019 , o que vem sendo objeto de reiterada reafirmação em recentes precedentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, formados após a vigência do “Pacote Anticrime” .
Não para por aí o tão aguardado reforço de esclarecimento normativo trazido pela nova Lei.
Logo no Capítulo I do Título IX do CPP, que trata das disposições gerais sobre a prisão, as demais medidas cautelares e a liberdade provisória, o art. 282, § 2º, também com redação da Lei n. 13.964/2019 , impõe a mesma exigência de prévia manifestação para a prolação de decisão concernente a toda e qualquer medida cautelar em processo penal. Categoria que, indiscutivelmente, abrange as prisões provisórias.
Portanto, a conversão de ofício de pré-cautelar em preventiva pelo juiz, seja na fase inquisitiva seja no curso do processo, conforme ensinam Paulo Queiroz e Renato Brasileiro de Lima não tem nenhum cabimento a partir do novo regramento legal dado à matéria.
Com relação à fase inquisitiva, na verdade, mesmo a anterior redação do art. 311 do CPP já desautorizava a imposição ex officio de prisão preventiva.
Nesse sentido, cabe fazer remissão à percuciente lição extraída de vasta obra de Pacelli e Fischer e a preciso precedente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais .
Não é muito consignar que, embora houvessem precedentes em sentido diverso, eles se amparavam, sempre, na ora revogada redação do art. 310, caput, do CPP , que, a partir da vigente redação, passou a fazer expressa alusão à obrigatoriedade da participação do Ministério Público no ato processual que culmina com a decisão acerca da prisão provisória, i.e., a audiência de custódia.
Desse modo, a nova redação do dispositivo exclui essa “possibilidade” de flerte com o Sistema Inquisitório de Justiça Penal, inviabilizando aquela antiga interpretação, completamente dissociada do Princípio Acusatório, que chegava ao ponto de, pretensamente, autorizar decretação de prisão preventiva de ofício, o que é mais grave, mesmo na fase inquisitiva da persecução penal.
Sendo, por todas as razões explicitadas nas linhas anteriores, ilegal a prisão preventiva imposta de ofício pelo juiz, por infração ao Princípio Acusatório e a diversos dispositivos legais expressos e específicos sobre o tema no vigente CPP, deve tal ilegalidade ser reparada pela via do relaxamento, garantida pela categórica literalidade do art. 5º, inciso LXV, da CR .
Cuidando-se de prisão ilegal, cujo remédio próprio é o relaxamento, a liberdade deve ser restituída em sua forma plena, sem aplicação de quaisquer outras medidas cautelares restritivas de direitos, conforme abalizada Doutrina e preciso precedente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.
Desse modo, não há como negar a ilegalidade de prisões preventivas decretadas de ofício, sob o vigente ordenamento jurídico nacional, o que remete à necessidade de pronto relaxamento da medida cautelar extrema assim imposta, que, sendo ilegal, não legitima sua substituição por nenhuma outra medida cautelar prevista no art. 319 do CPP, uma vez que essa substituição pressupõe a legalidade da cautelar substituída. Logo, a liberdade, em tal situação, deve ser restituída na íntegra.