A Lei 13.964/19, mais conhecida como “Pacote Anticrime”, resolveu um incômodo problema que perdurava desde a Lei 9.034/95, primeiro diploma normativo que se dispôs a tratar de organizações criminosas. Entre as ferramentas de enfrentamento a esse tipo de criminalidade se destacava a “captação ambiental”. Ocorre que a lei em questão não regulamentou os meios de obtenção de prova nela indicados, resultando, naturalmente, na sua ineficácia.
Com o advento na Lei 12.850/13 o combate à criminalidade organizada avançou significativamente, uma vez que, através dela, o legislador regulamentou as principais técnicas especiais de investigação, como a colaboração premiada (sensivelmente alterado pelo “Pacote Anticrime”), a infiltração de agentes e a ação controlada. Destaque-se, todavia, que na sua redação original a lei não regulamentou a captação ambiental, sendo essa falha corrigida pela Lei 13.964/19, que detalhou seu procedimento na Lei de Interceptação Telefônica (Lei 9.296/96).
Feita essa introdução, neste estudo procuraremos definir o alcance do termo “captação ambiental”, adotado pelo legislador no novo artigo 8º-A, da Lei de Interceptações Telefônicas, bem como no artigo 3º, inciso II, da Lei 12.850/13. Sobre o tema, a doutrina trabalha com três conceitos distintos, senão vejamos:
a-) Interceptação Ambiental: técnica de investigação criminal em que terceira pessoa (policial) se vale de equipamentos adequados para captar, de maneira sub-reptícia e em tempo real, conversa entre dois ou mais interlocutores que se realiza em local específico, público ou privado;
b-) Escuta Ambiental: técnica investigativa em que terceira pessoa (policial) se vale de equipamentos adequados para captar, em tempo real, conversa de dois ou mais interlocutores que se realiza em local específico, público ou privado, sendo que neste procedimento um dos interlocutores tem ciência dessa intervenção de terceiro;
c-) Gravação Ambiental: ocorre quando um dos interlocutores, de maneira clandestina, vale dizer, sem o conhecimento dos demais, se vale de equipamento adequado para captar comunicação que se realiza entre presentes em local específico. Percebe-se que neste caso, diferentemente das outras hipóteses, o registro na comunicação é feito diretamente por um dos interlocutores, independentemente da intervenção de terceiros.
Analisados esses conceitos, resta evidente que o legislador, ao tratar da matéria pela primeira vez na Lei de Organização Criminosa, acabou inovando e se valendo de um termo até então não estudado pela doutrina, qual seja, “captação ambiental”. Com efeito, questionava-se o alcance desta técnica especial de investigação antes das inovações promovidas pelo “Pacote Anticrime”, surgindo, consequentemente, três correntes:
1ª) Para a primeira corrente, o termo “captação ambiental” englobaria os três conceitos acima expostos: “interceptação ambiental”, “escuta ambiental” e “gravação ambiental”;
2ª) Uma segunda corrente, por outro lado, sustentava que a locução “captação ambiental” abrangeria apenas os conceitos de “interceptação ambiental” e “escuta ambiental;
3ª) Já uma terceira corrente preconizava que a “captação ambiental” se referia, exclusivamente, ao registro de comunicações realizado por um dos interlocutores, mas sem o conhecimento dos demais. Em outras palavras, para os adeptos dessa corrente, a “captação ambiental” seria sinônimo de “gravação ambiental”.
Data máxima vênia, mas entendemos que o novo regramento imposto pelo artigo 8º-A, da Lei 9.296/96, se aplica apenas aos casos de “interceptação ambiental” e, ainda assim, a depender do local em que a captação se realiza. Isso significa que em nossa compreensão o termo “captação ambiental” seria sinônimo de “interceptação ambiental”, mas com a especificidade de abranger qualquer registro acústico, ótico ou eletromagnético realizado por terceira pessoa (policial), sem o conhecimento dos investigados.
Em reforço a esse entendimento, chamamos a atenção para o fato de que no artigo 10-A, da Lei 9.296/96, o legislador criminalizou a captação ambiental realizada ilegalmente, sendo que no seu §1º esclareceu que “Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”, o que, a toda evidência, caracteriza a denominada “gravação ambiental”. Com efeito, tendo em vista que para o legislador a “gravação ambiental” não constitui crime, só se pode concluir que o novo regramento imposto pelo “Pacote Anticrime” não se aplica a esses casos, sendo, consequentemente, dispensada a autorização judicial.
Advirta-se, contudo, que no que se refere ao procedimento de “escuta ambiental”, o cenário foi completamente alterado pela Lei 13.869/19 (nova Lei de Abuso de Autoridade), que antecedeu a “Lei Anticrime” (Lei 13.964/19) e promoveu alterações no artigo 10, da Lei 9.296/96. Isto, pois, no mencionado tipo penal o legislador criminalizou, entre outras, a conduta de “promover escuta ambiental” sem autorização judicial. Desse modo, parece-nos que a partir dessa inovação legislativa este meio de obtenção de prova constitui, indubitavelmente, uma medida sujeita à reserva de jurisdição, o que não significa que as regras do artigo 8º-A se aplicam ao caso.
Falando de maneira objetiva, ao criminalizar a “escuta ambiental” concretizada sem autorização judicial o legislador criou apenas um requisito para que essa medida seja implementada, mas não quis submetê-la ao regramento mais rigoroso imposto à “interceptação ou captação ambiental”. E isso se justifica porque, a toda evidência, estamos diante de técnicas em que o sacrifício ao direito à privacidade é feito de forma distinta. Enquanto na “interceptação” nenhum dos interlocutores têm ciência da intromissão de terceiros na comunicação, na “escuta” um dos interlocutores tem esse conhecimento e, inclusive, anui com a consecução da medida.
No intuito de subsidiar essas conclusões e demonstrar que a “escuta ambiental” não se confunde com a “captação ambiental”, destacamos o fato de que o próprio legislador criminalizou as condutas em tipos penais distintos na Lei 9.296/96: a conduta de “promover escuta ambiental” sem autorização judicial foi tipificada no artigo 10; já a conduta de “realizar capitação ambiental” sem autorização judicial tem previsão no artigo 10-A.
Em resumo, após o advento das Leis 13.869/19 e 13.964/19, o cenário fica da seguinte forma:
a-) Interceptação ou Captação Ambiental: trata-se de medida sujeita à reserva de jurisdição, aplicando-se, ademais, os requisitos do artigo 8º-A, da Lei 9.296/96, quando envolver conversação que se realiza em ambiente privado;
b-) Escuta Ambiental: é medida sujeita à reserva de jurisdição (interpretação imposta pelo artigo 10, da Lei 9.296/96), mas que dispensa os outros requisitos do artigo 8º-A, da Lei 9.296/96, podendo, por exemplo, ser adotada na apuração de qualquer tipo de infração penal. Observe-se, ainda, que a necessidade de autorização judicial só será exigida nas hipóteses de escuta efetivada em ambiente privado, sendo dispensada se a comunicação se realiza em local público ou local privado, mas de acesso ao público, situações em que a legalidade da prova deverá ser avaliada pelo juiz à luz do caso concreto.
Nesse ponto, aliás, vale uma crítica ao legislador. Isso porque, conforme exposto, ao criminalizar a “escuta ambiental” feita sem autorização judicial, foi dado tratamento distinto a procedimentos muito semelhantes, afinal, sob o ponto de vista do bem jurídico tutelado, vale dizer, sigilo das comunicações, intimidade e privacidade, não há diferença significativa entre uma situação em que o próprio interlocutor faz o registro da comunicação (gravação ambiental) ou se vale do apoio técnico de terceiros para essa finalidade (escuta ambiental). Nos dois casos um dos interlocutores tem ciência de que a comunicação está sendo registrada.
O ideal seria que a “escuta ambiental” levada a termo sem autorização judicial não tivesse sido criminalizada, independentemente do local em que se realiza, aplicando-se, destarte, o mesmo entendimento adotado para os casos de “gravação ambiental”, em que, não raro, o registro da comunicação é feito para comprovar a inocência do interlocutor responsável pela captação ou demonstrar que ele está sendo vítima de investida criminosa.
Por todas essas razões, entendemos que a “escuta telefônica”, que relacionada especificamente com as comunicações por meio do telefone, continua não dependendo de autorização judicial, cabendo ao juiz a análise de sua validade de maneira casuística. Tal conclusão se deve ao fato de que no artigo 10, da Lei 9.296/96, o legislador apenas criminalizou a “escuta ambiental” feita sem autorização judicial, sendo certo que esta não se confunde com a “escuta telefônica”.
c-) Gravação Ambiental: não se trata de medida sujeita à reserva de jurisdição (art.10-A, §1º, da Lei 9.296/96) e também não precisa observar os requisitos do artigo 8º-A, da Lei 9.296/96. Em tais casos, a validade da prova deverá ser analisada pelo juiz à luz do caso concreto.
Em conclusão, reiteramos que o denominado “Pacote Anticrime” representou um avanço significativo ao regulamentar o procedimento de “captação ambiental”, inclusive para aclarar sua abrangência e distinguir esta técnica de outras medidas semelhantes e igualmente relevantes na busca pela obtenção de provas durante a persecução penal.
REFERÊNCIAS:
CABETTE, Eduardo. SANNINI, Francisco. Colaboração Premiada como Técnica Especial de Investigação Criminal. Leme, São Paulo: JH Mizuno, 2020.
HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Especial Criminal Comentada. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016.
MASSON, Cleber, MARÇAL, Vinícius. Crime Organizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2017.