Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (…)
III – das decisões do Tribunal do Júri, quando: (…)
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (…)
§ 3oSe a apelação se fundar no no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação (…)
Imagine que determinado sujeito tente matar, a facadas, a sua companheira. Inquérito policial é instaurado. A autoridade indicia o suposto autor, afinal: há indícios de autoria e prova da materialidade.
Ainda hipoteticamente, imagine que o Promotor de Justiça concorde com aquilo que fora colhido nas investigações. Denúncia é oferecida, recebida e o suposto autor é pronunciado. No plenário do júri (siga no plano das ideias), a vítima confirma que seu companheiro tentou matá-la; os depoimentos das testemunhas são prestados no mesmo sentido; ao final, o réu confessa que foi o autor da conduta. O conselho de sentença, no entanto, o absolve.
Aquilo que narramos acima, infelizmente, saiu do plano imaginário.
Em sessão realizada no dia 29 de setembro de 2020, a 1ª Turma do STF manteve a absolvição de um réu que confessou ter tentado matar a companheira. O acusado havia sido absolvido pelo Tribunal do Júri. O Ministério Público de Minas Gerais apelou. O Tribunal de Justiça concordou com o pedido ministerial e reformou a decisão, sob o argumento de que ela era contrária àquilo que havia sido colhido nos autos e determinou a realização de novo júri.
A Defensoria Pública de Minas Gerais embargou da decisão do Tribunal e o recurso foi rejeitado. Diante da negativa, interpôs-se recurso especial, que não foi admitido porque isso implicaria reexame de provas. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, optou pelo não provimento de agravo regimental em recurso especial interposto pela DPEMG e manteve a decisão para que o novo júri fosse realizado – afinal, a decisão dos jurados era contrária às provas dos autos.
A defesa impetrou Habeas Corpus no STF, a fim de impedir que novo júri fosse realizado. A 1ª Turma do STF concedeu a ordem (por 3 a 2), confirmando a absolvição do réu confesso.
Antes de expor a nossa sugestão acerca da alteração no texto do artigo 593, III, “d” do Código de Processo Penal, vale mencionar que, ainda que doutrina e jurisprudência majoritárias entendessem ser possível apelação contra a decisão de absolvição que se deu com base no quesito genérico-obrigatório (o jurado absolve o acusado?), prevaleceu, no STF, entendimento minoritário.
Talvez se o texto do aludido dispositivo fosse mais específico, isso não tivesse ocorrido. É a partir daqui que nasce a sugestão objeto deste trabalho.
Voltando ao plano concreto…
Quando da realização do julgamento pelo júri, o conselho de sentença votou sim para materialidade, sim para autoria, mas, quando indagado acerca do quesito genérico-obrigatório, absolveu o réu – o jurado absolve o acusado?
Isso porque a tese da defesa foi a legítima defesa da honra. Um homem, inconformado com o fim do relacionamento, descontrolou-se e, por supor que a ex-mulher estaria em um caso com outra pessoa, tentou-a matar a facadas.
Em miúdos, o acusado reconheceu que houve um crime e que foi ele o autor, mas a sua conduta seria justificada, afinal, como homem, ele teria o direito de defender a sua honra.
Não pretendemos cansar o leitor com o óbvio: a tese acima é primitiva, injusta e inaceitável (ao menos, do ponto de vista ético e convencional). Ocorre que, um dos pilares principiológicos do júri é a plenitude de defesa (art. 5º, XXXVIII da CRFB/99). A legítima defesa da honra, portanto, é um argumento legítimo e legal. A defesa pode consagrar a tese a fim de alcançar a absolvição do cliente/assistido.
Resta o seguinte questionamento: uma vez acolhida a tese da legítima defesa da honra pelos sete jurados, poderia o Ministério Público recorrer da decisão ou a soberania dos vereditos, quando manifestada em resposta ao quesito genérico (o jurado absolve o acusado?), é absoluta?
Para a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento mencionado no início deste trabalho (HC 178.777 MG), não pode o Parquet recorrer da decisão. De acordo com o Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, (…) a partir da soberania dos veredictos, tem-se no artigo 483, parágrafo 2º, que respondendo os jurados aos dois primeiros quesitos (materialidade e autoria) de forma positiva, deve o corpo de jurados ser indagado se absolve ou não o acusado. Se absolve, tem-se o encerramento da quesitação. Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue.
Em síntese, entendeu o Ministro que a regra prevista no artigo 593, III, d, do CPP não se aplicaria quando a absolvição tivesse ocorrido com fundamento no quesito genérico. Nesse caso, portanto, ainda que a decisão fosse contrária àquilo que fora colhido e demonstrado nos autos, não poderia o titular da ação recorrer. Parece-nos, nesse sentido, que, para o relator, o princípio da soberania dos vereditos, pelo menos no que alude ao quesito genérico, tem caráter absoluto.
“Não merecia censura a decisão primeira, pautada na soberania dos veredictos. Não podia o TJ gozar essa decisão e assentar que só serviria a resposta negativa”. Marco Aurélio Mello.
O Ministro Dias Toffoli acompanhou o relator. Alertou, aliás, que é contra a instituição do júri popular, mas, enquanto magistrado, não se afastou do seu dever de julgar: Com a toga que me tem aos ombros eu alertei que essa é uma instituição disfuncional. Era melhor que os crimes dolosos contra a vida fossem julgados por juízes togados, e que não tivéssemos os custos e burocracias do Tribunal do Júri. Veja agora, com a pandemia, a dificuldade que é realizar o Tribunal do Júri. Os relatos são repugnantes, mas há a soberania do Júri e temos que respeitar, seja para condenar, ou para absolver.
A Ministra Rosa Weber também seguiu o relator – enquanto o Supremo não definir se o tribunal pode determinar novo Júri de réu absolvido contra as provas dos autos, tema de repercussão geral do ARE 1.225.185, S. Exa. continuará a decidir pela prevalência da norma constitucional.
Divergiram o Ministros Alexandre de Moraes e Barroso. Para o primeiro, trata-se de um dos crimes mais graves que o Código Penal prevê e, lamentavelmente o Brasil é campeão de feminicídio, em virtude de uma cultura extremamente machista e de desrespeito à mulher. E prosseguiu: ao permitir nova análise, a turma estaria ratificando o quesito genérico contrário à prova dos autos de legitima defesa da honra, que até 10 anos atrás no Brasil era o que mais absolvia os homens violentos que matavam suas mulheres, namoradas e companheiras.
Segundo o Ministro, a anulação da decisão que, em júri popular, absolveu o acusado não seria ilegal porque ele próprio havia confessado a autoria. Se o novo Júri continuar nesse entendimento, não há o que se fazer, mas não se deve transformar um corpo de jurados em um poder incontrastável, sem qualquer possibilidade de revisão.
Luís Roberto Barroso, o outro Ministro divergente, destacou que não gostaria de viver em um país em que os homens pudessem matar as suas mulheres por ciúmes e saírem impunes. E prosseguiu:
Se o Júri tiver um surto de machismo ou de primitivismo e absolver alguém, o Tribunal não pode rever e pedir um novo Júri que revalide? Não ter uma chance de se rever uma situação em que um homem tenta matar a sua mulher a facadas confessadamente. Barroso.
Não bastasse, Barroso reforçou o efeito simbólico negativo que eventual absolvição com fulcro na legítima defesa da honra poderia gerar: Se chancelarmos a absolvição de um feminicídio grave como esse, pode parecer que estamos passando a mensagem de que um homem traído pode esfaquear a mulher em legítima defesa de sua honra. Não parece que, avançado o século XXI, essa seja uma tese que possa se sustentar. E finalizou a divergência:
O Direito não admite isso. O meu senso de justiça se sente ofendido ao se naturalizar uma tentativa de feminicídio como essa.
Concordamos com os votos divergentes. Aliás, maioria da doutrina e, aparentemente, maior parte dos tribunais também. A verdade é que, no próprio STF, a decisão é uma novidade, ainda que existisse parcela minoritária da doutrina que a defendesse.
No RE Nº 1.285.141 – AL (2011/0239010-5), de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, a defesa, entre outros pontos, afirmava que não era possível apelação em face de decisão que absolveu o réu no quesito genérico. Alegava-se que, com a introdução do quesito obrigatório “o jurado absolve o acusado?”, tem-se que o veredicto absolutório pode-se basear na tese jurídica levantada pela defesa técnica ou em qualquer outra, ainda que sem amparo jurídico (piedade, clemência, bondade, etc.) Logo, por não ser um quesito exclusivamente relacionado aos fatos, não há como se aferir se a resposta é ou não manifestamente contrária à prova dos autos, conforme ensina a melhor doutrina.
Entretanto, de acordo com o relator, essa não era a melhor intepretação a ser extraída do dispositivo: as alterações promovidas pela Lei n. 11.689/2008 no Código de Processo Penal não inviabilizaram o recurso da acusação com base no art. 593, III, d do Código de Processo Penal.
Ainda da Corte Cidadã, no HC 226.526/ES, extraia-se o seguinte precedente: Apesar da possibilidade de o Júri simplesmente absolver o acusado, com fundamento em sua íntima convicção, referida decisão, a despeito de acobertada pelo manto da soberania dos vereditos, não está blindada contra a interposição de recursos, os quais podem e devem ser analisados pelo Tribunal de origem de acordo com a disciplina penal. Assim, mostra-se patente a possibilidade de absolvição do paciente sem que o Conselho de Sentença precise justificar seu convencimento. No entanto, a decisão não prescinde de apoio nos elementos dos autos, razão pela qual, verificada que está dissociada das provas produzidas, cabe ao Tribunal reconhecer referida contrariedade, para que o paciente seja submetido a novo julgamento. Dessarte, não verifico constrangimento ilegal.
E não é só. No HC 313.251, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciorni, fixou-se a seguinte tese: A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassá-la quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades.
Menciono, por fim, o HC 196.966/ES – STJ: O juízo absolutório dos jurados, proferidos com esteio no art. 483, III, do Código de Processo Penal em primeiro julgamento não é absoluto ou irrecorrível, podendo ser afastado quando distanciar-se completamente das provas colhidas, permanecendo a possibilidade de o Parquet recorrer sob o argumento de que a condenação foi manifestamente contrária às provas dos autos, mesmo após a vigência da Lei n. 11.689/08.
No âmbito do STF não era diferente: A possibilidade de recurso de apelação, prevista no art. 593, I, “d”, do Código de Processo Penal, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, não é incompatível com a Constituição Federal, uma vez que a nova decisão também será dada pelo Tribunal do Júri – STF – HC 142621 AgRg.
Nota-se, portanto, que era farto o entendimento dos tribunais superiores no sentido de que a unificação de teses absolutórias promovida pelo quesito genérico visava facilitar a vida do jurado, isto é, tornar o julgamento dos votos mais objetivo. A intenção do legislador, em momento algum, foi transformar a decisão do conselho de sentença numa conclusão irrecorrível e, assim, imutável.
Na doutrina o entendimento é o mesmo.
Sobre o tema, Guilherme de Souza Nucci: a reforma introduzida pela Lei 11.689/2008 simplificou e unificou as teses de defesa, concentrando-as num único quesito: “o jurado absolve o acusado?”. Portanto, ainda que o defensor alegue várias teses, compatíveis e subsidiárias, não se saberá, ao certo, qual delas foi acolhida pelo Conselho de Sentença, quando houver absolvição. Por isso, há argumentos no sentido de que o órgão acusatório não poderia valer-se da apelação, com base no art. 593, III, d, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos), uma vez que não se saberia qual teria sido o conteúdo dessa decisão e se haveria o tal confronto com a prova dos autos. Entretanto, o duplo grau de jurisdição não pode ser retirado do órgão acusatório. Em primeiro lugar, quando a defesa promove a sua sustentação em plenário as teses são inscritas em ata. Por isso, o Tribunal poderá tomar conhecimento de todas e verificar se a absolvição assumida pelo Conselho de Sentença é ilógica ou guarda alguma harmonia com qualquer delas. Em segundo lugar, o Tribunal poderá avaliar as provas constantes dos autos e chegar à conclusão de que a absolvição não era cabível, qualquer que fosse a razão adotada pelos jurados. Remete-se o caso a novo julgamento e o Tribunal Popular novamente se reúne. Em nome da soberania, se decidir absolver, pela segunda vez, torna-se definitivo o veredicto – (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1240).
Pacelli e Douglas Fischer reforçam o entendimento: A soberania dos veredictos não pode ser interpretada no sentido que possa a conclusão do Conselho de Sentença ser dissociada integralmente do que apurado nos autos, por mais que o espírito dos jurados (unânime ou majoritário) esteja correlacionado com a intenção de absolver em ideia genérica de justiça para com oautor ou partícipe do fato. Assim, em situações excepcionais, nas quais a absolvição for totalmente dissonante das provas carreadas aos autos, poderá haver a anulação do julgado acaso promovido recurso de apelação forte no art. 593, III, d, CPP […].
Para Rogério Sanches Cunha, (…) Contraria os mais básicos preceitos de justiça atar as mãos do Ministério Público e conferir um poder ilimitado para que os jurados julguem de forma absolutamente alheia aos elementos probatórios sob o equivocado pretexto de garantir a soberania dos vereditos. A soberania já é plenamente garantida na medida em que: 1) nenhum recurso substitui o mérito da decisão dos jurados; 2) o recurso de apelação com fundamento na contrariedade entre a prova dos autos e a decisão dos jurados só pode ser interposto uma vez (art. 593, § 3º, do CPP), o que evita a manifestação de inconformismo desenfreado pelo órgão de acusação.
Registramos, por fim, o entendimento de Renato Brasileiro de Lima: o quesito genérico não foi introduzido de modo a autorizar a absolvição do acusado com base em qualquer fundamento e, portanto, inclusive contra a prova dos autos, sob pena de negarmos a própria natureza do júri como órgão do Poder Judiciário (…) fosse a intenção do legislador outorgar aos jurados ampla e irrestrita autonomia em seu processo decisório, deixando-os desvinculados às teses suscitadas em plenário pela defesa e/ou a fundamentos de índole estritamente jurídica, é de todo evidente que teria suprimido todos os demais quesitos (v.g., materialidade, autoria, causas de diminuição de pena etc.), deixando apenas aquele atinente à absolvição do acusado, o que, de fato, não ocorreu (…).
Arremata o autor: enfim, sustentar que a motivação adotada pelos jurados pode extrapolar os próprios limites da razão jurídica e que o quesito absolutório genérico lhes conferiu a possibilidade de julgarem com fundamento em qualquer motivo (jurídicos ou extrajurídicos), ainda que não amparado pela prova constante dos autos, nos levaria a concluir que poderão absolver o acusado não apenas com base em sentimentos nobres, como, por exemplo, piedade, indulgência e a clemência, mas também com base em outros não tão nobres assim, como medo, a covardia, o desinteresse etc., conferindo à decisão do júri uma soberania absoluta, pois estaria revogada a alínea “d”, do inciso III, do art. 593 do CPP para a acusação. De mais a mais, o sistema da ítima convicção, ao qual estão sujeitos os jurados, jamais foi concebido d emodo a conferir ao Conselho de Sentençã uma carta em branco para que absolvesse o acusado com base em clemência ou qualquer outro motivo fora dos autos. (…) Queremos crer que, ainda que submetidos ao sistema de íntima convicção e protegida pela garantia da soberania dos veredictos, a resposta dos jurados a todos os quesitos, inclusive à do art. 483, III, do CPP, deve ser proferida com base na prova dos autos, daí porque não há porque se negar à acusação a possibilidade de apelar, pelo menos uma vez, contra eventual decisão absolutória com base no quesito genérico.
A irresignação quanto à decisão do STF pode ser sustentada ainda em recentes decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para Marcelle Rodrigues da Costa e Faria, presidente da Associação dos Promotores do Júri, a decisão, além de injusta e de caracterizar desamparo à vítima da violação a direito humano, atinge o postulado da proporcionalidade que dirige o Direito Penal brasileiro e corresponde a uma decisão em descompasso com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como com a sua interpretação estampada nos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Segundo a autora, o princípio da proporcionalidade não se esgota na proibição de excesso do Estado, mas também está atrelado a um dever de proteção dos direitos fundamentais e direitos humanos, inclusive quanto às agressões provenientes de terceiros, que leva à proibição da proteção insuficiente desses direitos. A impossibilidade de recorrer do veredicto injusto configura proteção deficiente à vítima da violação.
Flávia Piovesan afirma que a regra interpretativa do princípio pro homine indica a norma mais benéfica e protetiva à vítima, razão pela qual compreende-se que impedir o recurso do veredicto absolutório, diante de provas contundentes de materialidade e autoria de violação ao direito à vida, corresponde a proteção deficiente do bem jurídico tutelado, além de grave violação à ordem jurídica brasileira que ratificou a CADH.
Pretendíamos que o presente trabalho fosse concluído de forma bem mais resumida. Ocorre que, diante da gravidade da decisão do STF, reputamos conveniente expor a opinião da doutrina majoritária e da própria jurisprudência prevalente a fim de demonstrar que o STF errou.
O erro, acreditamos, poderia ter sido evitado caso a redação do art. 593, III, d, do CPP pecasse pelo excesso. De acordo com o dispositivo, é cabível apelação das decisões do Tribunal do Júri quando os jurados decidirem de modo manifestamente contrário à prova dos autos.
É fácil notar que uma singela interpretação objetiva e literal afastaria a decisão do STF, afinal, o artigo não faz ressalva alguma: DA DECISÃO CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS É CABÍVEL APELAÇÃO. O legislador, em momento algum, disse que a possibilidade de recurso não se aplica aos casos em que a absolvição se deu com base no quesito genérico.
É por isso que entendemos que, aqui, o excesso de zelo poderia ser prudente. A fim de reduzir o campo hermenêutica e reduzir, ainda mais, as possibilidades interpretativas que levam ao absurdo, sugerimos que seja acrescentado à alínea d do inciso III do artigo 593 o seguinte complemento: ainda que a absolvição tenha ocorrido em resposta ao quesito absolutório genérico.
Nossa sugestão.
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:
III – das decisões do Tribunal do Júri, quando:
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos, ainda que a absolvição tenha ocorrido em resposta ao quesito absolutório genérico.
A CRFB/88 salvaguarda a soberania dos veredictos. Mas a legislação também garante que, diante de prova contrária aos autos, haja um novo júri. Além do mais, parece-nos que a vida de uma mulher deveria valer mais diante do peso de qualquer princípio constitucional (ainda que seja um tão relevante – e a soberania dos vereditos o é).
Para além disso, entendemos que a decisão do STF viola a vedação da proteção deficiente do Estado, na perspectiva positiva do garantismo. Perspectiva essa que fez com que o Brasil, por exemplo, fosse condenado no caso que envolvia a Maria da Penha e que culminou na feitura da Lei 11.340/06.
Concluímos que interpretações absurdas não devem prevalecer, sobretudo aquelas cujas consequências podem ter efeitos simbólicos negativos para as mulheres, grupo que sofreu e sofre os mais variados tipos de violência.
Entendemos que, dessa forma, ainda que a reforma legal sugerida possa parecer redundante, interpretações injustas e inconvencionais poderão ser evitadas.
Nesse caso, reiteramos, o excesso de zelo é prudente e oportuno, afinal, a justiça não existe, ela existirá apenas se a fizermos. Ainda que a definição de justiça seja abstrata e sua conceituação seja quase que inalcançável (diante da carga subjetiva que ela traz consigo), é muito fácil se dizer o que NÃO é justo. E, nessa perspectiva, não é justo que o réu confesso de um feminicídio seja absolvido sob o argumento de que a decisão do jurado é irrecorrível.