Conforme noticiado, o Congresso Nacional realizou a derrubada de vetos presidenciais (19/04/2021) a dispositivos legais do Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), o que acabou por ressuscitar artigos que repercutem na legislação penal e processual brasileira.
Em relação à Lei de Interceptações Telefônicas, além dos artigos 8-A e 10-A, inseridos na Lei 9296/96 quando da vigência do Pacote Anticrime (23/01/2020), passarão a ter vigência os §§ 2º e 4º do art. 8-A.
Assim, para que possamos analisar as repercussões da vigência desses dispositivos, transcrevemos a sua redação, razões do veto presidencial e, por fim, a interpretação que poderá ser-lhes emprestada.
§ 2º do art. 8º-A da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996
“§ 2º A instalação do dispositivo de captação ambiental poderá ser realizada, quando necessária, por meio de operação policial disfarçada ou no período noturno, exceto na casa, nos termos do inciso XI do caput do art. 5º da Constituição Federal.”
Razões do veto
“A propositura legislativa, gera insegurança jurídica, haja vista que, ao mesmo tempo em que admite a instalação de dispositivo de captação ambiental, esvazia o dispositivo ao retirar do seu alcance a ‘casa’, nos termos do inciso XI do art. 5º da Lei Maior. Segundo a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o conceito de ‘casa’ deve ser entendido como qualquer compartimento habitado, até mesmo um aposento que não seja aberto ao público, utilizado para moradia, profissão ou atividades, nos termos do art. 150, § 4º, do Código Penal (v. g. HC 82788, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/04/2005).”
Primeiramente, vamos destacar alguns elementos existentes na redação do § 2º: por meio de operação policial disfarçada e período noturno:
(a) operação policial disfarçada
a.1) a lei deve ser interpretada no sentido de que a operação policial pode ser um recurso a ser utilizado para a implantação dos dispositivos de captação, mas não o único. Em determinadas situações, o particular poderá ser utilizado para a instalação dos equipamentos. A peculiaridade ficará por conta da forma como a captação será realizada: se por terceiros sem o conhecimento (captação ambiental em sentido estrito) ou com conhecimento (escuta ambiental) de um dos interlocutores, necessitará de prévia autorização judicial. Imagine-se, por exemplo, a disposição do agente colaborador para, em razão do fácil acesso que possui à casa do delatado, instale os dispositivos para que os investigadores realizem a captação. No entanto, caso o agente colaborador realize pessoalmente a gravação da conversa, em sendo um dos interlocutores, não há necessidade de autorização judicial, já que aquele que grava a conversa está dispondo do que também é seu, conforme jurisprudência consolidada dos tribunais superiores.
a.2) significado de operação policial disfarçada: deve ser entendida como ação não ostensiva, discreta, não devendo que se confundir com ação controlada ou infiltração policial, ainda que esses meios de obtenção de prova possam ser utilizados concomitantemente às diligências de instalação.
(b) Período noturno: quanto à possibilidade de instalação de dispositivos em recintos qualificados como “casa” no período diurno, pensamos não haver discussão, observados os requisitos legais. Contudo, a redação do § 2º permite a interpretação de que, caso seja necessária a instalação de dispositivos de captação no período noturno, estará vedada em se tratando de local que possa se enquadrar no conceito constitucional-penal de “casa”. Não se pode esquecer que algumas diligências somente serão exitosas se praticadas em determinados contextos, o que deve restar sob o cuidadoso crivo do Poder Judiciário. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme RHC 136465, reconheceu a licitude de instalação de instrumentos de captação ambiental em escritório de advocacia no período noturno. Assim, a redação do § 2º do art. 8-A parece se tratar de caso de reação legislativa a posição jurisprudencial. Pensamos, assim, que a vedação de instalação de instrumentos de captação em período noturno em locais enquadrados no conceito de “casa”, além de comprometer a eficácia das investigações e do direito social à segurança pública, ofende o princípio da separação dos poderes por buscar contrariar a autoridade de interpretação constitucional já proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Ainda na mesma linha, a restrição pretendida pela norma ofende ao princípio da vedação de retrocesso, pois a utilização da captação ambiental como meio de obtenção de prova demonstrou sua grande eficácia para as investigações e, posteriormente, para a formação da convicção dos diversos atores do sistema de persecução e judicial, devendo os esforços e atenções serem focados na licitude da instalação dos dispositivos de captação, ainda que seja necessária em período noturno, em situações cujas circunstâncias justifiquem, mediante prévia análise judicial.
Portanto, nos termos em que redigido o § 2º, temos a previsão por inconstitucional.
§ 4º do art. 8º-A da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996
“§ 4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.”
Razões do veto
“A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova da infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação (v. g. Inq-QO 2116, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno).”
Trata-se de mais uma disposição que visa a limitar a utilização dos meios de obtenção de prova. Mas não só isso, pois o texto é confuso. A redação menciona que a captação ambiental realizada sem conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.
Ou seja, parece haver uma divisão entre gravações realizadas com o conhecimento do Delegado de Polícia ou do Ministério Público e gravações realizadas sem esse conhecimento. As realizadas sem o conhecimento das autoridades investigadoras podem ser utilizadas apenas em matéria de defesa? E as que forem do conhecimento daquelas autoridades podem ser utilizadas pela acusação e pela defesa?
Inicialmente, afirmamos que a lei trouxe uma previsão inócua quando refere que a captação ambiental realizada sem o conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público pode ser utilizada como matéria de defesa. A esterilidade da previsão dá-se porque ainda que não exista conhecimento da captação por parte do Delegado de Polícia ou do membro do Ministério Público, tal circunstância não tem o condão de tornar a diligência ilícita. O que pode inquinar a captação de ilegalidade é a ausência de prévia autorização judicial nos casos em que exigida, e não a ausência de conhecimento da diligência pelas autoridades investigantes. Além disso, quando a captação é realizada pela própria vítima em situação de legítima defesa, não se discute quanto a licitude da prova mesmo ausente prévia autorização judicial.
Para além dessas aparentes incongruências, a previsão apresenta inconstitucionalidade latente. A uma, porque, se pretende limitar a utilização da gravação ambiental à defesa, constitui-se em ofensa ao princípio da paridade de armas. As provas licitamente colhidas e produzidas podem ser utilizadas por ambas as partes, enquanto as ilícitas, apenas pela defesa como último recurso a demonstrar sua inocência ou eventual injustiça da decisão.
Contudo, quando coligidas de maneira idônea, as provas podem ser utilizadas tanto pela acusação quanto pela defesa. Se pensarmos esta configuração no âmbito da fase judicial, limitar o resultado da obtenção da prova à utilização exclusiva como matéria de defesa ofende o princípio da comunhão das provas, segundo o qual as partes produzem as provas que entendem pertinentes, mas, uma vez juntadas ao processo, a todos pertencem. Dessa forma, a ofensa ao princípio da comunhão das provas e a aparente proibição de utilização pela acusação ofende o princípio do devido processo legal.
Por fim, a demonstração da integridade da gravação para a sua utilização é previsão desnecessária, porque todas as provas juntadas ao processo devem conter essa característica. A integridade, em verdade, é condição de validade de todas as provas em direito admitidas, e não apenas da gravação ambiental, o que é reforçado pela disciplina estipulada quanto à cadeia de custódia, inserida no Código de Processo Penal pelo próprio Pacote Anticrime.
Portanto, para nós, o § 4º do art. 8-A é inconstitucional, e a única possibilidade para aceita-lo como válido no ordenamento pátrio é que seja aplicada uma interpretação conforme a Constituição enquanto técnica de decisão judicial, no sentido de afirmar sua validade desde que afastada qualquer interpretação que retire da acusação a possiblidade de utilizar ou considerar a gravação realizada sem o conhecimento da autoridade policial ou do membro do Ministério Público o exercício de suas funções constitucionais.